Santo António em casa No ano em que tudo é diferente, o São João não sairá à rua. O toque dos martelos não se ouvirá, o cheiro do manjerico só em casa e o monumental fogo-de-artifício fica adiado. Em ano de pandemia, o CM faz uma visita virtual à noite mais longa do ano na cidade do Porto.
Textos Daniela Vilar Santos | Grafismo Catarina Carvalho | Vídeo Arquivo CMTV e Confraria do Vinho do Porto | Vídeografismo Catarina Cruz, Liliana Gonçalves, Mariana Margarido e Lourenço Ramos | Webdesign Edgar Lorga e João Silva | Fotos CM e GettyImages

Fazer a festa

O martelo é a estrela da festa, mas lançar um balão na noite de São João é talvez o mais fascinante desafio. Agora proibido – durante anos provocaram incêndios – foram os balões que exortavam o solstício do Verão. Estrelas de outros tempos, sobretudo entre os mais jovens, as cascatas vão resistindo em forma de concurso e longe do “tostão para o São João” que invadia as ruas da cidade há décadas.

Martelo

Martelo de São joão

O toque característico, as cores fortes e o verdadeiro ‘cumprimento’ da noite de São João. A tradição vem do ano 1963 quando Manuel António Boaventura, proprietário da fábrica ‘Estrela do Paraíso’, criou o Martelo de São João. Numa viagem ao estrangeiros viu o fole de um saleiro e pimenteiro e decidiu meter um apito no interior. O martelo fez sucesso entre os estudantes da Queima das Fitas do Porto que há muito pediam um brinquedo barulhento. O adesão foi tão grande que os comerciantes do Porto começaram a vender o martelo nas festas do São João. Cinco anos depois Manuel Boaventura foi proibido pelo Presidente e Vereador da Cultura da Câmara do Porto de vender os martelos. Após perder duas vezes em tribunal, o dono da fábrica de Rio Tinto venceu a luta e conseguiu voltar a comercializar o martelo. Até hoje, o martelo é vendido em Portugal e em vários países. E é o rei da noite mais longa do ano no Porto.

Balao

“Ólha ó balão”

Os balões incandescentes de papel colorido, que tantos anos encheram os céus do Grande Porto de pontos luminosos, foram proibidos há três anos na sequência dos violentos incêndios que assolaram o país. É, no entanto, uma tradição que teima em resistir à lei, talvez porque o fascínio do fogo é maior que o risco de transgressão. Ritual cumprido entre amigos ou família, o lançamento de balões exige prática já que o acender deficiente da mecha queimará o papel. Antes da industrialização das práticas de São João os balões eram feitos em família com paciência de artesão. A importação recente da China a baixo custo aniquilou a produção caseira e é, num certo sentido, um regresso às origens. O lançamento de balões é uma prática nascida naquele país asiático cuja chegada a Portugal se perdeu na voracidade dos tempos.

Cascatas

Presépios com o Santo António, o São Pedro e o São João no lugar da sagrada família e dos reis magos. As cascatas começaram por ser um bocadinho de areia no chão com os três santos e com o grito das crianças a ecoar nas ruas: “Uma moedinha para o São João”. Com o passar dos anos a tradição começou a enraizar-se. A água começou a fazer parte da cascata e estas são as teorias sobre o uso da mesma: é um elemento que faz parte dos rituais do São João, nos banhos das fontes e nos rios tomados antes do nascer do sol; Liga as Cascatas à Igreja Católica, por ser um elemento ‘purificador’ e com o qual Jesus foi batizado; e há ainda quem diga que a estrutura da cascata representa o relevo da cidade Invicta.

Em 1869 foi feita nas Fontaínhas a primeira grande cascata. As ideias surgiram, a população entusiasmou-se e até hoje são construídas cascatas de diversos tipos e feitios

Caldo Verde

Os fios da couve galega e as rodelas de chouriço são imagem de marca do tradicional caldo verde, um dos pratos obrigatórios na noite de São João. Mas as tradições reinventam-se e este prato típico português não é exceção. Um dos caldos verdes mais originais é do café portuense A Brasileira. À primeira vista, parece tratar-se apenas de um creme de batata. É preciso mexer a sopa para que os fios de couve se revelem e o prato comece a tomar a forma que lhe conhecemos.

As sardinhas!

Sardinha no pão e pimento na salada. Os portugueses não dispensam a sardinha em dia de São João, São Pedro e Santo António. A relação entre esta espécie tão apreciada em Portugal com as celebrações do 24 de junho é desconhecida.

Sendo a primavera a época alta da sardinha, é provável que se tenha tornado também no prato preferido nas festas dos Santos Populares por existir em mais abundância

História

A primavera é uma época associada ao amor e com um Santo cuja ‘especialidade’ é arranjar casamentos, nada melhor que “a erva dos namorados” para adoçar a boca da amada. A tradição conta que os rapazes compravam o manjerico num pequeno vaso e o ofereciam às raparigas.

Pode-se ou não cheirar o manjerico?

Dizem que cheirar um manjerico pode matar a planta e que por isso devemos afagá-la com a mão. Não passa de um mito e, por isso, não é verdade. No entanto, é importante ter em conta que a planta dá-se mal com a proximidade do álcool e do alho e que, por isso, não se dá bem com o... mau hálito.

