A guerra da amêijoa

Todas as semanas são retiradas do Tejo toneladas de amêijoas. A Polícia Marítima luta contra a apanha ilegal dos bivalves

22 de janeiro de 2012 às 00:00
A guerra da amêijoa Foto: João Cortesão
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Ao fim de duas semanas de observações, os agentes da Polícia Marítima têm o alvo identificado. Uma praia no Barreiro, onde já se fizeram várias operações de combate à apanha ilegal de amêijoa, está de novo repleta de mergulhadores . É um negócio de milhares de euros, e nem o facto de o marisco estar contaminado por perigosas toxinas os faz desistir.

"Um bom apanhador pode fazer até oito mil euros por mês. Ainda que as coimas sejam elevadas para quem é apanhado, os valores envolvidos neste negócio tornam difícil acabar com esta actividade ilegal", conta o agente Amândio Bonacho, que se prepara para tripular a lancha ‘Ria Formosa’ da capitania de Lisboa para o Barreiro.

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SHOTGUN CARREGADA

As três lanchas da Marinha aguardam na Doca do Espanhol, em Lisboa, pela indicação dos colegas que estão na Margem Sul. A intervenção contra a apanha ilegal de amêijoa vai ser feita por terra e pelo rio. O objectivo é apanhar os prevaricadores em flagrante. "Se os mergulhadores forem detectados a apanhar amêijoas, o material de mergulho é apreendido. Além de a apanha de bivalves ser proibida naquela zona do Tejo, é absolutamente interdito usar equipamento de mergulho com botija para apanhar qualquer espécie animal, seja onde for", diz o agente principal Gomes, que comanda a força que parte de Lisboa.

Um dos agentes leva a tiracolo uma shotgun carregada com cartuchos de munições de borracha. "Já tivemos casos em que foi preciso recorrer à força. É frequente os pescadores reagirem mal às nossas operações, mas eles têm a perfeita consciência de que estão a fazer uma actividade ilegal", conta Gomes. Um outro agente lembra uma operação na Trafaria em que as lanchas da polícia marítima foram atacadas com ‘cocktails molotov’: "Nunca sabemos o que nos espera".

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Por volta das 13h30, os colegas que estão no Barreiro dão o sinal para avançar. A operação está em marcha e as lanchas da polícia largam da Doca do Espanhol, em Lisboa. Quinze minutos depois estão no local da operação –a praia que fica entre a fábrica de têxteis acrílicos da Fisipe e o terminal de líquidos da LBC Tanquipor no Barreiro. Ao todo, cerca de 30 agentes da Polícia Marítima participam na operação. Os primeiros a chegar vieram vestidos à civil, para não alarmar os mergulhadores ilegais. A ideia é apanhá-los em flagrante delito.

FUGA APRESSADA

Em terra, os agentes da polícia ocuparam a praia. Encurralados entre duas frentes, os cerca de 30 pescadores caminham para terra em fila indiana. Têm vestidos os fatos de mergulho, mas não há sinal dos sacos de amêijoas. "Acabaram de largar tudo no fundo do rio", diz um agente, habituado a este jogo do gato e do rato entre os apanhadores e as autoridades.

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Os mergulhadores sentam-se em silêncio nas pedras da margem. Já sabem que vão perder tudo o que apanharam durante a manhã, mas ficam a ver o que a polícia faz. Afinal, um saco que não seja detectado pelas autoridades pode ser recuperado mais tarde. Há muito dinheiro em jogo. "Sabemos que a maior parte da amêijoa que se apanha no Tejo é vendida para intermediários e segue para Espanha. Os apanhadores recebem entre quatro a cinco euros por quilo. Já apanhámos homens com 180 kg de amêijoa retirada do Tejo. Fazendo as contas, dá para perceber porque é que há tanta gente a arriscar. E cada vez são mais", conta o agente Gomes.

Os mergulhadores acabam por ser identificados pela polícia marítima. Incorrem em vários ilícitos, a começar pela apanha ilegal de bivalves, mas para serem multados por pescarem com garrafa de mergulho é preciso encontrar as garrafas de oxigénio.

