Através da arte, crianças, adolescentes e adultos em sofrimento psíquico e ou emocional, utentes da unidade de saúde mental Wmais, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), libertam-se e fortalecem-se em palco. É para proporcionar essa experiência que existe o projeto ExperimenArte da SCML . A sua terceira edição decorreu no último sábado, no Teatro Armando Cortez, em Lisboa, com a exibição da peça de teatro “ABC do Amor”, inspirada nos desenhos de um rapaz de 15 anos, quase incapacitado dentro do seu corpo-prisão mas ainda com o espírito e mãos livres para dar asas às suas criações.
Jesualdo Vieira, mais conhecido por Ju, é um dos três casos de doentes com miosite ossificante progressiva em Portugal. Ju é um adolescente normal preso num corpo. Esta doença leva, na sua progressão, a que as articulações e músculos se transformem em osso. No caso dele, a doença já avançou ao ponto de lhe afetar a mobilidade e, agora, a fala, porque a ossificação da nuca está a atingir o maxilar. Ju tem todo o acompanhamento de que necessita numa instituição de acolhimento residencial da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) para crianças e jovens, em alguns casos vítimas de maus tratos ou negligência.
Ju foi envolvido no projeto ExperimenArte por ser também utente da unidade Wmais que frequenta em consultas de psicoterapia onde aprende a viver com a sua doença. Significa fortalecer-se psicologicamente para aceitar uma condição clínica progressiva em que, no último patamar, a ossificação atinge a zona dos pulmões e do coração e o doente deixa de respirar.
Filipe Cardoso Silva, psicoterapeuta na unidade de saúde mental Wmais, da Santa Casa, mentor do ExperimenArte, convidou Ju para participar como estrela principal nesta edição. “Montámos uma exposição com os desenhos do Ju que precedeu a peça de teatro onde ele e outros utentes entraram”, contou Filipe. A pintura dos desenhos ficou a cargo de Filipa Afonso, cuidadora e parceira artística habitual do jovem.
“No ExperimenArte temos um conceito diferente: os miúdos e adultos utentes da Wmais e os técnicos da Santa Casa vão para palco e quem está por trás da encenação são artistas profissionais. Estes são escolhidos a dedo porque sabemos que conseguem ter a capacidade de serem secundários”, explica Filipe Cardoso Silva.
Este ano, os atores profissionais em palco foram Natália Luísa, do teatro Meridional, Cláudia Semedo , da Companhia de Atores de Algés, o casal Afonso Lagarto e Brienne Keller, com o filho bebé Noa, de 8 meses, e ainda Catarina Barros, psicóloga que integra a equipa da UAACAF - Unidade de Adoções, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar - e aque é atriz nas horas vagas. Como sempre acontece no ExperimenArte, depois da peça realizou-se uma tertúlia, onde os convidados discutiram os temas abordados no projeto artístico.
O primeiro Encontro ExperimenArte aconteceu em 2017 e a organização foi buscar a temática do abandono com uma peça intitulada “Adeus, Pai”. “Fizemos uma adaptação do filme de 1996 ‘Adeus Pai’ do Luis Filipe Rocha, sobre a dificuldade de ligação da figura paterna com o filho e convidámos o elenco do filme a participar. Depois organizámos uma tertúlia com esses atores que já não se viam há 20 anos”, recordou o psicoterapeuta Filipe Cardoso Silva, da Wmais, organizador do evento. Na segunda edição, de 2019, o tema da peça foi “O que pode o Amor perante as agruras da vida”. “Pegámos em sketches dos Gato Fedorento. Por exemplo, no ‘Homem que Mora no Cimo da Montanha’ , o Pipas, e que ao descer se esquece da bandeira para colocar como marco quando chega à planície. Procura colocar em causa os valores tradicionais, o que é ser melhor, ser mais forte, mais capaz?”.
Depois da pausa dos dois anos de pandemia covid-19, a terapia de experimentar a arte em palco foi retomada para servir crianças, jovens e adultos. “O objetivo é que os miúdos possam vivenciar um momento em palco uma vez na vida. Convidamos sempre artistas para encenarem a peça connosco. Na edição de 2019 tivemos a Inês Castel-Branco, o Afonso Lagarto e a mulher, Brienne Keller. Por exemplo, havia uma miúda que tinha muita dificuldade em ir para palco e então fizemos a gravação da voz off dela. Como suplente, tínhamos a Inês Castel-Branco pronta para atuar se não resultasse. Valorizamos a participação de todos e não o resultado estético final. Os artistas profissionais participam em voluntariado”, conta Filipe Cardoso Silva. A maior compensação é o sorriso dos miúdos.
Ju com a atriz Natália Luísa durante a exibição da peça “ABC do Amor” no teatro Armando Cortez
Ju está acolhido numa das 19 unidades de acolhimento residencial da SCML. Um exemplo de instituição é a Casa dos Plátanos, instalada num palacete centenário do Alto do Pina, em Lisboa e com 16 anos de existência. “O mais novo dos utentes tem 4 anos e o mais velho tem 15”, adiantou Mafalda Serra, diretora da Casa dos Plátanos. Para além de crianças vítimas de maus tratos e negligência, retiradas às famílias pelos tribunais, a “família Plátanos”, como diz Mafalda, “acolhe também casos de abuso, deficiências e problemas de saúde”. Nas medidas de acolhimento residencial, os jovens podem ficar na instituição até aos 25 anos, embora os mais velhos sejam orientados para apartamentos de autonomia da Santa Casa. Quando necessitam de apoio a 100% para todas as tarefas é feita uma articulação com os serviços de saúde. Mafalda Serra referiu ainda que a Casa dos Plátanos conta com uma equipa técnica composta por uma psicóloga e uma assistente social, cinco técnicos superiores que são educadores sociais e educadores de infância e uma profissional na área da psicomotricidade, seis auxiliares de educação que são técnicos de ação educativa, e quatro técnicos de ação educativa fixos à noite. “Há sempre duas pessoas de turno à noite”, refere a diretora. No corpo de pessoal constam ainda duas auxiliares de serviço geral que tratam da roupa e limpeza da casa, uma cozinheira e um motorista de uma carrinha adaptada com rampa.
Os desenhos de Ju foram expostos no teatro Armando Cortez, em Lisboa