A importância de se chamar Ema

A transexual da Figueira soube cedo que não queria ser Emanuel, o massagista da Naval

23 de janeiro de 2011 às 00:00
A importância de se chamar Ema Foto: Vítor Mota
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Ema já não precisa de cobiçar os totós no cabelo das vizinhas – "como fazia Emanuel em criança" – nem de experimentar às escondidas a roupa da mãe. Longe vai a infância em que aproveitava a ausência dos pais, proprietários de um restaurante que todo o dia os ocupava, para vestir com saias a vontade de ser uma menina. Perto está o dia em que a vontade dele – já massagista da Associação Naval 1º de Maio – falou mais alto do que o medo: e Ema Sofia Alves nasceu há três meses numa clínica em Marbella, Espanha.

Ficou para trás a cara do Emanuel José que nunca reconheceu ao espelho em 37 anos de vida. Eram cinco e meia da tarde quando saiu da sala de operações, depois de um ‘parto’ de sete horas. Desde esse dia, Ema comprou doze pares de sapatos. Sete deles são botas, "um fetiche". Passou a pintar as unhas de grená ou vermelho, a cruzar a perna. Experimenta sutiãs em lojas de centros comerciais e anseia pelo Verão para comprar um biquini. "Perdi muitas coisas mas ganhei-me a mim e tudo o resto é pequenino perante a hipótese de finalmente ser quem sempre quis".

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MUITAS PERDAS

Na vida da ainda enfermeira do hospital da Figueira da Foz não mudou apenas a aparência. Perdeu "coisas importantes": passou por um divórcio, regressou à casa dos pais (e ao antigo quarto de solteiro), ficou sem o emprego como massagista da Naval 1º de Maio e tenta a custo pagar o empréstimo que a ajudou a renascer numa clínica a 850 quilómetros de casa.

"Enquanto Emanuel criei um império; tinha uma casa grande, envidraçada, porque acumulava dois empregos. Desde que sou Ema não tenho dinheiro, dependo dos meus pais. Com o divórcio e sem a Naval, um dia depois de receber o ordenado já não tenho dinheiro. Só quando vender a minha casa vou poder seguir com a minha vida". Ema nunca mais pisou o relvado do estádio do clube onde Emanuel esteve seis anos nem viu aqueles que antes considerava "uma segunda família".

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Baila-lhe a mágoa nos olhos claros mas, confessa, houve jogadores que ligaram a dar os parabéns pela coragem. "Não volto nunca mais. Está resolvido, resta-me esquecer. Mas gostava muito do que fazia, foi graças à Naval que comecei a vibrar com o futebol. Éramos tipo ciganos, estávamos ali todos para ganhar. Se algum dia voltar a ser massagista será noutro clube".

‘Encostou as chuteiras’ mas aprendeu a equilibrar-se em cima de saltos e altíssimos – no dia da entrevista tinha sete centímetros a ajudar ao 1,75 m que mede. Aprendeu também a encolher os ombros perante a evidência feminina de ter um guarda-roupa a abarrotar. "Antes arranjava-me em vinte minutos, agora preciso de cinquenta para tomar banho, esticar o cabelo, maquilhar-me, escolher a roupa. As minhas amigas e as minhas tias deram-me imensas peças e então nunca sei para onde me virar". O confronto com o espelho "deixou de ser doloroso", embora esteja a adaptar-se ainda à imagem desta Ema que sempre conheceu mas que ninguém via.

"Não posso dizer que o Emanuel desapareceu. O Emanuel e a Ema são a mesma pessoa e sempre coexistiram. Só que a Ema estava escondida". Estava tão disfarçada que nem o livro ‘O Segredo de Elektra’ – que publicou em 2002 numa editora que faliu e que quer reeditar – inspirado no seu próprio segredo, desvendou aos outros o sofrimento que a consumia. Na gaveta tem também um guião para cinema sobre a sua história de vida. Mas uma das coisas que mais a inspira é a fotografia.

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Ema começou antes da operação a fotografar-se sem roupa com uma peruca ruiva e a publicar num site de fotografia – nunca ninguém desconfiou que era um homem. "Também pinto mulheres nuas, sempre foi uma forma de projecção". Porque são elas e não eles quem mais a inspira. O sucesso que fazia com o sexo feminino tornou a adolescência menos pesarosa.

"Não me sentia bem como homem mas como sempre gostei de raparigas, pelo menos nessa parte sentia-me realizado. Eu sei que isto faz um pouco de confusão às pessoas, mas uma coisa é o ser, outra é o gostar. Sobre aquilo que eu gostava nunca tive dúvidas: gosto de mulheres. Mas tenho de confessar que isso foi difícil para a minha transformação: ‘Bolas! Então eu gosto de mulheres e quero ser mulher?’ E cheguei a achar que se me sentia uma rapariga tinha era de gostar de rapazes, mas não é mesmo a minha praia e tenho de ser eu".

