TESTAMENTO COMPLETO

Do lado de lá, como entre nós, a morte rende. Alimenta curiosidades, destapa múltiplos pormenores sobre a extinta vida do artista, alcança de rompante o que tanta vezes faltou para acompanhar a actividade do criador defunto: espaço mediático.

05 de janeiro de 2003 às 00:00
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Basta recordar o nordestino Chico Science, alma e motor de uma das maiores revoluções musicais brasileiras, bandeira do "mangue beat" que voltou a pôr o Recife no mapa das canções do Brasil: nunca a rádio local lhe abriu as portas como na sequência do acidente de viação que o matou. Ironia? Se calhar esta atitude seja mesmo parte integrante da condição humana...

Cássia Eller morreu há pouco mais de um ano. De exaustão, de "overdose", de tudo misturado, pouco importa. Não viu acabar o ano que, após uma dúzia de temporadas de batalha para fazer vingar a voz rouca e a pose quase "guerreira", lhe valeu o reconhecimento popular. O seu "Acústico MTV" vendeu mais de 250 mil cópias e prometia ser a primeira de uma série de compensações para quem tentava a sorte desde 1990, data do álbum de estreia. Desde o primeiro momento, Cássia definiu uma zona demarcada e delicada: ela era, pela excelência dos seus graves e pela pose genuína, a intérprete maior da área do rock e parentes próximos: cantava Legião Urbana, Barão Vermelho, Titãs, mas também Rita Lee e Itamar Assumpção. E os Beatles e Jimi Hendrix já estavam nos dois discos de arranque, "Cássia Eller" e "O Marginal".

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Depois descobriu Cazuza, também ele já morto. "Veneno Antimonotonia" e "Veneno Vivo" estão entre as grandes homenagens a que o músico teve direito... "post mortem". Veio a declaração pacificadora de Cássia: "Com Você... Meu Mundo Ficaria Perfeito". Pareciam nascer os anos de paz para uma mulher que transformava a timidez em provocação: lésbica assumida, consumidora de excessos, parecia disposta a fazer evoluir a sua imagem de pura "roqueira". Não teve tempo.

Recém-publicado no Brasil, o álbum "Dez de Dezembro" (que se espera ver chegar cá pelas mãos da Universal) parte de um trabalho de reconstrução de Nando Reis, o mais constante parceiro musical de Cássia nos últimos anos, produtor de "Com Você..." e "Acústico MTV". Material sonoro "perdido" – em ensaios de palco, em sessões de estúdio, em cruzamentos até agora desconhecidos (Cássia canta com Zélia Duncan "Get Back", dos Beatles, e conta com o novel Ministro da Cultura, Gilberto Gil, para mostrar "Fiz O Que Pude") – dá origem a um álbum nobre, que mais uma vez navega entre portos tão distantes como Caetano Veloso (com mescla rap em "Eu Sou Neguinha") e Hendrix (a melhor versão de "Little Wing" desde que Sting se atirou ao tema). No total, são onze canções, com destaque para a soberba "Nada Vai Mudar Isto", do carioca Paulinho Moska, outra figura maior à procura da justa exposição.

Mais do que isso, é o longo adeus, legítimo e desejável, de Cássia Eller. Que parecia precisar deste último testemunho, simples de arranjos, perfeito de presença vocal, para finalmente descansar. Para mim, é uma forma particularmente grata de começar esta viagem semanal pelos mundos da música – a toque de Cássia.

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Uma boa forma de começar o ano é abrir mais espaços à música que se faz em Portugal. Em múltiplas frentes, mas também na pop moderna e elegante, terreno da colheita dos Gift. Por isso se saúda – e se recomenda antecipadamente – a sua chegada a uma sala com óptimas condições, a do Centro Cultural Olga do Cadaval, em Sintra, cenário da primeira grande aven-tura de palco nacional para 2003. "Vi-nyl", "Film" e prováveis novidades, com Sónia Tavares a liderar o encantamento. (Sexta, 10 de Janeiro, às 22h00).

Enquanto metade da crítica especializada procura a "next big thing" nacional para reclamar a patente e a outra metade continua a discutir se os grupos portugueses podem cantar em inglês, há quem faça pela vida e mostre, sem precisar de se pôr em bicos de pés e sem "trampolins", os respectivos talentos. É por isso que vale a pena ouvir os Jaguar e o álbum de estreia, "Pop Yen" (ed. União Lisboa). Ingénuo e simples, como deve ser este pop. E já com uma revelação certa: a voz de Filipa Leão.

Confesso que já não esperava grande coisa mas, como o culto obriga, lá parti em busca de "Blue Bob", o disco de "guitar noise" que junta David Lynch e John Neff. É pior: incaracterístico, cansativo, sem imaginação, deixando transparecer um óbvio comodismo que Lynch sempre teve o cuidado de evitar nos filmes.

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Há um texto, assinado Lynch, que resume tudo: "Marilyn Monroe / Marilyn Monroe / Marilyn Monroe / I love you / I love you so". Estamos conversados. E venha daí o DVD de "Twin Peaks"... A única lei activa na rádio portuguesa é a "lei do menor esforço": isso explica que mais um ano de óptima música francesa acabe silenciado pela ignorância. Não o merecem, e só cito dois casos, o regresso do veterano Michel Jonasz, com "Oú Vont Les Rêves" ou o charme quente de "chansonnière" quase "bossista", de Keren Ann, dona do soberbo "La Disparition" (o seu segundo).

Vergonha é termos que usar a Internet para chegar ao que nem as lojas nem os media nos mostram. Ostracismo, outra vez?

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