A criatividade, arrojo e inovação que Amália Rodrigues imprimiu ao fado faz com que seja unânime a existência de um fado antes e um fado depois de Amália.
Amália inaugurou o conceito de espetáculo de fado – com a fadista vedeta em lugar de destaque à frente dos guitarristas –, criou a estética do negro integral e desafiou os cânones deste género popular com composições mais elaboradas e letras escritas pela pena de grandes poetas. Foi este espírito inquieto e de desafio permanente, aliado a uma voz única, que a fez vingar e mostrar o fado nos principais palcos do mundo.
E é este legado que influencia todos os que trilham caminho no fado e até noutros géneros musicais. Como cantava em 1983 António Variações, fã incondicional da diva, "Todos nós/ Temos Amália na voz/ E temos na sua voz/ A voz de todos nós."
Fábia Rebordão tem em Amália a sua maior referência
Se há quem tenha Amália na voz, esse alguém é Fábia Rebordão. Quem o dizia era Celeste Rodrigues, irmã de Amália, que destacava a mágoa, a "dolência que arredonda o grito", comum à voz das três.
Fábia Rebordão nunca conheceu Amália, mas ainda partilha com ela o ADN: "Eu e a Amália ainda somos primas em terceiro grau. A minha avó materna era prima direita da Celeste e da Amália." A fadista de 35 anos conheceu Celeste aos 15, quando começou a cantar na Taverna do Embuçado, no bairro lisboeta de Alfama, e Celeste lhe disse: "Só há uma família Rebordão, portanto, tu és minha prima de certeza". E era mesmo.
Celeste sublinhava as parecenças entre Fábia e a irmã, que se estendem da voz à fisionomia. "É o destino", diz Fábia, que tem em Amália a sua maior referência. Para a jovem fadista, a influência da diva do fado junto das novas gerações é inquestionável: "Ninguém canta fado hoje em dia sem passar pela Amália".
"Sê tu própria", a lição que Carminho aprendeu com Amália
Foi também na Taverna do Embuçado, gerida pelos pais, que Carminho conheceu Amália Rodrigues. Tinha 12 anos e recorda-se que o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça quando a viu foi: "Mas ela é tão baixinha". "É que a Amália dá sempre a ideia de ser uma figura muito alta, porque na verdade é isso que um artista acaba por passar, essa força", explica a fadista.
Mas para Carminho, o verdadeiro encontro com Amália deu-se mais tarde. "O meu encontro com a Amália é, de facto, com a voz dela e com a obra dela. Isso, sim, foi impactante na minha vida pessoal e artística", sublinha a fadista.
A coragem, determinação e o sentido de urgência que atravessa a voz de Amália impressionaram Carminho, que encontrou na diva do fado a força para seguir o seu próprio caminho. "É esse o legado dela: sê tu própria, tenta encontrar a tua essência. Foi essa a lição que ela me deu", resume.
Stereossauro, entre os samples e os poemas de Amália
O produtor e DJ Stereossauro abraçou o universo do fado no último disco, "Bairro da Ponte", editado em 2019. A Valentim de Carvalho, num gesto inédito, deixou-o mergulhar no seu arquivo e aceder às gravações multipista [pistas com todos os sons isolados] de Amália. "Quando a Valentim me abriu o acesso ao seu arquivo [...] abriram uma espécie de caixa de pandora", revela o músico.
Stereossauro começou a ouvir com mais atenção e frequência o trabalho de Amália há cerca de quatro anos e deixou-se surpreender por uma artista "com muitas camadas" e um catálogo bastante extenso.
Da viagem pelos arquivos da Valentim de Carvalho, selecionou gravações cujos samples [trechos retirados de uma música e utilizados noutra] incluiu em canções como "Flor de Maracujá", que conta com letra de Capicua e voz de Camané, e em que é possível ouvir Amália, num início magistral, a entoar: "Cantar, cantar como quem despe/ E eu canto este meu sangue/ Este meu povo".
