'A comédia é um antibiótico de largo espectro'

Uma das personagens mais marcantes de Maria Rueff faz 20 anos.

11 de novembro de 2018 às 17:00
Cultura, Teatro, Maria Rueff, António Pires, Teatro São Luiz Foto: Natália Ferraz
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Entre ‘alfinetadas’ assertivas e muito amor ao seu Benfica, Zé Manel Taxista tornou-se uma das personagens mais marcantes de Maria Rueff. Logo ela, igualmente criada num bairro típico de Lisboa e também observadora atenta e crítica da realidade que a rodeia. Talvez por isso, os taxistas da cidade a tratem por colega quando a atriz lhes bebe a inspiração no banco de trás. E para quem já não se lembra das rábulas do taxista barrigudo e rico em bigode ou andou todos estes anos a remoer a saudade, ‘Zé Manel Taxista, Uma Comédia com Brilhantina’ está em cena no Auditório dos Oceanos do Casino Lisboa até ao final do mês. Continua pai de família dedicado e adepto fervoroso do Benfica, mas agora Zé Manel anda um tanto ou quanto despistado no meio desta nova Lisboa, cheia de turistas, tuk-tuks e alojamentos locais...

Como nasceu Zé Manel Taxista?

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Esta personagem nasceu no ‘Herman 98’, um talk show feito ao vivo, com público ‘verdadeiro’, que comprava o bilhete para ir assistir ao espetáculo no Teatro São Luiz, e foi um pedido especial que o Herman me fez. Queria que eu tentasse criar um – e não uma! – taxista! Não era muito fácil. Mesmo em termos mundiais, não há muitos travestis feitos por mulheres e para mim foi um desafio. Mas em boa hora apareceu e acabou por ser este sucesso que já dura há 20 anos.

Quais as razões do sucesso?

Nós nunca sabemos o que temos na mão. Mas deve-se a várias coisas, penso eu. Também à sua componente benfiquista, que lhe foi dada pelo Ricardo Araújo Pereira e pelo Miguel Góis, que são cocriadores da personagem.

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Mas de certeza que acrescentou muitos ‘pozinhos’ seus…

Ah, claro!... Tenho o privilégio de ter dado voz a quase todos os grandes autores contemporâneos portugueses e a minha forma de trabalhar em comédia sempre foi cocriar com eles. Tivemos várias reuniões antes da personagem ser escrita, onde eu explicava os tiques que gostava de trabalhar, ou falávamos dos tiques que eles me propunham e eu incorporava. Falávamos sobre os focos que devíamos usar numa determinada rábula, o que se podia ou não dizer a determinada pessoa, etc. Quando foi o momento de dar vida ao Zé Manel, surgiu-me logo uma personagem que eu desde miúda imitava em casa dos meus pais. Era um senhor que falava assim como ele fala, que ia lá a casa fazer pequenos biscates, um típico lisboeta, marialvão, malandreco, mas bom malandro! Tinha aquela coisa típica dos bairros de Lisboa: o desenrasca tipicamente português, mas se for preciso dá a camisa ao outro. Têm um código de honra próprio - que eu espero que não se perca! - e um grande amor pela família deles, pelo bairro deles.

Cresceu num bairro típico de Lisboa. Sente esse amor?

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Sim, eu nasci em Moçambique e vim de lá com a descolonização, ainda pequenina. Fomos viver para o bairro da Graça, que é lindíssimo. Aliás, não é à toa que se chama Graça… é que tem mesmo muita graça! E tem a mais bonita vista sobre o Tejo! Tive a sorte de viver numa rua onde me pude cruzar com a Natália Correia, com a Sophia de Mello Breyner, mas também com todas estas figuras próprias dessa Lisboa… a senhora da leitaria, a senhora da padaria, os taxistas, a minha vizinha da frente – a Dona Liberdade - que me inspirou a fazer a Rosete. Pessoas que, no fundo, serviram a minha arte.

O que transporta consigo das personagens?

