O casal Filipa e Miguel e a sua filha de 8 anos, Ana (nomes fictícios), “dão colo” a um menino de 6 anos com necessidades especiais que veio de uma instituição da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). O facto de saberem que a criança só ficará com eles até a família de origem estar pronta para o ter de volta, ou, até, seguir para adoção, não os dissuade. “Tudo o que se faz com o coração não tem preço”, afirma Filipa. “Quem tem o privilégio de entrar nas famílias de acolhimento é abençoado pela experiência que vive.”
Uma aventura que começou quando Miguel ouviu a publicidade ao programa de acolhimento familiar LxAcolhe, da SCML, na rádio. Para Filipa, que sempre sonhou passar pela experiência de ter uma criança não biológica, o “sim” foi imediato e a filha do casal, com 8 anos, esteve envolvida na decisão desde o primeiro momento. “Candidatámo-nos, fizemos a sessão de esclarecimento e temos mais uma criança lá em casa.”
Filipa e Miguel não podem adotar o menino de 6 anos que já os conquistou. As regras estão bem definidas desde o início. “É inevitável haver uma ligação materna e familiar, mas ele sabe que não vai ficar ali para sempre e que a minha filha, não sendo irmã, é ‘irmã do coração’”, refere Filipa.
Sabem que, mais cedo ou mais tarde, terão de o deixar ir. Mas “estamos aqui, enquanto precisar de nós”.
Esse é, aliás, um dos requisitos: para se ser família de acolhimento não se pode ser candidato a adoção. Uma das razões é “proteger a prioridade de famílias que são candidatas a adoção há muitos anos e que ficariam prejudicadas”, explica Ana Gaspar, diretora do Núcleo de Acolhimento Familiar da Santa Casa.
A medida de acolhimento familiar, apesar de se destinar a qualquer criança ou jovem em risco que precise de ser acolhido, prioriza, de acordo com a legislação, as crianças dos 0 aos 6 anos.
Ao contrário da adoção, o acolhimento familiar é sempre uma solução temporária que dura apenas o tempo necessário até haver condições de reintegração da criança na família biológica ou, caso tal não seja possível, até à chegada de uma família adotiva.
A sessão contou com a participação da psicóloga Susana Pimenta
Estas famílias ficam responsáveis “por satisfazer todas as necessidades da criança (emocionais, físicas, de saúde, de educação) numa lógica de parentalidade plural, pois a família biológica continua, na maioria das vezes, a ter um papel a desempenhar”, refere a psicóloga do Núcleo de Acolhimento Familiar da SCML, Susana Pimenta.
Cerca de 1.400 crianças estão em casas de acolhimento no distrito de Lisboa. Só com a ajuda de famílias que tenham amor, afeto e segurança sem limites para dar, é que o acolhimento familiar da Santa Casa consegue defender crianças em risco, promovendo os seus direitos, garantindo-lhes um ambiente familiar saudável e harmonioso, essencial ao seu bem-estar físico e emocional, e evitando a sua institucionalização.
Ser família de acolhimento é para quem quer muito. Mas é também para quem pode. “Ter uma criança na família é um desafio significativo. Daí o crivo apertado, de forma a garantir que estão reunidas as condições”, reforça a diretora Ana Gaspar.
Os candidatos são convidados a assistir a uma sessão de esclarecimento na sede da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Na última sessão, a 15 de março, estiveram presentes 13 potenciais famílias de acolhimento na Sala de Extrações da SCML, onde Ana Gaspar, Susana Pimenta e a assistente social Vanessa Rosa explicaram detalhadamente todo o processo, numa primeira abordagem que visa dar espaço à partilha de informação e à reflexão profunda, necessárias à tomada de decisão de forma esclarecida.
Quando as famílias decidem avançar, passa-se à formação inicial, à avaliação psicológica dos candidatos e à fase de “home study” com visitas técnicas à habitação e envolvimento do núcleo familiar. Uma vez selecionados, entram na bolsa das famílias de acolhimento e a Santa Casa faz o “matching” com crianças, geralmente sinalizadas pelas instituições onde se encontram ou pelas quais são acompanhadas.
Na sessão de esclarecimento, à medida que as perguntas despontam da plateia, Filipa emociona-se ao falar da experiência com o menino de 6 anos. “Está a ser muito positivo, tanto a interação connosco como a relação parental com a família de origem. Enquanto estiver lá em casa é tratado como filho. Estamos aqui para ele o tempo que for preciso, incondicionalmente. Mas não há mentiras.”
