Os prémios Nunes Correa Verdades de Faria, que valorizam projetos de ação social, têm na sua génese o apelido da mulher de Enrique Mantero Belard, milionário que foi um dos maiores beneméritos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) no século passado. As candidaturas para a edição deste ano estão abertas até ao dia 15 de abril.
Enrique Mantero Belard, que nasceu em berço de ouro, teve uma história de vida fascinante que se pode ler no livro “Enrique Mantero Belard”, da Coleção Beneméritos, editado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), da autoria de Ana Gomes. Enrique Mantero Belard nasceu em 1903, em Lisboa, filho do espanhol D. Francisco de Assis Diego José Maria del Rosário Mantero y Velarde, oriundo de Cádis, e de D. Maria Amélia Muller Belard. Foi o sexto de sete irmãos.
A autora do livro, Ana Gomes, conta, em entrevista ao Correio da Manhã, que o avô de Mantero Belard fez parte do “pioneiro punhado de proprietários que promove São Tomé e Príncipe à categoria de uma próspera colónia-plantação, na qual o cacau é a principal fonte de riqueza”.
Vindo de Espanha para São Tomé e Príncipe, Francisco d’Assis Belard foi conselheiro de João Maria de Sousa e Almeida, natural da ilha do Príncipe e “descendente de uma família mestiça abastada oriunda do Brasil que se tinha fixado na colónia portuguesa ainda em finais do século XVIII”.
“Em menos de meio século, o cacau transformou-se numa verdadeira árvore da fortuna, dando azo à construção de enormes riquezas que se foram acumulando nos cofres de um grupo reduzido de roceiros, dos quais fazia parte Francisco d’Assis Belard, co-fundador das roças de Santa Margarida, Monte Macaco e Maianço em associação com Manuel Joaquim Teixeira, ainda em finais do século XIX”, explica Ana Gomes no livro. À data da morte do pai, em 1928, Enrique Mantero Belard tinha 25 anos e estudava Engenharia em Cambridge. Coube-lhe a ele e ao irmão Carlos ficar ao leme da Sociedade Comercial Francisco Mantero.
União apaixonada
Três anos depois, Enrique viria a casar com Gertrudes Eduarda Verdades de Faria, “descendente de uma família de diplomatas e de gente da cultura”, explica Ana Gomes. Ao que tudo indica - e de acordo com os testemunhos recolhidos para o livro - Enrique e Gertrudes eram dois opostos. Ele era “muito reservado, discreto, mas também amável, educado e cordial”, enquanto ela era “alegre e extrovertida”, com “um espírito jovem e aberto”. “Completavam-se”, assegura Ana Gomes.
Segundo os relatos dos familiares e dos empregados da casa, com quem tinham uma relação próxima, “viveram um casamento muito apaixonado”: “O escritório de Mantero Belard era na Baixa. Ele saía de casa, no Monte Estoril, e ia de comboio. O motorista ficava em casa, para depois levar a esposa de Enrique, que ia sempre almoçar com o marido. São estes pormenores que indicam uma ligação muito próxima. O desespero em que ele ficou depois da morte da mulher também é indicativo do teor da relação deles”, diz Ana Gomes.
Numa fatalidade quase poética, morreram ambos de ataque cardíaco. Gertrudes Eduarda faleceu em 1967, deixando Enrique Mantero Belard viúvo após 35 anos de casamento: “Com a morte da mulher, Enrique deixou de ir ao escritório, mas os negócios continuaram a prosperar. Talvez tenha delegado. Fechou-se em casa, embrenhado na tristeza. No mesmo ano em que a mulher morre, escreve o testamento e começa a estudar formas de aplicação dos legados que, ao que tudo indica, já tinha discutido com a esposa”.
Santa Casa no testamento
Deste amor, nunca nasceram filhos - ninguém sabe explicar porquê. “Não era um assunto discutido abertamente. O que os funcionários dizem é que eles gostavam imenso de crianças e quando um casal de empregados, de quem eram próximos, teve um filho, os patrões foram padrinhos e tratavam-no como se fosse filho”, explica a autora do livro. Por não terem herdeiros diretos, no testamento, “identificaram vários legatários”, estando entre os principais, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, ao mesmo tempo que deixaram indicações expressas sobre o destino a dar a vários dos bens.
