O primeiro casamento: por amor ou música?
Nascida em 1920, numa Lisboa pobre e humilde, escolheu ela o dia do seu aniversário – no assento de nascimento consta o dia 23 de julho, mas optou pelo dia 1 de julho – porque preferia o "tempo das cerejas". Logo aí, simbolicamente, Amália tomou rédeas ao seu destino, um fado destinado a grandes feitos, mas também marcado por um profundo sentimento de mágoa, de insatisfação, de dor.
Senão vejamos, os pais, Albertino de Jesus Rodrigues e Lucinda da Piedade Rebordão, que Amália mal conheceu, rumaram de volta ao Fundão (de onde eram naturais) quando a filha tinha apenas 14 meses, deixando-a entregue aos avós em Lisboa. O pai era músico e sapateiro. A mãe cantava no coro da igreja. A música fugiu da vida de Amália, e disse o destino que ela havia de a perseguir para sempre e deixar lá o seu nome, esculpido na pedra, gravado a ouro.
Só volta a viver com os pais aos 14 anos, mudando-se do bairro da Pena para o tão típico bairro de Alcântara. No entretanto já tinha deixado a escola, aos 12 anos, para ajudar a família, ganhando dinheiro como costureira, bordadeira e trabalhadora numa fábrica de rebuçados até que, aos 15 anos, se junta à irmã, Celeste Rodrigues, para ir vender fruta na zona do Cais da Rocha.
A música veio preencher o vazio que a falta dos pais lhe deixou e na adolescência já tinha descoberto o poderio que tinha nas cordas vocais (e no fatalismo da sua vida, que lhe dava a mágoa perfeita para cantar o fado). Em 1936 já era solista na Marcha Popular de Alcântara e, dois anos depois, a sua voz apaixona-se pela guitarra de Francisco da Cruz, guitarrista amador.
Os dois conheceram-se no Concurso da Primavera, um show de talentos que elegia a Rainha do Fado, do qual Amália acabou por desistir, por pressão das adversárias. Já tinha ganho, pelo menos no coração, e viria a ganhar o título pela sua própria voz. O romance é descoberto pelos pais que os obrigam a casar. Nesses termos, Francisco rejeita Amália e diz que já tinha outra mulher. Ficam ainda assim a viver na casa dos pais dele. Amália com mais uma mossa no coração.
Fica a dúvida se o amor que Amália descobriu por Francisco da Cruz estava relacionado com o homem ou com a guitarra, porque casam-se em 1940 e em 1943 estavam já separados. Amália fugiu de casa e do casamento, o marido não foi atrás. "A rejeição é que me marcou neste casamento", disse a fadista.
O divórcio, no entanto, só viria a ser assinado em 1949, até porque o primeiro marido de Amália tinha ido para Moçambique. Nesse período, a carreira como cantora cresce de dia para dia e a fama alastra por toda a Lisboa, e por Portugal, com espetáculos em todas as casas de fado mais badaladas (do Café Mondego ao Luso), com cachets cada vez maiores, depressa dando o salto para os palcos internacionais. Primeiro o Brasil, com sucesso explosivo, e logo depois França e Estados Unidos (chegando mesmo a Hollywood).
Mas a par da carreira, Amália tinha já nessa altura também o coração ocupado por um amor que tinha tanto de grande como de impossível e, por isso, o encaixe perfeito para a mágoa que Amália cantava.
A ‘Princesa da Pide’ e o ‘affair’ com Espírito Santo
Corria o ano de 1939. Amália divorcia-se do primeiro marido e entrega-se à carreira, que crescia exponencialmente e, em pleno Estado Novo, a diva que muitos achavam estar ligada a Salazar entra na mira da PIDE, depois de se estrear no Retiro da Severa, numa investigação a uma "Organização Comunista do Fado", como explicado no relatório consultado pela SÁBADO: "A cantadeira Amália Rodrigues, que fala inglês, francês e espanhol, é quem na Severa fala aos estrangeiros."
Entre rumores de ser a ‘Princesa da PIDE’ e outros de ligações ao PCP, Amália mostrava-se indiferente. Conquistava o seu público com a mágoa e o fado que lhe pendiam no peito, mas não passava incólume às ‘más línguas’ da altura no que diz respeito à sua vida pessoal.
É aqui que começa um dos segredos mais bem guardados de Amália, com a marca da família Ricciardi-Espírito Santo (esses mesmo, os do BES). A fadista terá tido um romance secreto com Ricardo Espírito Santo Silva, na altura casado com Maria Cohen e grande apoiante da cultura, colecionador de arte e fã assumido daquela que já era a diva do fado. O boato nunca viria a ser confirmado e é um tabu a que Amália só se referiu uma vez, desvalorizando os rumores.