Por isso foi com uma mulher que casou "por amor" e "pela Igreja" aos 29 anos – e estaria com ela não fosse a mudança de Emanuel para Ema. "Era com ela que queria estar. Não sou como um homossexual que casa para ter uma vida normal, a única pessoa que enganei fui eu própria. Mas tenho noção que agora era mais fácil para mim gostar de homens porque teria uma vida mais estável em termos de aceitação da sociedade".

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UM PAI DIFERENTE

Para trás ficou então a família de três – da relação do casal nasceu um menino, hoje com oito anos – que a esperava para jantar e perdoava as muitas ausências em trabalho. "O Emanuel não tinha tempo, acumulava dois empregos. Mas ser pai foi a maior alegria da minha vida, lembro-me de estar a cortar o cordão umbilical e a caírem-me lágrimas pela cara. Quando estava mais em baixo, quase a atirar-me da ponte, foi sempre nele que pensei para resistir". Optou por lhe contar depois de regressar da clínica e diz que a criança logo reconheceu nela o pai. "Fui verdadeira, disse-lhe porque o tinha feito e ele compreende que agora eu sou feliz. Ele sabe que não perdeu o pai, apesar do pai ser diferente".

Ema sabe que na escola a criança "teve dois ou três amigos a chateá-lo por causa disto". Por causa de uma decisão que ela tomou. Mas, "felizmente ele conseguiu dar a volta. Anda comigo por todo o lado, não tem problema nenhum. Vamos ao café, ao parque, é o meu orgulho. Às vezes, na rua, quando ele me chama papá, as pessoas estranham, claro, porque vêem uma mulher e não um homem, mas lidamos bem com isso. É óbvio que está a ter uma infância mais difícil do que a das outras crianças mas espero que não se deixe cair na tristeza". Também para os pais, que a receberam de braços e porta de casa abertos, "foi complicado": "Custou-lhes. Às vezes a minha mãe já consegue dizer filha. O meu irmão, que me via como um ídolo, também aceitou. Quando fiz anos escreveu no Facebook ‘adoro-te mana’ e isso para mim foi muito importante".

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A operação tornou-se a única saída aos 37 anos "porque a dor começou a tornar-se insuportável". Sete meses de consultas em Lisboa com um psicólogo deram-lhe o veredicto que esperava: podia avançar para a cirurgia, era de facto uma mulher ‘presa numa aparência de homem’. Ema começou com as hormonas, que ajudaram a moldar o corpo em que não pôs silicone, e avançou com um empréstimo – diz que foi muito dinheiro mas escusa-se a dizer quanto – ao banco, para sair da pele de Emanuel – "não quis fazer em Portugal, porque aqui a pessoa tem de fazer durante um ano a prova de vida: andar na rua vestida de mulher mas ainda com o rosto de homem, sujeito a ouvir bocas que magoam". Em Marbella mexeram--lhe na testa, no nariz, no queixo e no rosto. E mais não diz.

"O resto, se mexi ou não, é segredo. Acho que a cara é a vagina visível de uma mulher, é isso que diz aos outros quem somos". Ema, a corajosa, também gosta de mistérios e sorri quando diz que "algumas amizades femininas pediram para não fazer a operação". Não foi o caso de Anabela Gomes, amiga de longa data: "Sempre achei que o Emanuel era um bocadinho mais do que metrossexual mas nunca achei que queria ser uma mulher. Quando soube, disse-lhe que se era a forma de ser feliz que o apoiava".

Agora, a maioria dos pedidos de amizade no Facebook são outros: "Há muitos homens a convidar para tomar café. Independentemente da minha orientação, é bom para a auto-estima, é sinal que me vêem como uma mulher". À saída da clínica, depois da operação, vestida com uns calções de ganga curtos a evidenciar as pernas altas, soube que começava uma nova vida. Uma vida em que podia ter todos os totós que quisesse no cabelo ruivo.

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"NÃO DEIXEI DE SER MAÇON"

Entrar na Maçonaria "foi o segundo nascimento" na vida de Ema – o terceiro foi a operação. "É estranho que uma das bandeiras da Maçonaria seja a luta contra o preconceito mas que se divida entre os femininos e os masculinos. Que lugar tenho eu, um transexual, no meio? Estou num limbo, para eles não existo, mas uma coisa é certa: não deixei de ser maçon. Quando se faz o juramento, fica-se para sempre. E continuo a reger-me pelos valores".

NOTAS

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NOME

Ema ainda tem o nome ‘antigo’. A lei para facilitar a mudança foi vetada este Janeiro. "É chato nas repartições e nos médicos".

TRABALHO

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No hospital "alguns velhotes dizem: ‘Tem uma cara tão bonita, mas é um homem não é?’. A voz grossa baralha as pessoas".

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