“As Misericórdias, desde a sua fundação pela Rainha D. Leonor, constituem emanações da população. Serviam de porto para que os beneméritos, as pessoas de bem, deixassem as ajudas aos pobres”, explica o padre Vítor Melícias, antigo provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e júri dos prémios Nunes Correa Verdades de Faria. “Estes dois beneméritos tiveram a ideia de deixar os seus bens a várias instituições. O principal ‘bolo’ foi à Misericórdia de Lisboa que, com esses donativos, criou uma espécie de fundo para gerir coisas, como o Palácio onde vivia essa família, que é, actualmente, uma residência para artistas idosos. Esse fundo também serviu para criar este prémio”.
O livro que conta a história dos Prémios Nunes Correa Verdades de Faria, edições Santa Casa
Prémios visionários
Criados em 1987, por vontade expressa de Enrique Mantero Belard deixada em testamento, os prémios Nunes Correa Verdades de Faria têm três âmbitos: cuidado e carinho dispensados aos idosos desprotegidos; progresso da medicina na sua aplicação às pessoas idosas e progresso no tratamento das doenças do coração. De acordo com Maria José Almeida, secretária-geral da Santa Casa, este desejo do benemérito “foi totalmente inovador” e, por isso, Mantero Belard foi considerado “um visionário para a época, uma vez que não era habitual este tipo de prémios que promoviam o estudo e a investigação nas áreas selecionadas”.
A preocupação com as pessoas idosas, em duas das categorias, deve-se ao facto de Gertrudes Eduarda Verdades de Faria, “de temperamento generoso e sensível, particularmente atenta aos artistas, idosos e desprotegidos” ter servido de “grande força inspiradora” para o marido. Segundo explica a secretária-geral da SCML, “após a morte da sua mulher, o benemérito tentou compensar o vazio deixado, uma vez que não tinham descendentes, realizando todos os seus desejos, algo que perpetuasse a sua afeição pelos artistas, idosos e desprotegidos, decidindo então doar grande parte da sua fortuna a autarquias e instituições de benemerência e de cultura”.
O terceiro âmbito dos prémios, dedicado ao progresso no tratamento das doenças do coração, deve-se ao facto de tanto Enrique Mantero Belard como a esposa sofrerem de patologias cardíacas, tendo ambos morrido com ataques cardíacos.
O benemérito morreu “um mês depois do 25 de Abril” e, segundo o testemunho do motorista no livro escrito por Ana Gomes, “terá sido essa tensão [da Revolução] que contribuiu para o enfarte”.
Mas o seu legado resiste - e resistirá - muito depois da sua existência. Uma das moradas do casal é hoje a Residência Faria Mantero, um equipamento residencial da SCML destinado a acolher “pessoas idosas, cultas, de mérito e necessitadas” - algo pioneiro não só no universo da Santa Casa como a nível nacional.
Quanto aos prémios, dão destaque, todos os anos, a três pessoas, de qualquer nacionalidade, que, em Portugal, tenham contribuído, pelo seu esforço, trabalho ou estudos para os três âmbitos definidos.
A atribuição destes prémios “tem uma grande importância sobretudo pela força da exemplaridade”, afirma o padre Vítor Melícias, que já presidiu ao júri, enquanto Provedor da Santa Casa e que há décadas se mantém como membro.
3 Prémios de 12.500 €
3 Categorias
Consulte o Regulamento em scml.pt
Diana Breda, vencedora da Área A
Dispensados aos Idosos Desprotegidos: “O prémio ajudou a criar curiosidade nas pessoas sobre o que era um hospital amigo dos mais velhos. Parte da minha motivação tem a ver com o facto de os meus avós serem tão importantes para mim”.
Ana Soraia Vale, vencedora da Área B
Progresso da Medicina na sua Aplicação às Pessoas Idosas: “Trabalho no serviço de apoio domiciliário. Depois de ter recebido o prémio, a visibilidade para esta causa foi enorme. Fui convidada para replicar o que estava a fazer noutra instituição, onde já abriram mais dois postos de trabalho nesta área”.
Francisco Pestana Araújo, vencedor da Área C
Progresso no Tratamento das Doenças do Coração: “ A prevenção é desvalorizada porque os resultados só se vêem a longo prazo. O prémio foi um estímulo para poder continuar a trabalhar nesta área. O valor atribuído ajudou a ter mais sessões de formação. É quase um prémio de carreira, um reconhecimento do esforço de vários anos”.