Mas para Stereossauro, nos dias que correm, a influência de Amália pode fazer-se sentir mais na escrita do que na música. Recentemente, o DJ e produtor comprou o livro de poemas de Amália, "Versos", e admite que a escrita da fadista possa estar a influenciar o que tem feito. "A escrita é algo que começou há pouco tempo e com uma abordagem minimal e isso, se calhar, vem dos tais poemas que tenho estado a ler."
Amália apadrinhou a carreira de Camané
"Foi a Amália que fez com que gravasse o meu primeiro disco", conta Camané, recordando o telefonema que a fadista fez a David Ferreira, da editora EMI, no Natal de 1994. Um ano depois saía "Uma noite de fados", o disco que marcou o arranque de uma carreira que já soma 25 anos.
Amália impulsionou a carreira de Camané, mas a influência da fadista não se reduz a este episódio. "A Amália foi uma referência muito forte", explica o músico, que aprendeu com o nome maior do fado a cantar sem se exibir e a "ir por dentro do texto".
Camané confessa que só há quatro ou cinco anos é que se atreveu a cantar fados de Amália, que considera serem "versões definitivas", mas recorda as noites em que atravessava o Bairro Alto, em Lisboa, e em que de cada casa de fados ecoava um tema diferente de Amália.
E se hoje o fado está liberto de amarras e molda-se, reinventa-se e evolui ao ritmo da criatividade de quem o canta e toca, essa também é uma herança deixada pela fadista.
Com mais de 40 anos de carreira, o músico e produtor Jorge Fernando conhece por dentro o mundo do fado. No final dos anos 70, começou a tocar com Amália, que acompanhou durante seis anos, e tem ajudado a lançar a carreira de novos fadistas como Mariza, Ana Moura e Fábia Rebordão. Para Jorge Fernando, a influência de Amália nas novas gerações é "toda, 100%".
"O fado toma outro caminho filosófico com a Amália", explica Jorge Fernando, sublinhando que o fado tal como hoje o conhecemos se deve a Amália e à forma como o projetou além fronteiras.
Se hoje as novas gerações podem ambicionar uma carreira internacional a cantar um género musical com uma identidade tão vincada, é porque Amália lhes abriu as portas com a sua voz única e carisma magnético.
"Nenhum fadista pode ser indiferente à herança da Amália", assevera o musicólogo Rui Vieira Nery. Se a imitação é um pecado a evitar, abraçar a "curiosidade de se desafiar e inovar", que caracterizavam Amália, é uma das influências mais positivas sobre esta e as próximas gerações de fadistas.
"A importância da Amália para que o fado fosse consagrado junto da UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade é inequívoca", defende Sara Pereira, diretora do Museu do Fado, que integrou a Comissão Científica da candidatura ao lado dos musicólogos Rui Vieira Nery e Salwa Castelo-Branco.
A diretora do Museu do Fado relembra que no processo de candidatura de expressões musicais a UNESCO não se centra numa personalidade, mas no coletivo, na comunidade que constitui determinado género artístico, nas suas memórias, referências e valores. "Mas, naturalmente, quando falamos de fado é impossível não falar de Amália, porque Amália deu-nos o fado tal como o conhecemos hoje", realça.
Sara Pereira, que continua a alimentar uma relação com Amália de "grande fascínio e eterna descoberta", destaca que é fundamental explicar aos mais novos quem foi Amália. "Seria muito bom que as gerações mais jovens pudessem redescobrir e deixar-se deslumbrar pelo legado e por esta personalidade tão fascinante."
Texto | Catarina Cruz
Entrevistas | Catarina Cruz e Iúri Martins
Edição | Alfredo Leite
Vídeo | Lourenço Ramos e Mariana Margarido
Edição de vídeo | Mariana Margarido
Agradecimentos | Fábrica Braço de Prata, Livraria Ler Devagar, Museu do Fado