A vida foi uma fartura
O fecho da Feira Popular acabou com o negócio que Francisco Jorge herdou do pai e do avô.
Para o dicionário [Priberam da Língua Portuguesa], a fartura "é um doce cilíndrico, geralmente frito em óleo e cortado em segmentos polvilhados de açúcar e canela". Para Francisco Jorge Fernandes, é toda uma vida.
Este homem nunca mais vendeu (tão pouco comeu) nenhuma desde que em outubro de 2003 a Feira Popular fechou portas – deixando ao abandono terrenos no valor de 135,7 milhões de euros que ninguém quer, pelo menos a julgar pela hasta pública, que não recebeu qualquer proposta no passado dia 20 de outubro –, mas por muitos anos que passem não lhes esquece o sabor. Nem o característico som da(s) feira(s) onde as vendia, entre os apitos dos carrosséis gingões e as vozes cantadas dos feirantes.
A alienação foi aprovada em julho pela autarquia e respetiva Assembleia Municipal, por um preço acima dos 101 milhões de euros que a Câmara Municipal de Lisboa pagou à Bragaparques no início deste ano pelos terrenos, onde se incluem também os do Parque Mayer. Nova hasta pública passou para o dia 3 de dezembro devido à falta de interessados.
NETO DO INVENTOR
Num envelope amarelecido pelo tempo, Francisco Jorge guarda fotografias do último suspiro da casa que geriu na feira popular, em Entrecampos – entre as diversões e o algodão doce –, lado a lado com a imagem do seu avô, Manuel Jorge, "o inventor das farturas em Portugal" e o precursor daquela que haveria de ser a história desta família portuguesa à antiga.
Foi no final do século XIX que o avô Manuel conseguiu reproduzir "a receita dos churros espanhóis" – pão frito em frigideiras de grandes dimensões –, que sempre o intrigava quando visitava o país vizinho. "Foi com esta ideia a martelar-lhe o cérebro que regressa à terra, onde havia de ensaiar os primeiros passos do prometedor negócio", escrevia o ‘Jornal de Lisboa’ em 1977 – não avançando valores, mas dando conta da tenacidade do inventor.
Entusiasmado, Manuel terá gritado para a mulher: "Descobri, descobri, descobri", depois de horas à procura da fórmula que lhe viria garantir fama e fortuna. Em 1894, era registado o nome do petisco que não mais largou a história desta família. O facto de Manuel ter nascido em Candosa, em Arganil, uma localidade à data com boa fama na panificação, também terá decerto contribuído para a bem- -sucedida empreitada.
Foi na terra natal que começou por fritar uns quantos "churros espanhóis, mas menos secos e mais doces", e a vendê-los na rua, a dez réis cada um. Conta o neto que, como os primeiros clientes começaram por achar caro o produto, o avô respondia: "Por dez réis, isto é uma fartura", o que acabou por dar nome ao renovado churro, que não demorou a invadir feiras e festas populares.
No início da sociedade, o filho mais velho de Manuel precisava de um estrado para chegar à frigideira onde se alourava a massa, quando começou a ajudar o pai no recém-descoberto ofício da família, e os dois não tardaram a correr as várias feiras da capital, onde os fritos "satisfaziam ricos e pobres" sem qualquer distinção de berço: Belém, Alcântara, Santos e a famosa feira de agosto, no Parque Eduardo VII.
"Quando aquela última acabou, Júlio Jorge Fernandes instalou-se no Parque Mayer [em 1922, onde também chegou a morar]. Tinha ainda como sócio o seu pai, e foi após o falecimento deste que transformou o estabelecimento, tornando-o num centro de atrações nacionais e estrangeiras, com o título de Musical Cinema Parque. Muita gente se recordará por certo do ambiente pitoresco desse recinto, onde se revelaram alguns elementos do nosso teatro ligeiro e por onde passaram tantas figuras pitorescas desta Lisboa", escreveu o jornal ‘O Século’ no obituário do filho do inventor das farturas. Não era apenas o aroma dos conhecidos fritos que cativava os clientes do Parque Mayer: o fadista Alfredo Marceneiro era um habitué do estabelecimento Júlio das Farturas, onde chegou mesmo a organizar uma festa artística, em 1933, como descreve o Museu do Fado.
No rival Valente das Farturas estreou-se em 1929 Hermínia Silva (que depois também chegou a cantar no ‘Júlio’), pelo que há até quem considere estas casas que vendiam o doce frito a inspiração para as casas de fado que vieram a seguir.
"Lado a lado do consumo do precioso alimento de índole festiva, quando acompanhada do indispensável vinho doce, também se podia assistir à exibição de variedades e de uns sentimentais fados à mistura. Era uma espécie de café-concerto (…), era assim uma original maneira de ver espectáculo, comendo farturas e bebendo do doce", resumia o ‘Jornal de Lisboa’.
JOGO DO QUINO
"Era uma festa naquela altura. Também havia espanholas a dançar e toda uma série de variedades que chamavam as pessoas para as farturas. Ao lado, o meu pai montou também um pavilhão comprido onde se jogava o quino [uma espécie de bingo com números a sair e cartões que valiam dinheiro]", recorda Francisco Jorge – que aos nove anos começou a ajudar o pai (tal como Júlio tinha feito com Manuel) e com a morte deste, aos 18 anos, agarrou o negócio – trocando a escola comercial pelo avental e Viseu, onde estudava, pelas muitas feiras de Lisboa.
Uma delas viria a ser a Feira Popular, inaugurada em 1943 como apoio à Colónia Balnear Infantil de ‘O Século’, onde hoje se encontra a Fundação Calouste Gulbenkian, apresentada na imprensa da altura como "o primeiro luna-parque português permanente". Foi lá que Francisco Jorge conheceu a mulher, e o namoro pegou de tal maneira que se casaram em 1960, um ano antes de a Feira migrar para Entrecampos, onde permaneceu até 2003. "Na última localização da Feira Popular juntei-me com dois tios meus, o Artur das farturas e o Jorge das farturas, porque a administração da Feira nos disse que melhor do que ter três casas pequenas de farturas era ter só uma, mas maior. Tinha 400 metros quadrados e deu-nos muito dinheiro a ganhar. A casa do Parque Mayer dava menos, por isso vendi-a em 1961". A família também chegou a levar as farturas para o Chiado, no centro de Lisboa, mas por lá não se deram tão bem. "Talvez zona demasiado chic para abandonar os pastéis da Bénard", explicava o ‘Jornal de Lisboa’, em 1977.
Mas o segredo das farturas andou com a família de feira em feira, e nem o facto de estar agora afastado do negócio impele Francisco Jorge a confessá-lo. "Só posso dizer que o modo de fabricação da fartura varia com o tempo; se está muito quente, é feita de uma maneira; se está frio, de outra, porque neste caso o tacho arrefece a massa. Eu tinha de pôr mais água quente para o tacho aquecer também e aguentar a massa quente, senão a fartura ficava emborrachada, como muitas das que se encontram por aí." Também por isso nunca mais comeu farturas desde que fechou a casa na Feira Popular. "E nem consigo passar lá ao pé, enchem-se-me os olhos de lágrimas".
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt