Arte de mentir
Hoje é dia das mentiras. Dia de lembrar que todos mentem. Mas uns mentem melhor do que outros. Olham nos olhos daqueles a quem mentem. Insistem na mentira. Não é verdade que se apanhem mais depressa do que um coxo.
Bill Clinton não se envolveu sexualmente, fosse lá como fosse, com a estagiária Mónica Lewinsky. José Maria Aznar ignorava que os atentados de Madrid podiam não ter sido da autoria da organização terrorista basca ETA. Richard Nixon não era um vigarista. Vale e Azevedo dispensou o avançado Rushfeldt porque ele fazia chichi nos calções. Clinton, Aznar, Nixon e Vale falaram com o coração nas mãos. E mentiram. Sucessivamente. Mais ou menos descaradamente. Da fama de grandes mentirosos ninguém os livra.
Clinton era presidente dos Estados Unidos quando negou, sob juramento, qualquer ‘caso sexual’, ‘relações sexuais’ ou ‘relacionamento sexual’ com Mónica Lewinsky. Durante uma conferência de imprensa transmitida pela televisão a 26 de Janeiro de 1998, disse: “Eu não tive relações sexuais com essa mulher, miss Lewinsky.”
Estava aberto o debate sobre o que são exactamente relações sexuais. “Não há um relacionamento sexual, um relacionamento sexual impróprio ou outro tipo de relacionamento impróprio”, esclareceu, em audição no Senado, a 17 de Agosto de 1998. Tecnicamente, não mentiu pois usou o verbo no presente – no momento em que testemunhava não estava, de facto, envolvido com Lewinsky.
Pressionado pelo procurador Kenneth Starr – a quem Mónica falara da utilização de um charuto pelo Presidente num contexto de grande intimidade física e cedera um vestido azul com a mancha do sémen presidencial –, Clinton acabou por admitir ter tido com ela “um contacto íntimo impróprio”.
Recusou-se contudo a confessar o perjúrio, socorrendo-se da definição legal de que sexo oral não é sexo. O ‘caso Lewinsky’ deu que falar – a mentira alimentou a polémica, mas o puritanismo exacerbado dos norte-americanos também não passou despercebido.
JOSÉ MARIA AZNAR
José Maria Aznar deve ter pensado que podia mentir – ou, pelo menos, ocultar o que sabia – ao povo espanhol quando manteve a tese de que a organização terrorista basca ETA era responsável pelos atentados de 11 de Março de 2004. A três dias das eleições gerais, dava jeito ao então primeiro-ministro mostrar que tinha razão quando recusara negociar com a ETA. Convinha-lhe ainda mais não ser responsabilizado pela resposta do terrorismo islâmico ao apoio da Espanha à invasão do Iraque.
No dia 11, o ‘El Pais’, em edição especial, às 13h00, titulou: “Matança da ETA em Madrid.” Às 13h10, Aznar chamou os directores de vários jornais e outros meios de Comunicação Social para expressar-lhes a “convicção absoluta” de que a ETA estava por detrás do massacre. Às 16h00 dirigiu-se ao país – não atribuiu directamente a responsabilidade à ETA, mas referiu-se várias vezes ao “bando”.
Durante a tarde, tomando conhecimento dos resultados das primeiras investigações policiais e dos serviços secretos, alguns meios de Comunicação Social estrangeiros deram como mais provável a hipótese de atentado perpetrado pelos radicais islâmicos. Mesmo anunciando a abertura de uma segunda linha de investigação, o governo continuou a acusar a ETA. Os partidos da Oposição demarcaram-se.
No dia 13 de Março de 2004, que devia ser de reflexão eleitoral, milhares de pessoas manifestaram-se diante das sedes do Partido Popular (PP), de José Maria Aznar. Recusaram a manipulação. Ninguém mente ao povo espanhol sem consequências, diziam. No dia seguinte, o PP perdeu as eleições.
MENTIMOS DE MANHÃ, À TARDE E À NOITE
Mentimos de manhã, à tarde e à noite. Não quero prolongar isto.” Feren Gyurcsány, primeiro-ministro da Hungria não queria continuar a esconder o verdadeiro valor do défice – 10,1 por cento do Produto Interno Bruto (PIB) –, nem a necessidade de políticas de austeridade.
Não era contudo suposto que as suas palavras saíssem da sala onde reunira com elementos do partido. Mas saíram e – estava o Verão de 2006 a acabar – os húngaros encheram as ruas da capital, Budapeste, gritando “mentiroso!” Nas eleições regionais que se seguiram, a coligação no poder saiu fragilizada, embora Gyurcsány merecesse um voto de confiança do Parlamento.
Por cá, são as ‘vichyssoises’ que fragilizam, ou antes, matam as coligações. Foi por causa de uma destas sopas frias que a nova Aliança Democrática acabou, em 1999, mesmo antes de ter começado. Em entrevista televisiva, Paulo Portas, então líder do CDS-PP, contou que, quando dirigia ‘O Independente’, procurara saber junto de Marcelo Rebelo de Sousa, seu parceiro na coligação ‘Força Portugal’, como tinha corrido certo jantar privado. Marcelo contou-lho tintim por tintim: quem lá estava, do que tinham falado e o que tinham comido, a dita ‘vichyssoise’.