"Ele tentou comigo o que tentava com muita gente e eu até muitas vezes fui à Igreja para Deus fazer com que eu gostasse dele", disse, acrescentando que Ricardo Espírito Santo lhe enviava flores para o camarim e que a seguia nas tours pelo Mundo, tendo inclusive acompanhado a estrela num concerto em Roma.
Dizia-se que o mecenas da cultura sustentava a vida de Amália Rodrigues e que foi ele o responsável pelo sucesso que ela então colhia, algo que a fadista não admitia: porque lhe estavam a pôr em causa o sofrimento, o destino e a emoção nus, que exibia com maestria, até hoje nunca mais ouvidos em outra voz.
"Diziam que me mandou educar, que me mandou aprender línguas, que me deu mundos e fundos, que era meu namorado. Para essa gente foi ele que me fez artista, foi ele que me deu tudo. O Ricardo Espírito Santo gostou de mim, foi meu amigo, amigo até da minha família", defendeu-se Amália na altura.
Amigos por certo ficaram, tendo Ricardo Espírito Santo ajudado a fadista também naquele que era já na altura o negócio familiar (era banqueiro). "Não lhe devo nada da minha vida artística. Devo-lhe as primeiras conversas sobre um mundo que desconhecia e uma amizade que durou muitos anos. De outro modo nunca me ajudou. Nem eu lhe pedi nada. Pedi-lhe uma vez um emprego para um guitarrista e ele emprestou-me o resto do dinheiro para comprar um prédio, que era para garantir o meu futuro. Emprestou-me o dinheiro e eu paguei-lhe.", esclareceu Amália sobre o alegado caso com Ricardo Espírito Santo.
Mas as ligações a esta família portuguesa, de origens e estatuto tão distintos dos da família onde nasceu Amália, não fica por aqui. Esta foi a chave para que a artista vivesse aquele que foi porventura o maior amor da sua vida: Eduardo Ricciardi.
Ricciardi e Amália: Coração preso num amor digno de Shakespeare
Existisse ou não romance, estava resolvido quando, numa noite do Fado de Lisboa nos finais de 1940, Ricardo Espírito Santo apresentou Amália a um familiar seu Eduardo ‘Pita’ Ricciardi. Estava traçado o destino deste amor assolapado que se revelaria impossível, para aumentar (ainda mais) o peso da dor no peito da fadista.
Eram dois mundos diferentes a colidir, numa verdadeira trama digna de telenovela de horário nobre. Contrastando com as origens humildes de Amália Rodrigues, Ricciardi era ‘de boas famílias’, uma das mais ricas de Lisboa.
Eduardo Vicente Roquette Riciardi, nascido a 9 de fevereiro de 1915, em Lisboa, é fruto da união de duas poderosas famílias, ligadas ao desporto (Sporting), à nobreza, à banca e às grandes empresas. Ricciardi pertence à família de três presidentes do clube da Alvalade: o Visconde de Alvalade, José Alvalade e José Roquette.
A maçã (verde) não caiu longe da árvore e ‘Pita’ era adepto do Sporting. Mais do que isso revelou-se um tenista de excelência, tendo sido campeão nacional da modalidade quatro vezes (em 1939, 1941, 1946 e 1948), depois de, logo aos 17 anos, já ter sido campeão de pares mistos.
Os jornais desportivos falavam, na altura, de um " jogador de grande intuição e excelentes qualidades para a prática do ténis" (A Bola, 9 de setembro de 1948), mas tinha uma rivalidade com o primo do Porto, José Roquette, na modalidade.
Apesar de dar que falar no panorama desportivo nacional, levava uma vida muito recatada e é muito difícil (quase impossível) encontrar imagens de Ricciardi na altura, apesar da fama, sua e da família ( o pai era também um tenista de mão-cheia). Para além disso, também a própria Amália Rodrigues sempre escondeu o longo namoro com Ricciardi. Nunca se referiu àquela que foi a sua grande paixão diretamente. Em ‘Amália – Uma Biografia’, lançado em 1987 por Vítor Pavão dos Santos, há apenas um misterioso levantar do véu: "Uma vez tive a impressão que gostava muito de uma pessoa…", disse Amália Rodrigues.
Estrela Carvas, amiga, assistente e confidente predileta de Amália confirma à SÁBADO a paixão arrebatadora vivida pelos dois, que diz ter começado em meados de 1949. Ricciardi já não era tenista, dedicava-se agora à atividade ainda hoje associada à sua família: banqueiro.
Os dois chegaram mesmo a partilhar uma casa (que era da família de Ricciardi) durante os oito anos que durou a relação secreta, no número 62 da rua de São Bernardo, em Lisboa. "Viveram ali seis anos, de 1949 a 1955", recorda Estrela Carvas
Quem conheceu Ricciardi recorda um galã, bem falante e bem vestido, com grande talento para a atividade desportiva, mas com uma leve tendência para a vida de bon vivant. A par disto, seria Ricciardi a insistir com Amália Rodrigues para que mantivessem a paixão em segredo.
