São profissionais, mães, especialistas em multitarefas. São também as maiores vítimas das perturbações do foro psicológico e psiquiátrico. A pensar numa resposta integrada para a saúde mental das mulheres, há toda uma abordagem inovadora na Clínica de Neurociências e Saúde Mental do Hospital Cruz Vermelha (HCV), em Lisboa, inaugurada há menos de um mês, a 13 de fevereiro. A clínica é coordenada pelo psiquiatra António Lains e conta com uma equipa interdisciplinar que combina a psiquiatria, a psicologia, a neurologia e a neuropsicologia.
“Há tanta culpa nas mulheres. Muitas acham que não são o suficiente. É inspiradora a força que têm para vir ter connosco. É inspirador saber que, apesar de ouvirem comentários depreciativos, continuam a procurar ser mais felizes. E falo de muitas mulheres, sem dizer nomes”, afirma a psicóloga Roberta Frontini, da equipa da Clínica de Neurociências e Saúde Mental.
Na semana em que se celebrou o Dia Internacional da Mulher (8 de março), é importante referir que em Portugal as doenças mentais têm uma prevalência de 22,9%, com o dobro da probabilidade de desenvolvimento de doença psiquiátrica no sexo feminino. São perturbações que podem ser altamente incapacitantes e são sempre geradores de sofrimento.
Fundada no âmbito do Plano Estratégico do Hospital Cruz Vermelha, a Clínica de Neurociências e Saúde Mental oferece uma resposta integrada dos vários saberes para as doenças mentais, com uma avaliação caso a caso e um complemento entre a psiquiatria e a psicologia.
Além da avaliação, também a multidisciplinaridade faz a diferença na clínica, onde também chegam pacientes referenciados por outras áreas, porque há muitas doenças orgânicas com impacto no foro psicológico, e vice-versa. Também “os benefícios da prática de exercício físico e estilo de vida saudável ligado à alimentação, sono e relações humanas positivas são tidos em consideração. Gostamos de trabalhar em colaboração com os profissionais dessas áreas para tentar melhorar a vida da pessoa no seu todo”, realça Roberta Frontini.
O “cocktail” que leva à ansiedade e depressão
A pandemia da covid-19 afetou desproporcionalmente a saúde mental das mulheres (83%) face aos homens (36%), segundo o “Índice de Saúde Mental Headway 2023”, divulgado em 9 de outubro de 2021.
Tarefas domésticas, cuidar dos filhos, sobrecarga do trabalho, elevada pressão social e, muitas vezes, solidão contribuíram para o desequilíbrio. A somar a estes, os fatores biológicos, nomeadamente os hormonais relacionados com momentos de maior vulnerabilidade ao longo da vida (puberdade, gravidez, perimenopausa e menopausa), o aborto, as questões relacionadas com a maternidade. Como sublinhou a psicóloga Roberta Frontini, a pandemia veio “desmascarar a desigualdade de género” e denunciar que “a maior presença das mulheres no mercado de trabalho não veio com uma menor responsabilidade familiar nem com a paridade salarial”. Temos então um “cocktail” de fatores que poderá ajudar a explicar porque doenças como a ansiedade, a depressão ou as alterações do comportamento alimentar (como a anorexia nervosa) são mais diagnosticadas nas mulheres do que nos homens”, explica a psicóloga.
Ser uma mulher multitarefa pode até ser visto como uma qualidade ímpar, mas tem um preço alto a pagar em termos de saúde mental.
Ensaios eram feitos em homens
A verdade é que a desigualdade continua enraizada na nossa cultura. “O corpo do homem sempre foi considerado o modelo e, até aos anos 90 do século passado, a maior parte dos ensaios clínicos de medicamentos eram, na maioria, feitos em homens. Isto continuou implícito e muitos efeitos secundários considerados atípicos nas mulheres não só são uma leitura errada do ponto de vista estatístico, como também do ponto de vista ético e moral”, refere António Lains, médico psiquiatra e coordenador da Clínica de Neurociências e Saúde Mental.
Apesar de se registarem progressos nos últimos anos, “ainda temos este legado negativo, o que faz com que muitos dos problemas das mulheres, como é o caso da perturbação disfórica pré-menstrual, não sejam considerados suficientemente importantes pela comunidade científica, também ela historicamente representada por homens”.
