O apartamento no Lumiar, em Lisboa, tem três quartos, uma sala decorada em tons leves, cozinha equipada e uma marquise com as máquinas de lavar. É ali que Nelson Ferreira, de 42 anos, que andou dentro e fora do sistema prisional desde os 18, está a aprender coisas básicas como cozinhar para si e para os outros, arrumar e limpar o que suja, fazer compras, deitar-se cedo para ir trabalhar. Nelson é um dos três residentes nesta casa de transição para antigos reclusos, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), a única com esta vocação em todo o país. A lotação não está completa porque a seleção dos candidatos é muito exigente: não basta terem cumprido a pena de prisão para passarem na avaliação de Lina Matoso, a educadora social da SCML que é diretora da residência.
Depois de passarem no “exame” são informados das regras da casa onde vão permanecer apenas um ano, embora exista flexibilidade para ficarem uns meses mais. Não pagam renda nem a alimentação que confecionam mas, como explicou a diretora Lina Matoso, “têm de encontrar trabalho e poupar uma parte do salário todos os meses para depois, quando saírem daqui, conseguirem arrendar um quarto”. E enquanto ali estão, são obrigados a regressar todos os dias a casa até à meia-noite, sendo que está sempre de serviço um monitor da SCML para verificar o cumprimento das regras.
“No princípio, foi um bocado difícil ter de cumprir o horário da meia-noite porque vim de um espaço fechado, e queria era sair, mas respeitei e agora acho que são regras normais”, diz Nelson Ferreira, que está na casa há apenas dois meses, desde que terminou a última pena de dois anos, decretada por ter violado os termos da liberdade condicional. Tem uma postura e sorriso serenos para quem já cumpriu três penas de prisão por crimes como furtos e agressões em cadeias como o Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) ou Pinheiro da Cruz.
“Estou a trabalhar numa firma de limpezas e faço turnos de seis horas, ou de manhã ou de tarde. Ganho um pouco menos que o ordenado mínimo porque não faço as oito horas”, conta o antigo recluso.
“A primeira vez que fui preso tinha 18 anos. Era toxicodependente”, conta, acabando por admitir que foi condenado a uma pena de cinco anos por ofensas à integridade física. Saiu com 22 anos, envolveu-se com uma mulher toxicodependente e voltou ao “caos”, como descreve. “Depois deixei-a e fui viver para o Cais do Sodré para uma comunidade freak com vários estrangeiros, o que só aumentou o caos. Metia cetamina e speed, as drogas de festas, na altura.” Entrou numa espiral decadente. “Fui viver para Mem Martins, voltei a consumir heroína e cocaína, meti-me nos furtos para pagar as drogas e tive a segunda detenção.” Da segunda vez, cumpriu oito anos de prisão de uma pena de 10, entre o EPL e Pinheiro da Cruz - penitenciária onde estão presos homens por crimes muito graves, como homicídios e assaltos à mão armada. “Trabalhei em Pinheiro da Cruz na secretaria e nas obras mas o ambiente é mais pesado do que no EPL. São pessoas condenadas a penas de 10 a 25 anos.”
À terceira é de vez… assim espera Nelson. Violou os termos da liberdade condicional da segunda pena, por se ter envolvido em agressões, e acabou detido mais uma vez, em 2020, para cumprir mais dois anos de prisão. “Dessa última vez fui para o EPL e foram os meus colegas da ala prisional que me falaram do apartamento da Santa Casa. Fiz um requerimento às assistentes sociais da prisão e aqui estou.”
Nelson gosta do “bom ambiente” da casa. “Dou-me bem com o colega de quarto. Aprendi a cozinhar aqui, faço uns pratos básicos”, conta, entre risos. O seu colega de quarto, que também está empregado, na restauração, cumpriu pena por tráfico de droga e violência doméstica. O terceiro residente da casa é um jovem de 28 anos que está a tentar entrar na área da hotelaria.
