Afonso Cruz: "Tenho medo cada vez que publico"
‘Flores’ é o último romance de um dos escritores nacionais mais elogiados, ainda que assuma as suas inseguranças
Um jornalista reconstitui a vida de um vizinho a quem um aneurisma roubou a memória em ‘Flores’ (Companhia das Letras), mais recente romance de Afonso Cruz. Desta vez, o escritor de 44 anos, autor de dezenas de livros, incluindo ‘Jesus Cristo Bebia Cerveja’ e ‘Para Onde Vão os Guarda-Chuvas’, não junta ilustrações a uma história que lhe é dolorosamente próxima, ainda que permita crer que basta uma flor no cabelo de uma rapariga para mudar uma aldeia inteira.
Ficaria nervoso se alguém fosse falar com as pessoas que o conheceram ao longo da vida para contar a tua história?
Escrever este livro fez-lhe pensar mais na impressão que as pessoas têm de si?
Prendem-se a detalhes que podemos achar irrelevantes…
Tal como o protagonista de ‘Flores’, mantém conversas entre heterónimos frente ao espelho da casa de banho pela manhã?
De onde partiu a ideia deste senhor Ulme que não se lembra de nada da sua vida?
‘Flores’ é o título mais curto entre todos os seus livros?
Apareceu-lhe de imediato?
Numa passagem do livro, uma flor no cabelo de uma rapariga faz desenvolver uma aldeia inteira. Acredita que isto é possível?
Como um bater de asas de borboleta que não provoca tufões.
O protagonista tenta reconstituir a vida do vizinho ao mesmo tempo que a sua própria vida se está a desmoronar. A cura do Alzheimer chegará antes d a solução para as relações humanas não se deteriorarem?
E parece-lhe possível e desejável que as farmacêuticas criem um remédio para que o casal nunca perca o entusiasmo?
Algumas personagens de ‘Flores’ já tinham aparecido noutros livros. São uma comunidade que vive na imaginação e vai migrando?
O Mundo seria mais fácil se, como diz uma das suas personagens, as pessoas que se julgam donas da verdade tivessem que a alimentar, passear na rua e apanhar os dejectos que ela faz na rua?
Inquieta-se quando lhe chamam génio ou um dos melhores escritores portugueses?
Sente medo de que o reconhecimento lhe possa subir à cabeça?
Comove-o que leitores deste e de outros países em que é publicado fiquem tocadas com o que escreveu?Claro. Sinto-me muito emocionado com algo muito simples, que é outra pessoa ler um texto meu. De repente aquilo ganha uma vida e uma expressividade que nunca dei, porque na minha cabeça senti de outra maneira. É muito comovente. E sentirmo-nos admirados é uma vaidade enorme, embora seja uma boa vaidade. Até acho que a vaidade é um bom motor, muito melhor do que outros. Há uns anos, quando fui à Feira do Livro de Belgrado, fiquei muito espantado, porque havia filas para pedir autógrafos. Comentei isso com a relações públicas da editora e disse que estava espantado. E ela respondeu: "Isto é tudo vaidade, eles só querem aparecer ao lado dos escritores." Quem me dera que os portugueses tivessem metade desta vaidade, era muito bom sinal.
Acontece-lhe ser abordado por pessoas que querem tirar uma ‘selfie’ consigo?
Muito. Estive agora na Colômbia e na primeira escola a que fui estavam umas 700 crianças aos gritos. Queriam muito mexer, cumprimentar, o que acaba por ser comovente e bonito, especialmente por chegar a um país do outro lado do Atlântico, e ter uma recepção destas. Tantos leitores em línguas diferentes, e com culturas diferentes, e a percepção de que uma história pode ser muito local, como acontece com o ‘Jesus Cristo Bebia Cerveja’ e este ‘Flores’, mas chega a pessoas tão diferentes. O que é natural. Uma história passada no Paquistão, embora na superfície tenha aquela roupagem, na essência apresenta todos os problemas que vivemos hoje em dia: a tolerância, a aceitação da diferença - que é um problema diário por causa desta barafunda que está acontecer na Europa, com as suas causas no Médio Oriente -, e a busca da felicidade, que é eterna. O homem continua a querer as mesmas coisas, as virtudes continuam a ser as mesmas, a liberdade e o amor continuam a ser a liberdade e o amor. Muda-se a geografia mas é o ser humano que está lá.
Gostava que as notícias terríveis o ferissem mais, como ferem o senhor Ulme?
Quando uma criança síria afogada dá à costa.
São problemas do Primeiro Mundo…
Estamos anestesiados?
Vê os seus livros como um combate a essa atitude?Espero que sim. Pelo menos que sejam um alerta para que as pessoas não se sintam tão desumanizadas. E sintam que um pequeno gesto pode fazer a diferença. Quando nos habituamos a fazer um pequeno gesto, se calhar no dia seguinte damos um passinho além. De repente, quando damos por isso, já plantámos milhares de árvores.
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