Os desafios são muitos. “A criança leva uma bagagem muito grande de situações graves que vivenciou e há todo um processo de construção e aprendizagem progressivo, sempre trilhado a par e passo com a equipa de acompanhamento - um psicólogo e um técnico do serviço social - que está com cada família do início ao fim”, assegura a psicóloga Susana Pimenta.
Para mais, a família de acolhimento tem de estar preparada para deixar ir a criança e passar a ter outro papel na sua vida, numa transição gradual e acompanhada pela equipa técnica. Não há um tempo limite ou sequer um tempo médio para a duração de um acolhimento familiar. Para Filipa, uma coisa é certa: “Apesar de ser sempre uma passagem, aquilo que nós demos ficou lá.”
Se há deveres a cumprir, também existem direitos. Além da formação contínua e do acompanhamento técnico, a família de acolhimento tem direitos garantidos, como o direito a um apoio financeiro, a benefícios nas deduções do IRS, a faltas justificadas se a criança que acolheu estiver doente e precisar de a assistir, entre outros.
Mas o maior benefício não é materializável, como explica Filipa: “É receber muito mais do que aquilo que se dá quando se faz a diferença na vida de alguém. Por isso ficamos sempre a ganhar.”
Em Portugal apenas 3% dos acolhimentos são em família, a esmagadora maioria acontece em instituições, as chamadas “casas de acolhimento”. Uma tendência que é preciso “inverter”, refere Ana Gaspar, diretora do Núcleo de Acolhimento Familiar da Santa Casa.
Quando iniciou o Projeto de Acolhimento Familiar na SCML?
Começou em novembro de 2019, com apenas três famílias de acolhimento que se aproximaram de nós voluntariamente. A primeira e a segunda campanhas de captação de candidatos foram um sucesso enorme. No ano passado não obtivemos o mesmo sucesso, porque muitas famílias quiseram acolher crianças vindas da Ucrânia.
O projeto só abrange a área da Grande Lisboa?
No final do ano passado, a Segurança Social estabeleceu acordos de cooperação com várias instituições particulares de solidariedade social (IPSS) que se vão também constituindo como instituições de enquadramento. Portanto, vamos passar a ter instituições espalhadas pelo país prontas a dar respostas de acolhimento familiar e não só em Lisboa e Braga.
O número de famílias de acolhimento tem vindo a crescer?
Desde 2019, a tendência tem sido sempre de crescimento, infelizmente não com a rapidez que gostaríamos. Atualmente temos 80 famílias de acolhimento distribuídas por vários concelhos, a grande maioria na cidade de Lisboa. Se as 25 candidaturas em curso forem aprovadas, ficaremos com um total de 100, a nossa meta inicial. Não é suficiente, de todo. Mas é um caminho pioneiro que estamos a construir com segurança.
E o número de crianças acolhidas, também tem aumentado?
Tem vindo a aumentar sempre. Atualmente estão acolhidas 72 crianças mas já passaram pelas nossas famílias de acolhimento 120 crianças.
Existe um padrão nas famílias que se candidatam?
Qualquer pessoa com mais de 25 anos, sem relação de parentesco com a criança, avaliada e selecionada para o efeito pode ser família de acolhimento, e temos famílias muito variadas, de todos os estratos sociais, de todas as tipologias - desde casais com e sem filhos, monoparentais, casais homossexuais, com e sem experiência parental, etc.
Isto é muito bom porque também temos uma grande diversidade de crianças e os “matchings” tornam-se mais ricos.
Qual é a realidade do acolhimento familiar em Portugal?
Em Portugal, só cerca de 3% dos acolhimentos acontecem em famílias de acolhimento (em Espanha são 60% e na Irlanda 90%), o que significa que a esmagadora maioria das crianças que não podem estar na sua família de origem está em instituições ou casas de acolhimento. No distrito de Lisboa, estão cerca de 1.400 crianças e jovens nessas casas, das quais cerca de 300 têm menos de 6 anos. É urgente inverter esta tendência.
Quais são os objetivos do programa LxAcolhe?
Garantir que todas as crianças e jovens que necessitem de uma medida de colocação no distrito de Lisboa sejam colocadas em famílias de acolhimento, priorizando as crianças dos 0 aos 6 anos. A evidência científica e a legislação apontam no sentido de privilegiar o acolhimento familiar em detrimento do institucional, uma vez que todas as crianças têm o direito a ter satisfeita a necessidade de se vincular a alguém, capaz de a amar e dela cuidar; nenhuma criança cresce de forma saudável e harmoniosa numa instituição. E os estudos comprovam que o impacto da institucionalização em crianças muito pequenas, especialmente nos bebés, é ainda mais nefasto.