Perdeu-se a mão no teu peito
Em busca do coração,
amor cego, amor-perfeito
em noite de S. João.
S. João! Se és meu amigo
tens que fazer-me um favor
Faz com que venha depressa
P'ra junto a mim meu amor!
Deixa falar quem desdenha
Da fogueira que acendemos
Tu deste o lume, eu a lenha
Do mundo nada devemos!
Meninos dos bairros pobres,
Pobres bonecos de louça
Que andais a pedir uns cobres:
São Joãozinho vos ouça!
Podar as flores mal comecem a nascer
Deixá-lo num sítio onde haja muita luz, mas cuidado com a exposição ao calor intenso
Colocá-lo num prato com água para manter a humidade. Nunca regue as folhas
Deve regar sempre de manhã ou ao fim do dia (nunca nas horas de muito calor)
Transplantar o manjerico para um vaso de barro para que as raízes respirem e não haja acumulação de fungos
Manjerico Manjerico

Alho Porro

Num tempo em que não se sonhava que o plástico ia dominar o São João, com a invasão dos martelinhos em polímeros sintéticos, já o alho porro existia na festa. No início, a celebração pagã era dominada pelos aromas: do manjerico, da erva-cidreira e do… alho porro.

A História:

Antes da celebração cristã já os celtas assinalavam, no período que coincidia com o São João, o solstício do Verão. E, claro, era pelo fogo, em exuberantes fogueiras, que se celebrava a chegada da nova época e onde se queimavam vegetais aromáticos incluindo o alho.

  1. 1Nem todos conhecem o alho porro, mas se explicarmos que se trata de um vulgar alho-francês espigado talvez não seja um vegetal assim tão estranho dos portugueses.
  2. 2O maior conhecedor das tradições do Porto, o historiador Germano Silva, explica que o alho porro chegou ao São João por há décadas, quando os arrabaldes da “invicta” eram campos, o alho crescia – e espigava – em abundantes quantidades.
  3. 3A forma do alho porro – a cabeça na base, o caule esguio e o espigo arredondado era usado para se aproximar do rosto dos foliões em jeito de cumprimento.
  4. 4Diz a tradição que o alho que se leva para a festa deve regressar a casa. Aí deve ser colocado atrás de uma porta. Tal protegerá o lar contra o mau-olhado.
Manjerico

Fogo-de-artifício

O monumental fogo-de-artifício no Porto e em Gaia é, sem dúvida, um dos pontos altos das celebrações do São João. A cascata de fogo que brota do tabuleiro superior da ponte Dom Luís, pouco depois da meia-noite do dia 23 de junho, é um espectáculo inesquecível. O espectáculo, que agora também emerge em plataformas flutuantes no Douro, junta milhares de foliões nas margens do rio e quem já viu a festa sabe a razão. O vale feito de reflexos entre a Ribeira e a Sé, no Porto e a Serra do Pilar, em Gaia, enche-se de reflexos que são uma bela homenagem ao solstício de Verão que se celebra.

Regata

Tradição recente – soma apenas umas quatro décadas -, a Regata dos Barcos Rabelos é já um evento incontornável das festas da cidade do Porto. Os ‘skippers’ representam as várias casas de vinho do Porto e comandam orgulhosamente as embarcações tradicionais que outrora transportaram com riscos vários as pipas do mais famoso néctar nacional desde o Douro até às caves de Vila Nova de Gaia. Por ser um barco de rio, o rabelo não tem quilha e o seu tamanho ronda os 20 metros e exibe uma vela quadrada. A tripulação de meia dúzia de homens manobrava com mestria a embarcação de maneira nas águas rápidas e traiçoeiras de um Douro que ainda não tinha sido amansado pelas muitas barragens.

Os belos barcos deixam agora uma vez ao ano o cais de Gaia para se deslocarem às águas entre a Afurada e a Cantareira e fazerem a corrida entre a Arrábida e a ponte D. Luís. A falta de vento, que muitas vezes cancela a regata, é hoje o pior inimigo destes modernos marujos de água doce.

Amanhecer

É preciso muita resistência para cumprir todos os rituais da noite mais longa do ano. Comer sardinhas nas Fontainhas, ver o fogo-de-artifício na Ribeira, subir aos Aliados para o concerto da noite, descer os Guindais para umas cervejas ou passar pelo arraial no casario de Miragaia é programa obrigatório para quem se quer aventurar na multidão de martelinhos em punho. Dar um salto à rotunda da Boavista para uma partida de matraquilhos ou umas farturas tardias já exige do folião alguma preparação física e resistência às comidas fora-de-horas e, sobretudo, às bebidas variadas.

A noite vai caminhando e só profissionais da festa cumprem o ritual de caminhar – e parar para abastecer – ao logo da marginal do Douro já com a madrugada avançada.

Muito poucos são os que chegam à meta da festa, já com o dia a nascer timidamente, nos areais atlânticos: Carneiro, Praia da Luz, Homem do Leme ou Castelo do Queijo, os desistentes vão ficando pelos areais a cumprir, muitas vezes já sem lembrar, a celebração do solstício de Verão.

A Minha História

Entre o Porto e Braga, as duas cidades onde o São João se celebra mais intensamente, o músico, poeta e advogado Adolfo Luxúria Canibal recorda ao CM a sua ‘tumultuosa’ relação com o santo. Apesar de só ter vivido “verdadeiramente” o São João na adolescência, Adolfo recorda a festa. Quanto mais não seja porque a aproveita agora para ‘fugir’ da cidade invadida por foliões.

Vozes

O ‘boom’ do turismo e da imigração trouxe sotaques vários à mais popular festividade do Porto. Foliões dos quatro cantos do mundo juntam-se à população local para saborear as sardinhas e o caldo verde, calcorrear as ruas ou fugir das exóticas marteladas que surpreendem que chega ao Porto numa noite de São João.