Nelson já projeta a sua vida fora das paredes desta zona de conforto, sabendo que vai ser duro: “Só posso estar nesta casa um ano. Vou tentar arrendar um quarto mas terá de ser fora de Lisboa, aqui está impossível.”
Na parede do quarto, pôs em destaque uma foto de adolescente com os seus irmãos. É a esta imagem de candura juvenil que volta sempre que precisa.
Lina Matoso é diretora de dois apartamentos de transição da SCML desde 2018, ambos no mesmo prédio do Lumiar, em Lisboa: um apartamento para ex-reclusos e outro para jovens que tiveram percursos de institucionalização, neste caso, dos 18 aos 25 anos. As residências fazem parte da resposta de emergência da Santa Casa. Pela casa de transição para ex-reclusos já passaram 43 antigos presos nos últimos quatro anos. A maioria reinseriu-se na sociedade, segundo a responsável.
A casa para antigos reclusos funciona desde 2006. A quem é destinada?
É para antigos reclusos dos 25 aos 49 anos, que tenham cumprido penas não superiores a oito anos e não tenham sido condenados por crimes de sangue, violações ou abusos sexuais nem tenham patologias psiquiátricas muito sérias. Temos cinco vagas permanentes para ex-reclusos e uma para reclusos com saídas precárias.
Quais os crimes mais frequentes que cometeram?
Furtos e tráfico de droga, sobretudo.
Aqui aprendem regras para a vida?
Sim, aqui ajudamos inclusive a tirar o cartão de cidadão. O que queremos é que sejam cidadãos plenos, autónomos: eu trabalho, eu ganho, eu desconto. Por isso pedimos que façam uma poupança não inferior a 300 euros mensais que retiram do salário.
Lina Matoso, diretora da casa de transição para ex-reclusos
Como são selecionados?
Eles são sinalizados e vamos aos EP fazer a avaliação, ainda com eles em reclusão. A vaga para um recluso em saídas precárias serve para termos convivência: antes de saírem já estamos a intervir.
Já aconteceu um deles ficar alcoolizado ao segundo dia de precária e ter de voltar à cadeia. Também tive outro que veio de precária e roubou todos os tachos e panelas que tínhamos guardados para os vender na feira da Ladra.
Quantos já passaram pela casa desde 2018?
Desde 2018 tivemos 43 reclusos. Todos têm sucesso com exceção de quatro que voltaram à prisão. O tempo limite de um ano na casa pode ser superado por vezes.
Ajudam-nos a arranjar emprego?
Sim, procuramos integrá-los no mercado de trabalho e por isso temos acordo com instituições como a Cais, por exemplo. Claro que o registo criminal é sempre complicado porque é pedido até para a limpeza de um banco, por exemplo, ou para call centres, o que se compreende. Mas já conseguimos, por exemplo, que dois deles, mesmo com cadastro por trá co de droga, fossem para a Galp porque a Galp é uma empresa solidária. Foram ambos para o atendimento de postos de gasolina.
E as suas famílias aceitam-nos de volta?
Alguns conseguem essa aceitação depois de já estarem integrados no mercado de trabalho. O mais novo que tivemos aqui tinha 27 anos e o mais velho 45. Tivemos aqui um residente que foi preso por tráfico e regressou à empresa de transportes de onde tinha saído porque confiavam nele. O mercado de trabalho é a base para depois terem uma vida normal.
Aqui recebem formação para ir a entrevistas de emprego, por exemplo?
Temos uma educadora social que faz com eles os currículos e os monitores também vão fazendo esse treino porque estão habilitados. Os ex-reclusos treinam a forma como falam, a forma de vestir, o corte de cabelo, o banho diário e tarefas como a lavagem da roupa ou a ida ao supermercado. Enquanto não têm emprego, damos um pequeno subsídio para aquisição de vestuário, produtos de higiene, entre 70 e 100 euros. Porque o resto têm tudo aqui, inclusive os alimentos para confecionarem. Depois vão à junta de freguesia buscar atestados de residência, vão ao centro de emprego, inscrevem-se no centro de saúde. É uma aprendizagem.