É aqui que entram em acção os mergulhadores da Polícia Marítima. Cinco homens do destacamento de Setúbal têm por missão encontrar os sacos de amêijoa e o material de mergulho que ficaram no rio. Os fundos lamacentos reduzem a zero a visibilidade. Começa um longo trabalho de buscas, que decorrerá durante toda a tarde.

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O agente Cruz lidera a equipa de mergulho. Marca com bóias as zonas onde julga ter visto os apanhadores largar os sacos de amêijoa. Quatro mergulhadores da PM avançam para a inspecção dos fundos. Vão fazendo circunferências à volta das bóias e os resultados não se fazem esperar. Os sacos carregados de amêijoa japónica começam a ser retirados do Tejo. Aparecem também os aparelhos usados para raspar o fundo e as ganchorras – cestos metálicos com pontas afiadas, usados para raspar o leito.

Todo o material é trazido para bordo das lanchas. Está tudo apreendido. Em vez de receberem os avultados pagamentos de quem compra o marisco, desta vez os apanhadores terão de pagar pesadas coimas (que podem ascender até 2500 euros por acumulação de várias infracções). Os barcos onde se encontram ganchorras e os que foram utilizados para apoiar os mergulhadores ficam também apreendidos. Hoje a vitória é da lei, mas todos sabem que a batalha se repetirá vezes sem conta.

PERIGO NO TEJO

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O agente Amândio Bonacho conta que o fenómeno da apanha ilegal de amêijoas é relativamente recente. "Começámos a fazer este tipo de operações há cerca de quatro anos". A apanha das amêijoas depende das marés e por vezes correm-se riscos excessivos: "Já encontrei dois cadáveres nestas operações. Um deles era um mergulhador brasileiro que foi encontrado com as botijas de oxigénio às costas", conta Bonacho. A precaução não é palavra muito valorizada por quem se dedica à actividade. "Muitos dos apanhadores que por aqui andam nem sequer têm um curso de mergulho. É frequente mergulharem à noite, até para evitarem as operações que nós fazemos. É uma actividade muito perigosa", conta o agente Gomes.

As autoridades estimam que haja cerca de 100 pessoas a dedicar-se à captura ilegal de marisco no Tejo. A única zona onde é permitido apanhar bivalves é a jusante da ponte 25 de Abril. Mas são poucas as licenças concedidas para a pesca à ganchorra, praticada sobretudo por profissionais da Trafaria. Os elevados lucros do negócio clandestino levam cada vez mais pessoas a arriscar. Mesmo sabendo da contaminação do marisco com toxinas, um perigo para a saúde pública. "Quem come amêijoas nos restaurantes e tascas à beira Tejo deve ter muito cuidado e, se possível, esclarecer qual a origem do marisco que estão a comer. Eu não arriscaria", diz um dos agentes.

O agente Gomes diz que há cada vez mais gente a mergulhar no Tejo, mesmo sem a devida formação. "Nota-se os efeitos da crise económica que vivemos. A amêijoa promete um lucro fácil e há muita gente desempregada ou com empregos mal pagos que opta por esta vida".

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UM SACO COM 80 KG

Nas águas turvas do Barreiro, o agente Cruz mostra-se satisfeito com o andamento das operações de mergulho. Ajuda os colegas a trazer para as lanchas sacos cada vez mais pesados. Um dos sacos só é içado para bordo com a força de braços de dois homens. "Estão aqui uns 80 kg de amêijoa. É impressionante o peso que estes mergulhadores conseguem arrastar debaixo de água", diz o coordenador da equipa de mergulho. A lancha ‘Tubarão’ depressa fica cheia de sacos.

Com o cair da noite, é tempo de encerrar a operação. As amêijoas apreendidas vão ser devolvidas ao Tejo a cerca de uma milha do local onde os apanhadores as apanharam. "É uma espécie invasora, pelo que não faz sentido que a despejemos noutra área do rio, onde pudesse prosperar", explica Gomes. Desta vez não foram detectadas garrafas de oxigénio. Os mergulhadores terão conseguido que um barco as levasse antes da chegada da Polícia Marítima.