"Ele não se deixava fotografar com ela, nem a levava quando ia a jantares ou festas. Ela ficava em casa", conta Estrela Carvas. Amália Rodrigues estava farta de viver um amor tão grande fechado no seu coração, o mesmo que pesava com a dor, a mágoa, a tristeza e o pensamento permanente da morte.
"Então como é a nossa vida, estamos aqui há cinco ou seis anos, pareço a Severa…", terá dito Amália, segundo a amiga. Ricciardi quebrou o sonho e a ilusão: "a minha família não quer, a minha mãe não deixa".
"Então, fique com a sua mãe", respondeu Amália. Estrela Carvas recorda que "Amália não era brasonada", não era de ‘boas famílias’, dos influentes da alta sociedade lisboeta, e por isso a relação não caiu nada bem à família de Ricciardi, em particular à sua mãe e irmã.
"A Amália não era brasonada. E ninguém fazia ideia naquela altura que a Amália fosse ser quem foi, aclamada no mundo inteiro", afirma a assistente e amiga da fadista.
É precisamente do outro lado do atlântico, em Terras de Vera Cruz, que Amália conhece o segundo marido, com quem fica até à data da morte deste, em 1997. César Seabra, engenheiro mecânico brasileiro, conquista a diva do fado e os dois casam-se a 26 de abril de 1961.
Homem recatado e que sempre preferiu ficar fora de foco das luzes de palco que iluminavam a mulher, terá sido uma das razões para que, pouco depois do casamento, a fadista tenha anunciado o fim da carreira – o que não se veio a verificar.
Na biografia escrita por Vítor Pavão dos Santos, Amália fala do segundo marido "como engenheiro mecânico, é todo virado para o futuro, para as notícias, para a informação. Filma pontes e aviões. A mim, pontes e aviões não me interessam absolutamente nada. Interessa-me é falar sobre a cabeça das pessoas, porque será que fazem isto ou aquilo, interessa-me a poesia."
Adivinhava-se, ainda que a relação dos dois sempre tenha sido pautada por bons momentos, que pouco havia em comum entre os dois. "Poderá não lhe ter dado aqueles amores exaltados, mas deu-lhe uma estabilidade emocional muito grande", recorda Estrela Carvas à SÁBADO.
Namoraram poucos anos antes do casamento e o facto de Amália Rodrigues não conseguir ter filhos era um ponto de tensão. "Falava-se que a Amália tinha tido um filho de não sei quem, mas a Amália não podia ter filhos, tinha um problema no útero, não podia engravidar, tinha de fazer um tratamento muito grande, mas não tinha tempo, tinha medo e não esteve para isso", afirma Estrela Carvas. O tempo para fazer tratamentos de fertilidade nunca chegou e os filhos ficaram para segundo plano.
Ainda assim, e mesmo que não fosse perfeito, foi o seu coração. "Claro que não me bate o coração à entrada do César pela porta, porque já sei que ele vai entrar, já conto com isso como certo. Não é aquela paixão de quando se tem 16 anos e se dorme com o retrato do namorado debaixo da almofada. Mas é uma coisa sólida, um sentimento forte. O César é bem-educado, nunca me deu desilusões, nunca me disse aquelas coisas que eu não gosto que digam. Também às vezes não me diz aquelas coisas que eu espero que diga…", disse a fadista.
Rumores e reis: Os escândalos que passavam ao lado de Amália
A fama tem sempre um reverso e Amália não era imune a rumores de casos amorosos, ‘affairs’ de uma noite, ligações mais ou menos românticas com outras figuras célebres que com ela conviviam.
Um grande rumor que correu a Europa foi um alegado caso que a fadista teve com o rei Humberto II de Itália. Amália sempre negou e afirmou que nunca foi mais do que um amigo. Certo é que era grande admirador da fadista e consta que fazia questão de lhe enviar flores antes dos grandes concertos.
Outra grande voz da época, Julio Inglesias, o galã espanhol, surgiu também ligado a Amália. O alegado romance ficou-se pelo burburinho, porque o que se sabe é que os dois tinham uma boa relação, de grande admiração pelo trabalho um do outro no mundo da música.
Finalmente, outro ‘vozeirão’ surgiu na vida de Amália e ter-lhe-á arrebatado o coração (ou pelo menos deixou-o atordoado…): Charles Aznavour.
O cantor, antes de morrer em 2018, havia de comentar o alegado caso, que terá começado com um encontro no casino de Knokke-le-Zoute, na Bélgica. Os dois cantaram juntos e, nessa mesma noite, diz Aznavour que "houve magia". O músico chegou a escrever uma canção para Amália.