Ana Hatherly: o eros frenético
Da exaltação da lascívia à vanguarda da poesia e das artes visuais
Ana Maria Hatherly (1929-2015) foi uma poetisa, ensaísta, artista plástica e professora universitária. A sua obra realça a exaltação erótica – ‘Eros Frenético’ (1968) é o título de um dos seus livros –, numa viagem"àszonassubterrâneasdoinconsciente, do sonho, do medo, da lascívia, do misterioso mundo dos pressentimentos e dos desejos inconfessáveis", como notou Natália Correia.
Aprimeirapaixãodestaportuensefoia música, mas uma doença não a deixou prosseguir essa vocação. Em 1958 publicou o primeiro livro de poesia, ‘Um Ritmo Perdido’. Os estudos sobre a literatura barroca conduziram-naàpoesiaconcreta,datandode 1959 o seu primeiro poema visual: ‘Poeta arca seta’.
Não largou mais o experimentalismo, ligando a poesia, e as artes plásticas. Em 1977 participou com a instalação intitulada ‘Poema d’Entro’ na ‘Alternativa Zero’, uma exposição que ‘abanou’ o meio artístico português.
Entre 1978 e 1979 realizou para a RTP2 o programa ‘Obrigatório Não Ver’ (em 2009 publicou um livro com o mesmo título, editado pela Quimera). Ao mesmo tempo foi desenvolvendo uma filosofia que coloca num lugar central a figura feminina projetando o desejo e o erotismo em livros como‘ADamaeoCavaleiro’(1960),‘O Mestre’ (1963), ‘Volúpsia’ (1994), ‘Um Calculador de Improbabilidades’ (2001) ou ‘Fibrilações’ (2005). Fundou o curso de Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa, onde foi professora catedrática.
Do livro ‘O Mestre’, ed. Quimera
"O sexo é o caminho do nexo. O sexo é a mola que une e afasta. O sexo é a matriz da paixão. O sexo é a matriz da não-paixão. O sexo é a matriz da vida da morte. O sexo é a matriz da criação. O sexo é a matriz da destruição. O sexo é a matriz da ascese. O sexo é a matriz da discórdia. O sexo é a matriz da Alegria. O sexo é a matriz do enojo. O sexo é a matriz. É isso. O sexo é o que me afasta de ti e te aproxima de mim. O sexo é o que me leva para ti e te afasta de mim."
Do livro ‘Um Calculador de
Improbabilidades’, ed. Quimera
"Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
(...) Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me"
Do livro ‘Antologia de Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica’, org. Natália Correia, ed. Ponto de Fuga
"Ela vem
quando eu cerro as pálpebras pesadas
e apoio a cabeça na escuridão do desejado sono
Vem muito branca muito lenta
Fita-me calada
e muito direita
começa desatando seus cabelos negros
Abre a boca num riso que eu não oiço
deixa cair o seu vestido todo
E enquanto eu olho fascinada o seu ventre coroado de negro
seis homens pequenos e muito encarquilhados
agarram suas seis tetas
e sugam-lhes os bicos
rosados e rijos de prazer"
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