Acima de tudo, o profundo respeito com que alguns dos visados e imitados nas rábulas reagiram. Estou a lembrar-me da Sofia Aparício e da Judite Sousa, por exemplo. Saber rir de nós próprios não é fácil. Em Portugal, onde até somos o País da anedota (acontece uma desgraça e logo dois minutos depois já há uma piada ou uma anedota sobre isso), mas ainda não temos muito à vontade a rir sobre os nossos próprios defeitos! Faço sempre um exercício para que as pessoas se riam comigo e não de alguém… não sei se sempre o consigo. Até porque eu não tenho nenhuma superioridade em relação a ninguém. Antes pelo contrário, tenho tantos erros e tantas coisas que eu espero trabalhar até um dia me ir embora já com menos defeitos no currículo!... Guardo sobretudo a generosidade das pessoas e o saber que tenho uma carreira com o apoio do público e também dos ‘alfinetados’.

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Já andou de Uber?

É verdade que já andei de Uber, de Cabify… mas… como é que eu hei de dizer… não é só pelo Zé Manel… eu tenho muito carinho – mas tenho mesmo! – pelos taxistas. Porque eles receberam também este boneco com muito carinho. Tratam-me por ‘colega’ e isto, acho eu, é a grande prova de que se consegue chegar aos outros. Portanto, eu não posso deixar na mão os ‘meus colegas’ taxistas e ando sempre de táxi!

Deve ter tido muitas reações engraçadas, vindas dos seus ‘colegas’…

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Sempre! É engraçado porque isso aconteceu até mesmo no que diz respeito à clubite do Zé Manel, que é fanático pelo Benfica. Mas ao longo destes anos todos fiz rábulas com Pinto da Costa e com alguns presidentes do Sporting e sportinguistas e houve sempre um grande fair play em torno do Zé Manel, que foi muito agradável.

Em 20 anos muita coisa mudou. Do que fala agora o Zé Manel neste espetáculo?

Voltar a fazer o Zé Manel foi a vontade de agradecer ao público este caminho de 20 anos e também a vontade de pegar em todo o património que o Zé Manel trazia às costas (concretamente, um disco com uma série de compositores excecionais, como Sérgio Godinho, Jorge Palma, Herman, Paulo de Carvalho, Xutos & Pontapés, João Gil, entre outros), pegar nessa partitura e servir uma nova narrativa. Um espetáculo sobre como é que o Zé Manel, que podia ser um Zé Povinho, se sente nesta nova cidade, nesta nova Lisboa, gentrificada, cheia de turistas, onde às vezes há aqui uma ‘Disneylização’ do que é típico. E como é que nós pensamos as novas realidades com ubers, com meninas de Erasmus, com despejos e com esta dificuldade de algumas pessoas que sempre viveram nos seus bairros e que de repente não conseguem pagar as rendas astronómicas que os senhorios lhes pedem. Foi esse o propósito.

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Como alfacinha, vê agora mais coisas boas ou más?

De tudo um pouco. Sinto que Lisboa está muito bonita. Eu tenho muito por hábito fazer turismo dentro do meu próprio País e cidade. Em dias de folga gosto de ir passear e observar as coisas, porque no dia a dia vamos sempre com os olhos postos no volante ou no transporte público, a pensar no que vai acontecer amanhã, no que se vai fazer para o jantar e raramente abrimos o olhar e os sentidos ao sítio onde estamos. E, de facto, Lisboa é linda de morrer! O Tejo é um espelho magnífico e a arquitetura tradicional dos nossos bairros é linda. Obviamente que isso, um dia, tinha de ser descoberto. Portanto, é muito bonito ver a cidade maquilhada mas, para mim, que a conheci por dentro, e que além de ter vivido na Graça estudei no Castelo, aflige-me perder esta essência genuína, esses tais bons malandros, as pessoas que habitavam as suas casas e o seu comércio. Infelizmente, Portugal não tem o amor próprio que tem a Espanha, por exemplo, mas espero que isto sirva para nos valorizarmos também como povo. Para pensarmos: ‘Caramba, temos mil anos de história, temos das cidades europeias mais bonitas do Mundo, temos um povo que conquistou todos’ e, portanto, que isto nos faça ter orgulho e não nos deixe plastificar a nossa essência.

