Manoel de Oliveira: "Sou um grande lutador contra a morte"
Realizador foi entrevistado diversas vezes pelos Cahiers du Cinema.
Manoel de Oliveira, que esta quinta-feira morreu aos 106 anos, disse numa das entrevistas concedidas à revista francesa Cahiers du Cinema, ser "um grande lutador contra a morte", evocando todo o seu percurso no cinema.
Numa entrevista publicada na edição de setembro de 2002 dos Cahiers, Manoel de Oliveira dizia que, "enquanto criança, tinha uma inclinação para a tristeza e para a melancolia". Com o tempo, acrescentou, ganhou "gosto pela vida", mas nunca viu "a melancolia afastar-se".
O cineasta Manoel de Oliveira foi entrevistado diversas vezes pelos Cahiers du Cinema, a revista fundada por André Bazin, em 1951, que teve os cineastas da "nouvelle vague" no seu corpo redatorial. A revista considerou Oliveira "um dos maiores artistas da segunda metade do século XX", quando assinalou o centenário do realizador, em 2008.
Douro é "verdadeiramente sensual"
"O Douro é um local verdadeiramente sensual", disse o cineasta português na mesma entrevista de 2002, numa altura em que eram conhecidos os filmes "Porto da minha infância" e "O Princípio da Incerteza".
"Os realizadores sentem-se sempre mais inspirados quando filmam em casa", confessou Oliveira, afirmando ainda que "um filme não surge exclusivamente do realizador, o espaço que ele filma produz também certas reações".
Sobre a morte, afirmou: "Creio que o amor por uma paisagem pode ser sensual. Muitas coisas relevam da sexualidade. É um abismo. Mesmo a morte é um ato sexual, o mais virtuoso, o mais belo, o último."
"Desconfio da imaginação"
Na edição de abril de 1993 da revista, a propósito do destaque dado ao seu filme "O Dia do Desespero" (1992), Manoel de Oliveira disse: "Desconfio sempre da imaginação. (...) Todos os meus filmes são histórias de agonia, da agonia no seu sentido primeiro, no sentido grego, 'a luta'".
"Todos os meus filmes mostram que, de facto, todos os homens entram em agonia no momento em que chegam ao mundo. Sou um grande lutador contra a morte. Passei a vida a observar a agonia, cada vez com mais experiência, com cada vez mais vontade de mostrá-la. Mas a morte acaba por chegar", disse, em 1993.
"Reconheço a influência de Buñel, Dreyer e de outros no meu cinema. Desde logo, o meu primeiro filme foi influenciado por Chaplin. Mas eu nunca tentei escondê-lo. É a minha cultura, a minha conceção da arte".
"Imagem serve para mostrar coisas imateriais"
Os seus filmes, considerou na mesma entrevista, exprimem-se melhor do que ele: "A imagem é uma coisa muito concreta, mas serve para mostrar coisas imateriais. Veem-se fantasmas, personagens que deixaram de existir, que talvez já estejam mortas, mas que têm [ali] uma aparência de corpos concretos. (...) O cinema é um fantasma da vida que não nos deixa senão uma coisa sensível, concreta: as emoções".
"Os rituais são muito importantes. Sem eles, a vida seria indecifrável. O cinema não filma senão isso, um conjunto de signos, de convenções. A vida é um enigma, não é legível. São os rituais que nos permitem lê-la", afirmou na edição de setembro de 2003.
"Os meus filmes têm histórias um pouco profundas, às vezes difíceis de compreender. Por isso, filmo-os da forma mais clara possível. É preciso que o cinema seja claro, porque tudo o resto (as paixões, a vida), não o é".
"A crença no cinema está muito diminuída"
"Hoje vai-se ver filmes cada vez mais à pressa, cada vez com menos atenção, não exatamente predisposto a confiar [na projeção], a não ser nos efeitos especiais e nos efeitos sonoros espetaculares. A projeção já não chega. A crença no cinema está muito diminuída, [e isso] é terrível porque o que há de mais belo no homem é a sua humanidade, a sua capacidade de confiar nos outros, de ver a imagem dos outros", disse aos Cahiers, quando da estreia em França de "O Dia do Desespero".
Oliveira afirmou ainda não saber se pode descrever-se "como clássico ou como moderno". Disse apenas que "gosta de formas simples para mostrar coisas complexas".
As paisagens, afirmou na mesma entrevista, interessavam-no "desde sempre, desde 'Douro, faina fluvial'". Interessava-lhe, concluiu, "mostrar as vidas, os rostos, os corpos, os sentimentos e as músicas através das paisagens".
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