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PRAGA INTRODUZIDA

A amêijoa japónica tornou-se uma praga nas águas do Tejo. Sem predadores naturais, encontrou no fundo do estuário um habitat ideal para se reproduzir. O problema é a poluição do rio, mas alterações recentes poderão trazer uma mudança significativa.

"As obras que se fizeram, com a abertura de novas estações de tratamento nas duas margens do Tejo, trouxeram uma melhoria considerável da qualidade das águas. Se desaparecerem as toxinas que infectam estas amêijoas, é possível que haja uma mudança na legislação que proíba a apanha de bivalves no estuário", diz o agente Gomes.

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A melhoria do meio ambiente traz óbvias vantagens para todos, mas lança também interrogações sobre o futuro da actividade da apanha de bivalves. Isto porque, mesmo havendo a possibilidade de serem concedidas licenças para apanhar marisco em novas zonas do estuário do Tejo, será difícil convencer quem se dedica à actividade a agir dentro da lei. "Estas pessoas pagam zero de impostos. Não passam pela lota, não submetem o marisco a controlo sanitário, não têm burocracias", diz o agente Bonacho. A maior parte do marisco segue para Espanha por via terrestre. As amêijoas são consumidas como tapas do outro lado da fronteira e a maioria dos consumidores não faz ideia da origem do petisco que lhes é servido à mesa.

A operação permitiu recuperar do fundo do Tejo cerca de 1400 kg de amêijoa. Os bivalves são largados no estuário, em frente ao terminal de líquidos. São apreendidas dezenas de armadilhas e três barcos que foram vistos a ser usados pelos mergulhadores são rebocados para Lisboa. O agente Cruz acelera os três motores da lancha ‘Ria Formosa’. A embarcação de 14 metros foi apreendida no Algarve, onde era usada para o transporte de fardos de droga entre o Norte de África e o Sul de Portugal. Agora está ao serviço da Polícia Marítima. Já passa das sete quando os agentes chegam à Doca do Espanhol, em Lisboa. Amanhã haverá novas batalhas a travar, no rio ou em mar aberto.

COMPETÊNCIAS E MISSÕES DA POLÍCIA MARÍTIMA

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A Polícia Marítima (PM) integra a estrutura operacional da Autoridade Marítima Nacional (AMN) e é uma força policial armada e uniformizada, dotada de competência especializada. O pessoal da PM é considerado órgão de polícia criminal para efeitos de aplicação da legislação processual penal, sendo os inspectores, subinspectores e chefes considerados autoridades de polícia criminal. Sob a tutela do Ministro da Defesa Nacional, esta polícia tem várias competências relacionadas com actividades que se desenvolvem na costa portuguesa.

Estas competências passam por executar os actos de detenção de embarcações, nos casos legalmente previstos; fiscalizar o cumprimento das normas legais relativas às pescas; fazer cumprir as normas respeitantes aos banhistas; zelar pela preservação do meio marinho no que respeita a recursos vivos, ao combate à poluição e à vigilância do litoral e colaborar com as demais entidades policiais para garantir a segurança e os direitos dos cidadãos e preservar a regularidade das actividades marítimas.

A Polícia Marítima tem ainda por missões intervir para estabelecer a ordem a bordo de navios e embarcações sempre que ocorra perigo para a segurança e perturbação da tranquilidade do porto e investigar ocorrências em caso de naufrágios.

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NOTAS

INVASÃO

A amêijoa japónica terá sido introduzida no Tejo há cera de 15 anos. Rapidamente se tornou uma praga.

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ESPANHA

Os intermediários compram aos apanhadores e levam as amêijoas para o país vizinho.

TOXINAS

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Os animais que vivem no estuário estão contaminados. Toxinas podem provocar problemas de saúde nos consumidores.

LICENÇAS

A pesca da ganchorra só está autorizada na área a jusante da ponte 25 de Abril. Os barcos licenciados para esta arte são pintados de cor de laranja.

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