Sempre quis ser atriz?

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Não, eu inscrevi-me para entrar em Direito e não entrei por uma décima. De facto, tinha este sonho de ser atriz mas achava que era uma veleidade muito grande no fim dos anos 80. Em 1991, quando entrei no Conservatório, não havia público, o teatro comercial tinha morrido, fazer comédia era ainda mais difícil…

era quase como ir para o degredo. Mas a arte acabou por escolher-me. No segundo ano, entrei pela porta grande ao ir substituir uma colega num espetáculo com o Armando Cortez. Tive esse privilégio de o ter como mestre no teatro! E depois também a Manuela Maria [viúva de Armando Cortez], que é a minha madrinha de cena. Depois conheci o João Baião, fiz um café-teatro, o Herman foi ver-me e a partir daí nunca mais nos largámos.

Uma mulher na comédia ainda é bicho raro…

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Sim, se bem que em Portugal tivemos grandes mulheres comediantes: Laura Alves, Maria Matos, Mirita Casimiro (que fazia travesti), Beatriz Costa, Ivone Silva, Marina Mota, Ana Bola, tantas mulheres na comédia em Portugal. Neste momento há até muitas mulheres a escrever comédia e humor. Ainda é difícil ser mulher na comédia, em Portugal e no Mundo, mas eu espero que o meu percurso (e o de outras mulheres) dê força para puxar pela igualdade nesta área.

O que faz antes de subir ao palco?

Roo as unhas, fumo (infelizmente, ainda não consegui deixar este vício horroroso), penso muito para onde é que posso ir nas zonas de improviso. Penso nas coisas que aconteceram naquele dia, naquela semana, que encheram as notícias (na comédia, chamamos a isso a ‘fruta ou peixe do dia’), porque essas coisas têm de aparecer. Claro que se for drama, tem de me passar um bocadinho pelos olhos a história da personagem… no fundo é preciso disponibilizar-me. Nós, os atores, somos veículos. Representar quer dizer ‘estar em vez de’. Não somos nós que vamos para cena (senão era uma ‘egotrip’ em vez de representação). Portanto, faço esse exercício de humildade, para que o meu corpo sirva a função.

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É quase um bocadinho jornalista também…

Os humoristas têm de estar atentos a tudo e mais alguma coisa. A todos os temas que estão a dar no momento, desde os resultados dos jogos de futebol até à revista que está em cena no Parque Mayer. A comédia é uma espécie de antibiótico de largo espectro. Por isso é que estamos sempre a trabalhar. Mesmo quando não estamos em cena, estamos a ver as notícias, a absorver e a pôr no tal depósito novos termos, tipos sociais, esgares, etc.

O que a tira do sério?

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O que me tira do sério é a perda de valores. Talvez por ter tido pais mais velhos, que quase que podiam ser meus avós, cresci numa casa onde se respeitava muito a idade, a sabedoria e o quanto isso nos faz evoluir. Aprendi que saber fazer um pastel de bacalhau é tão importante como saber escrever um livro ou fazer uma peça, porque também é a nossa cultura a manifestar-se através dessas coisas. Quanto mais disso tivermos à nossa volta, melhores seres humanos seremos. Perder isso preocupa-me. Preocupa-me a alienação das redes sociais, que têm o sítio certo para estar e não devem ser o ponto máximo da nossa vida. É tão importante dizer as coisas cara a cara e não escudados por um ‘nickname’ ou por outra coisa qualquer. A quantidade de insulto, de ódio e cobardia que se vê nas redes, o bombardear uma pessoa só porque está ali a jeito, tira-me do sério. Até porque isso esvazia a capacidade de lutarmos pelos nossos direitos e por aquilo que verdadeiramente nos incomoda.

O que a faz mais feliz?

O que me faz feliz… neste momento, um dia inteiro dedicado à minha filha. A idade trouxe-me isso: a capacidade de me encantar com coisas simples.

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