A tia benedita era religiosa à maneira antiga. Quando digo "à maneira antiga", esclareço que se trata de "à maneira antiga", com missa em latim, terço diário, jejuns periódicos e conversações ao serão com abades arrancados aos romances de Camilo – mas sem as inconveniências que Camilo emprestava aos seus clérigos. Na verdade, a Tia Benedita foi católica "na clandestinidade", recusando-se a discutir a sua religião e a natureza da sua fé; ela acreditava que havia maçons disfarçados de missionários franciscanos ou dominicanos, de que duvidava muito e a quem atribuía trejeitos e vícios.
A sua religião era pessoal e intransmissível, tanto quanto incompreensível para os seus – na época – vindouros; não a discutia e a não a impunha; era feita de rituais e de abnegação, coisas muito fora de moda numa família que conhecera a devassidão e a superficialidade, como todos os que nasceram depois do dr. Salazar (com excepção do próprio, naturalmente); tinha colchas à janela durante as procissões e visitas do pároco com certa informalidade.
O velho Doutor Homem, meu pai, apreciava-lhe essas qualidades "liberais" (a palavra era desprezada na família) e a tolerância para com os infiéis, que ela desprezava em silêncio. Acontece que os "infiéis" eram o grosso da família: à mesa não se discutia religião, nem política, nem curiosidades sentimentais; também não se punha a hipótese de não visitar as relíquias da Semana Santa de Braga, de ignorar São Martinho de Dume ou de escarnecer da mais sublime aliança entre a Terra (representada pelo Alto Minho) e o Céu, que eram as festas da Senhora da Agonia.
Ao contrário dos seus contemporâneos, a Tia Benedita acreditava nos rituais e na sua incompreensibilidade: ela gostava da missa em latim, não para repetir declinações ou traduzir o Credo, mas por causa de uma musicalidade de que desconhecia a gramática, mas que a elevava ao desconhecido. E o desconhecido (aliás, o Desconhecido) era a sua religião e, provavelmente, o seu Deus. Tanto que achou absurdo que o Papa Paulo VI falasse italiano, a língua de Sofia Loren, e não latim. Estávamos em 1967 e ela sobreviveria ainda dois anos antes de se despedir das suas roseiras e dos lírios de Ponte de Lima.
O Papa Francisco teria gostado de conhecer esta senhora, que, no ano de 1961, foi de Alfa Romeo Villa d’Este à missa de Páscoa na velha igreja de Caminha.