É certo que se fala mais abertamente na saúde mental mas, segundo Roberta Frontini, o tabu ainda existe e estamos longe de “trabalhar os problemas psicológicos da mesma maneira que tratamos as doenças do foro orgânico”, devido ao preconceito e às consequências a nível social e profissional.
Terapias combinadas
Apesar de as perturbações depressivas e ansiosas estarem a aumentar a uma velocidade assustadora, sobretudo nas mulheres, existem soluções que vão das várias técnicas psicoterapêuticas, que ajudam a lidar de forma diferente com os pensamentos negativos e a ultrapassá-los, até à psiquiatria, cujos “tratamentos são muito eficazes, seguros, com mínimos ou nulos efeitos secundários, na maioria dos casos sem potencial aditivo” e que terminam quando o doente recupera a sua funcionalidade e capacidades, garante António Lains.
O coordenador da clínica e a psicóloga Roberta Frontini reforçaram a ideia de que a psiquiatria e a psicologia não são paradigmas diferentes, antes complementares. “Sabemos que, por exemplo, numa depressão moderada, tanto a medicação como a psicoterapia têm eficácia, mas a junção das duas tem efeitos mais rápidos e duradouros. Em função de cada caso e das necessidades de cada pessoa, desenhamos estratégias de tratamento individualizadas”, concluiu o coordenador da clínica.
Qual o objetivo da Clínica de Neurociências e Saúde Mental?
É ter uma oferta diferente em termos de qualidade, mas que também seja acessível: temos parcerias com seguradoras, ADSE e equiparadas.
Tratamos pessoas de todos os géneros e de todas as idades, nas suas diferentes etapas de desenvolvimento - estamos quase a ter pedopsiquiatria - e numa vasta área de intervenção de psicopatologia ou dificuldade de adaptação. Será, também, um centro clínico com o desenvolvimento de atividades de ensino e de investigação.
O psiquiatra António Lains
Em que medida é um projeto inovador no âmbito da saúde mental?
Além da avaliação na consulta, temos um Protocolo de Management Based Care que dá aos pacientes a possibilidade de fazer um estudo mais objetivo através de testes e questionários, cujo resultado é resumido num relatório gráfico. Isto permite-nos ter uma visão quantitativa da patologia e discutir os resultados com o paciente e, por outro lado, elaborar uma estratégia individualizada e ajudá-los a ter uma participação mais ativa no seu processo terapêutico.
A multidisciplinaridade é a única resposta para alcançar a qualidade pretendida, através de reuniões frequentes entre médicos e estagiárias das várias especialidades da clínica, mas também com médicos de outras áreas do hospital. Num futuro próximo, teremos protocolos específicos de referenciação entre as diversas áreas e a saúde mental.
O que podem as mulheres esperar desta clínica?
Acolhemos a diversidade. Todas as pessoas serão recebidas com muita empatia e compreensão, serão devidamente avaliadas e terão uma voz no processo de diagnóstico e na elaboração da estratégia de tratamento individualizado, seja qual for o problema relacionado com saúde mental: desde insónia, dificuldades relacionadas com a alimentação até problemas de ansiedade, perturbações depressivas, dificuldades de memória,perturbações do sono, problemas cognitivos relacionados com o envelhecimento, dificuldades de aprendizagem, problemas com défice de questões relacionadas com a identidade de género.
Trabalhamos, também, a psicoeducação no sentido de dar informação ao paciente acerca do seu problema, contribuindo para a sua recuperação e dando-lhe ferramentas para a manter sem recaídas futuras.
A saúde mental necessita de mais financiamento?
Mais do que o tabu quanto ao ato de pedir ajuda, preocupa-me quando os pacientes pedem ajuda e não encontram resposta ao mais alto nível, das seguradoras ao próprio Estado (SNS). A saúde mental, grave problema de saúde pública, tem um subfinanciamento crónico, cada vez mais significativo e minimamente equiparável ao grau de impacto que tem. Uma das áreas com muito pouco financiamento e comparticipação é a psicoterapia. Ora, se ouvimos falar do aumento do consumo de ansiolíticos e de antidepressivos - e a forma como o reportamos é um estigma, pois ninguém decide ficar doente -, é porque a psicoterapia, importante ferramenta para tratar perturbações depressivas e ansiosas, é subfinanciada. Além de haver poucos psicólogos no SNS.