Médicos contra licenciatura em medicina chinesa
Ordem ameaça com "formas inéditas" de protesto.
A Ordem dos Médicos acusa o Governo de ameaçar a saúde dos portugueses validando cientificamente práticas tradicionais chinesas através de uma licenciatura e admite avançar para "formas inéditas" de mostrar o descontentamento dos médicos.
Em causa está uma portaria conjunta dos ministérios da Saúde e da Ciência e Ensino Superior de validação da criação de ciclos de estudo que conferem o grau de licenciado em medicina tradicional chinesa.
Para o bastonário Miguel Guimarães, a criação de um ciclo de estudos com formação de quatro anos "em práticas que não têm base científica constitui um perigo para a saúde e para as finanças dos portugueses".
O representante dos médicos considera mesmo que isto pode gerar atrasos em diagnósticos e tratamentos de situações potencialmente graves.
"É importante que a população entenda que estes ciclos de estudo não habilitam à prática da medicina, que é exclusiva dos médicos", alerta, em declarações à agência Lusa.
Miguel Guimarães acusa o Governo de "estar a contribuir para um retrocesso sem precedentes" no que é a essência da fundamentação científica de investigação e na evolução da inovação tecnológica e terapêutica própria da medicina.
"É uma atitude irresponsável", afirma, prevendo que irá provocar um aumento da publicidade enganosa.
"A publicidade enganosa irá aumentar de forma brutal, legalizada pelo ministro da Saúde", acrescenta.
O bastonário refere que o ministro Adalberto Campos Fernandes introduz assim "mais um fator de agravamento no desconforto e descontentamento dos médicos" e diz que vai reunir-se com a comunidade médica para decidir "formas inéditas" de manifestarem o seu "profundo desagrado".
A criação do ciclo de estudos em medicina tradicional chinesa é, para a Ordem, uma forma de "induzir as pessoas em erro, criando licenciaturas em terapêuticas que não têm a devida fundamentação científica".
O bastonário afirma não estar a criticar as práticas tradicionais chinesas, mas diz que necessitam de uma investigação científica profunda e de uma regulação, que não significa a criação de licenciaturas.
Miguel Guimarães avisa que a portaria publicada na semana passada pode mesmo pôr em causa as relações institucionais entre a Ordem e o Governo.
"A Ordem fica totalmente legitimada para liderar um processo de oposição firme de todos os médicos a uma política de saúde patológica que não serve os doentes", refere, indicando que a posição foi aprovada com total consenso pelo Conselho Executivo da Ordem.
Ministros da Saúde e do Ensino Superior dizem estar a cumprir a lei
Os ministros da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Adalberto Campos e Manuel Heitor, respetivamente, desvalorizaram hoje, no Porto, as acusações da Ordem dos Médicos relativamente à validação científica de práticas tradicionais chinesas.
"Não faz nenhum sentido agitar a ideia de insegurança dos portugueses apenas e só porque o Estado está a cumprir uma lei da Assembleia da República aprovada sem votos contra em 2013 e que tinha sido aprovada por unanimidade em 2003", disse o ministro da Saúde.
Adalberto Campos Fernandes afirmou que "o que se está a fazer é enquadrar aquilo que não estava enquadrado e pôr-se dentro do sistema aquilo que estava fora do sistema. Se isso não é zelar pela qualidade e pela segurança das pessoas, então o que será?".
Também o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior quis "deixar bem claro que o Governo em Portugal não cria cursos".
"Já passámos há muitos anos essa fase. Nós podemos orgulhar-nos de ter uma agência de acreditação e de avaliação que segue as melhores práticas internacionais e um dos aspetos que obviamente hoje certifica - e que, mais uma vez, estamos a reforçar - é a capacidade científica de qualquer instituição de ensino superior antes de poder dar um curso", referiu Manuel Heitor.
Posição da Ordem Médicos é sectária e nada tem que ver com ciência
A Sociedade Portuguesa da Medicina Chinesa (SPMC) considera "sectária" a posição da Ordem dos Médicos sobre a medicina chinesa e revelou que há médicos convencionais que enviam doentes para a medicina chinesa e recorrem a ela para se tratarem.
"Há posicionamentos sectários por parte das ordens que são compreensíveis do ponto de vista corporativo, mas nada têm que ver com ciência", disse à Lusa António Moreira, da direção da SPMC.
António Moreira respondia às declarações do bastonário da Ordem dos Médicos, que hoje acusou o Governo de ameaçar a saúde dos portugueses validando cientificamente práticas tradicionais chinesas através de uma licenciatura.
Em causa está a publicação de uma portaria conjunta dos ministérios da Saúde e da Ciência e Ensino Superior de validação da criação do ciclo de estudos que conferem o grau de licenciado em Medicina Tradicional Chinesa.
"A posição da Ordem dos Médicos não é seguramente a posição dos médicos que todos os dias enviam pacientes para colegas da medicina tradicional chinesa e não é com certeza a de clínicos que recorrem aos serviços da medicina tradicional chinesa para se tratarem, tal como pessoas da medicina tradicional chinesa recorrem à medicina ocidental para se tratarem", afirmou António Moreira.
O representante da SPMC defende que a capacidade preventiva e de evitar a progressão de doenças da medicina tradicional chinesa "é uma arma poderosa que deve ser usada por todas as instituições de saúde".
Em declarações à agência Lusa, o responsável sublinhou ainda "a coragem de colocar cá fora uma regulamentação da lei que deveria ter sido feita há mais de 10 anos".
Questionado sobre quantos países têm licenciaturas em Medicina Tradicional Chinesa, António Moreira respondeu: "Tal como existe aqui, há provavelmente em mais dois ou três países".
"Mas esse não é o principal problema. As terapias não convencionais foram regulamentadas em Portugal porque as pessoas precisam de separar o trigo do joio e saber com quem podem contar, não confundir uma oferta de curandeiro com uma oferta de alguém que domina um conjunto de procedimentos que vão sendo apurados todos os dias e que foram passando pelo crivo da experiência e do conhecimento", sublinhou.
O representante da Sociedade Portuguesa de Medicina Chinesa lembra ainda que "a humanidade tem quase 10.000 anos e a ciência tem 300", sublinhando: "Há conclusões que a ciência refuta passado algum tempo. A ciência vai mudando".
"O anterior bastonário defendia que isto deveria passar pelo Ensino Superior e passar pelo crivo da ciência. Agora vamos passar pelo crivo da ciência", afirmou.
"Temos formação no ensino superior de um mestrado em medicina tradicional chinesa que existe há 10 anos (...). Não compreendo qual é a preocupação", concluiu António Moreira, considerando que "não faz sentido dizer que a medicina tradicional chinesa não tem base científica".
"Vejam a quantidade de estudos publicados em revistas da especialidade, a quantidade de estudos aleatoriamente controlados para tratamentos da medicina tradicional chinesa e os medicamentos feitos à base da fitoterapia chinesa".
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