Afonso Cruz: "Tenho medo cada vez que publico"

‘Flores’ é o último romance de um dos escritores nacionais mais elogiados, ainda que assuma as suas inseguranças

04 de outubro de 2015 às 16:00
Afonso Cruz Foto: Duarte Roriz
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Um jornalista reconstitui a vida de um vizinho a quem um aneurisma roubou a memória em ‘Flores’ (Companhia das Letras), mais recente romance de Afonso Cruz. Desta vez, o escritor de 44 anos, autor de dezenas de livros, incluindo ‘Jesus Cristo Bebia Cerveja’ e ‘Para Onde Vão os Guarda-Chuvas’, não junta ilustrações a uma história que lhe é dolorosamente próxima, ainda que permita crer que basta uma flor no cabelo de uma rapariga para mudar uma aldeia inteira.

Ficaria nervoso se alguém fosse falar com as pessoas que o conheceram ao longo da vida para contar a tua história?

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Escrever este livro fez-lhe pensar mais na impressão que as pessoas têm de si?

Prendem-se a detalhes que podemos achar irrelevantes…

Tal como o protagonista de ‘Flores’, mantém conversas entre heterónimos frente ao espelho da casa de banho pela manhã?

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De onde partiu a ideia deste senhor Ulme que não se lembra de nada da sua vida?

‘Flores’ é o título mais curto entre todos os seus livros?

Apareceu-lhe de imediato?

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Numa passagem do livro, uma flor no cabelo de uma rapariga faz desenvolver uma aldeia inteira. Acredita que isto é possível?

Como um bater de asas de borboleta que não provoca tufões.

O protagonista tenta reconstituir a vida do vizinho ao mesmo tempo que a sua própria vida se está a desmoronar. A cura do Alzheimer chegará antes d a solução para as relações humanas não se deteriorarem?

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E parece-lhe possível e desejável que as farmacêuticas criem um remédio para que o casal nunca perca o entusiasmo?

Algumas personagens de ‘Flores’ já tinham aparecido noutros livros. São uma comunidade que vive na imaginação e vai migrando?

O Mundo seria mais fácil se, como diz uma das suas personagens, as pessoas que se julgam donas da verdade tivessem que a alimentar, passear na rua e apanhar os dejectos que ela faz na rua?

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Inquieta-se quando lhe chamam génio ou um dos melhores escritores portugueses?

Sente medo de que o reconhecimento lhe possa subir à cabeça?

Comove-o que leitores deste e de outros países em que é publicado fiquem tocadas com o que escreveu?

Claro. Sinto-me muito emocionado com algo muito simples, que é outra pessoa ler um texto meu. De repente aquilo ganha uma vida e uma expressividade que nunca dei, porque na minha cabeça senti de outra maneira. É muito comovente. E sentirmo-nos admirados é uma vaidade enorme, embora seja uma boa vaidade. Até acho que a vaidade é um bom motor, muito melhor do que outros. Há uns anos, quando fui à Feira do Livro de Belgrado, fiquei muito espantado, porque havia filas para pedir autógrafos. Comentei isso com a relações públicas da editora e disse que estava espantado. E ela respondeu: "Isto é tudo vaidade, eles só querem aparecer ao lado dos escritores." Quem me dera que os portugueses tivessem metade desta vaidade, era muito bom sinal.

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Acontece-lhe ser abordado por pessoas que querem tirar uma ‘selfie’ consigo?

Muito. Estive agora na Colômbia e na primeira escola a que fui estavam umas 700 crianças aos gritos. Queriam muito mexer, cumprimentar, o que acaba por ser comovente e bonito, especialmente por chegar a um país do outro lado do Atlântico, e ter uma recepção destas. Tantos leitores em línguas diferentes, e com culturas diferentes, e a percepção de que uma história pode ser muito local, como acontece com o ‘Jesus Cristo Bebia Cerveja’ e este ‘Flores’, mas chega a pessoas tão diferentes. O que é natural. Uma história passada no Paquistão, embora na superfície tenha aquela roupagem, na essência apresenta todos os problemas que vivemos hoje em dia: a tolerância, a aceitação da diferença - que é um problema diário por causa desta barafunda que está acontecer na Europa, com as suas causas no Médio Oriente -, e a busca da felicidade, que é eterna. O homem continua a querer as mesmas coisas, as virtudes continuam a ser as mesmas, a liberdade e o amor continuam a ser a liberdade e o amor. Muda-se a geografia mas é o ser humano que está lá.

Gostava que as notícias terríveis o ferissem mais, como ferem o senhor Ulme?

Sinto que por vezes há uma grande indignação durante dez minutos, sem grandes consequências.

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Quando uma criança síria afogada dá à costa.

Exatamente. Criam-se não sei quantos comentários e posts no Facebook, com pouca repercussão na sociedade. Mas de certeza maneira, também podem, aos poucos, ir mudando mentalidades. É como a flor no cabelo. Por vivermos numa sociedade relativamente confortável, os nossos problemas são outros, e não os essenciais de outros povos. Quando viajava com pouco dinheiro, uma mochila às costas, sem saber onde é que ia dormir e o que iria comer, as minhas preocupações eram outras. Não me preocupava por me terem servido um pastel de nata mais queimado. Muitos dos nossos problemas não são verdadeiros problemas. Se fizermos um distanciamento crítico percebemos isso.

São problemas do Primeiro Mundo…

Estas tragédias e o que aparece nas notícias têm carácter de novidade, mas não quer dizer que as injustiças não estejam sempre a acontecer. Há pessoas a morrer constantemente das piores maneiras possíveis. De fome, por violência… Se morrerem 20 juntas se calhar é notícia, mas não se estiverem a morrer cada uma num local diferente. Morre muito mais gente de fome por dia do que num terramoto. Podemos pensar em melhorarmo-nos e à sociedade à nossa volta. Não podemos viver numa depressão eterna por causa disto.

Estamos anestesiados?

Há uma dessensibilização e desumanização. Sentimos que a vida é assim, é injusta, e não há nada a fazer. Há sempre o perigo da banalização da tragédia e da injustiça.

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Vê os seus livros como um combate a essa atitude?

Espero que sim. Pelo menos que sejam um alerta para que as pessoas não se sintam tão desumanizadas. E sintam que um pequeno gesto pode fazer a diferença. Quando nos habituamos a fazer um pequeno gesto, se calhar no dia seguinte damos um passinho além. De repente, quando damos por isso, já plantámos milhares de árvores.  

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