Aldina Duarte: “Das poucas alturas em que o fado não me faz bem é quando estou em sofrimento”

‘Quando se ama loucamente’ é o novo disco da fadista, um álbum baseado numa história biográfica, escrito entre o amor e a dor

05 de dezembro de 2017 às 20:42
2017-12-05_20_42.20 aldina.JPG Foto: D.R.
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Há um ano, Manel Cruz (Ornatos Violeta) enviou-lhe um tema, por email, feito a pensar nela, "Quando Se Ama Loucamente". Inesperadamente 

o mote para um novo disco estava dado. AldinaDuarte decide escrever uma autoficção em verso para fados tradicionais, um elogio da paixão, uma história verdadeira onde o tempo e o espaço são ficcionados

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a partir da obra literária de Maria Gabriela Llansol, uma das suas escritoras de eleição. O disco é apresentado dia 8 na Fnac de Almada.

Depois do disco ‘Romances’ [2015], este novo álbum volta a estar muito virado para estas coisas do coração, dos afetos e do amor... A Aldina Duarte está a transformar-se numa cantora romântica!

(Risos) Eu sou mesmo uma romântica. Os meus gostos oitocentistas na literatura e na música, aliás, já são mais do que conhecidos por todos (risos). Esse é um estilo que me agrada muito e quer o disco anterior quer este têm uma ligação muito forte com a literatura.

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Mas com autoras diferentes?

Sim. No ‘Romances’ foi a Maria Do Rosário Pedreira que teve a ideia de fazer um romance em verso para fados tradicionais e agora fui eu que decidi escrever uma autoficção, que não deixa de ser um estilo literário. Ou seja, é muito difícil manter a literatura afastada do meu trabalho. E o tema do amor é, para mim, o grande tema da arte em geral e do meu fado em concreto.

‘Amor’ é, aliás, a palavra que mais se ouve e mais se repete ao longo deste disco, quer o amor verbo, quer o amor substantivo. O amor é a temática mais difícil de se cantar ou muito pelo contrário?

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Eu acho que o difícil é escrever sobre o amor. É curioso porque há tantas coisas tão boas e tão bem feitas que nós ficamos sempre com a ideia que não há mais nada a dizer. Só que o que é miraculoso no amor é que, quando achamos que ele acaba, de repente já lá estamos outra vez (risos). É como se fosse uma fonte inesgotável maior do que nós a todos os níveis. Na arte isso também acontece. Neste disco eu tentei que se entendesse o elogio da paixão, que é uma das formas de amor tão nobre, tão útil e fundamental às nossas vidas como a compaixão ou a fraternidade.

E a paixão tem sido maltratada?

O que me parece é que nas últimas representações que vejo da paixão, acho que ela tem sido tratada como uma coisa desmiolada, que só serve para desestabilizar e para dar problemas. A paixão tem sido tratada como se fosse o vírus do amor e, por isso, é menos levada a sério e considerada menos importante. É verdade que a paixão no faz sair da nossa zona de conforto e que nos leva à descoberta de coisas novas, mas a vida também é muito isto. É claro que não poderíamos viver em estado de paixão permanente, porque nem teríamos energia física para a suportar, mas a paixão não pode ser tratada como uma coisa perigosa.

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Fala de uma autoficção. Isso quer dizer que este disco é autobiográfico?

Sim, sim. Este disco é baseado numa história verídica. Qualquer coincidência com a realidade é pura verdade (risos). É uma autoficção porque é uma história que eu vivi, mas é ficção porque arranjei maneira de dar uma dimensão intemporal a essa mesma história inspirando-me na obra de Maria Gabriela Llansol [escritora portuguesa]. Há vários jogos que fiz com a obra dela. Num deles, por exemplo, criei a personagem de uma fada e vesti-me com a linguagem dela.

E como é que chegou à obra de Maria Gabriela?

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Foi o companheiro desta história que me ofereceu um livro. Portanto, ela acabou por ser a escritora que eu descobri através deste amor e que depois me consolou após a sua parte trágica. Numa fase mais pacificada do meu luto, foi nela que me amparei e isso para mim fez todo o sentido porque foi como se na sua obra ela conseguisse dizer aquilo que eu nunca consegui dizer a ninguém, nem a mim mesma.

Quer dizer que usou este disco para purgar a sua dor?

Eu diria que não. Em nenhum momento me apeteceu remexer nessa história porque tudo isso me soava a ferida esgravatada. Curiosamente, das poucas alturas em que o fado não me faz bem é quando estou em sofrimento. Claro que às vezes a dor também é criativa, mas tratando-se do sofrimento, é muito doloroso ter de cantar. Muitas vezes, acho que não se canta bem. Nessas alturas, se puder, até evito cantar.

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E cantar não dá para enganar a tristeza?

A tristeza dá. O sofrimento não.

Como é que foi para si assumir o processo de escrita deste disco?

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Na verdade, ainda estou muito espantada comigo porque fiz tudo numa semana. Levantava-me mais cedo do que é costume, às sete da manhã, e ia para o Jardim da Estrela escrever. Acontecia-me dormir com um caderninho ao lado, na mesinha de cabeceira, onde tomava notas. De manhã já tinha uma ideia e ia para o jardim trabalhar nela. Ao final de uma semana tinha 11 letras feitas.

E sente que esse ato de escrita foi um ato de exposição?

Não propriamente. Preocupei-me mais em que houvesse ali algo de literariamente interessante. Nunca quis fazer uma espécie de diário privado neorrealista. Sempre preferi que as letras tivessem uma dimensão mais abrangente. Queria um certo espaço de liberdade criativa, embora eu já tivesse uma moral premeditada para esta história.

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E que era?

Uma história não pode ser avaliada, nem para bem nem para mal, pelo seu fim, mas sim pelo seu tudo. E essa ideia esteve sempre subjacente. A outra moral é que, por maior que seja o desespero, a nossa pulsão é para viver. Este disco foi feito no final do meu luto e foi a forma mais bonita que encontrei de eternizar uma história que vale pelo seu todo. E senti tanta necessidade de a contar que acabei por escrevê-la. Sair do luto desta forma foi a melhor maneira.

Este disco surge com uma colaboração improvável, Manel Cruz (Ornatos Violeta). Como é que ele aparece aqui?

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É mais uma fada que me caiu no colo (risos). Eu conheci o Manel há uns anos quando os Ornatos regressaram para fazer os Coliseus. Fui ver o concerto de Lisboa porque gostava muito deles e no final fui conhecer o Manel. Na altura, disse-lhe uma coisa que até nem costumo dizer a ninguém, que ele era uma das pessoas com quem eu mais gostava de trabalhar fora da área do fado.

Porquê?

Porque há uma crueza, uma força e uma ferida qualquer na voz e na escrita do Manel com que eu me identifico. Nesse encontro que tivemos ele garantiu-me que iríamos mesmo trabalhar juntos no futuro. Só me disse que não sabia quando (risos). A verdade é que nunca mais pensei nisso. Depois desse encontro até fiz mais dois ou três discos. Só que há dois anos ele enviou-me um tema por email [‘Quando se Ama Loucamente’]. Disse-me que o tinha feito a pensar em mim mas que se eu não gostasse fazia outro. E eu achei aquilo extraordinário (risos).

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E apaixonou-se logo pelo tema?

Sim, ainda por cima ele vinha gravado no meu tom, o que quer dizer que o Manel conhecia bem a minha voz. Era a prova de que tinha sido feito à minha medida. Esse tema esteve guardado algum tempo, mas quando regressei a ele, a verdade é que mexeu muito comigo. Achei que tinha muito que ver com a minha história e foi ele que acabou por ser a raiz deste trabalho

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