Tendo mais tarde encontrado um dos convivas, Portas perguntou-lhe se a ‘vichyssoise’ era saborosa. Respondeu-lhe o outro que o jantar fora adiado. “Ele até teve o requinte de inventar a história da ‘vichyssoise’”, indignou-se Portas, diante das câmaras de televisão, referindo-se a Marcelo, o mesmo que, antes de ser eleito líder do PSD, a 31 de Março de 1996, dissera não pretender candidatar-se à liderança “nem que Cristo descesse à Terra”.
Tal como o sol, a mentira, quando nasce, é para todos. Também para os jornalistas. Janet Cook, jornalista norte-americana, contou uma tão bem contada que ganhou o Prémio Pulitzer. Na reportagem ‘O Mundo de Jimmy’ – publicada em 1980 no ‘Washington Post’ – apresentou uma criança de oito anos viciada em heroína.
Descreveu as marcas de agulhas nos braços magros, “com pele macia, como a dos bebés”, do rapaz. Jimmy nunca existiu. Janet devolveu o Pulitzer. Não sem antes ter abalado a credibilidade do jornal.
Jack Kelly não chegou a ganhar o mais importante prémio do jornalismo norte-americano – foi apenas nomeado. O correspondente do USA Today usou a fotografia da funcionária de um hotel cubano para legitimar a história de uma mulher que teria morrido ao fugir do país de Fidel. Descobriu-se posteriormente que a mulher não só não tentara a fuga como estava viva.
Podia ter sido só uma mentira doméstica, mas a que Sónia Moreira, 22 anos, contou fê-la ‘saltar’ para as páginas dos jornais. Residente no lar da Obra do Padre Gregório, em São Pedro de Sintra, apresentou-se como ás da Matemática, vencedora das olimpíadas nacionais da disciplina, quinta classificada nas europeias, brilhante aluna universitária pretendida pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Inventou tudo para poder continuar no lar onde vive desde os três anos. Na verdade, não tinha sequer terminado o 12.º ano. A mentira também não escolhe idades.
Richard Nixon tinha 59 anos quando, na madrugada de 17 de Junho de 1972, cinco homens forçaram a entrada no hotel Watergate, em Washington, onde decorria a convenção do Partido Democrata.
Traziam equipamento fotográfico e aparelhos para escuta. Um deles era o coordenador da campanha para a reeleição do Presidente Nixon. Foi o início do ‘caso Watergate’. Nixon negou o envolvimento na tentativa de espiar os adversários. Os americanos devem ter acreditado – reelegeram-no em Novembro de 1972. Mas nem assim descansou, pois tornaram-se evidentes as relações entre os ‘assaltantes’ e o poder republicano.
Nixon assumiu a responsabilidade, mas continuou a jurar não ter participado na marosca. “I’m not a crook” – ‘não sou um vigarista’ –, declarou a 17 de Novembro de 1973. O 37.º presidente foi o primeiro a demitir-se, a 8 de Agosto de 1974. Não aguentou a pressão pública e a falta de apoio político.
VALE E AZEVEDO
Vale e Azevedo mal podia abrir a boca sem que saísse mentira. “O cheque vai a caminho”, garantiu, referindo-se ao pagamento, sempre atrasado, do passe do avançado checo Poborsky. Sobre o dinamarquês Rushfeldt, devolvido à procedência porque não havia dinheiro, explicou: “O jogador não ficou no Benfica pois fazia chichi nos calções.”
Lembra-se quem o acompanhou nas lides da direcção do Glorioso que Vale afirmou ter contratado “um empréstimo obrigacionista de cinco milhões de contos” para aliviar a asfixia financeira do clube.
Ao perguntarem-lhe porque tardava, afiançou: “Quando eu acabar de descer as escadas já o fax de confirmação do empréstimo chegou.” De antologia é ainda a garantia: “O Rui Costa [então estrela da Fiorentina] vem a caminho.” Rui Costa chegou... sete anos depois.
E A VERDADE, O QUE É?: MENTIR É FALTAR À VERDADE
Mentir é ocultar ou faltar à verdade. E a verdade, o que é? Filósofos, homens de fé, artistas e cientistas bem têm tentado defini-la – até agora sem conclusão definitiva. Platão, filósofo grego, entendia a verdade como imutável e independente dos indivíduos.
Os niilistas (do latim ‘nihil’, que significa ‘nada’), cujas ideias foram populares na Rússia do século XIX, juravam que a verdade não existia. Já para os relativistas não há absolutos – o que é verdade para uns pode ser mentira para outros;m o que é verdade agora pode ser mentira depois.
Há mentiras que se dizem para protecção própria ou de outro, sem causar dano – chamadas piedosas – e mentiras ditas para ilusão e prejuízo alheio. Santo Agostinho, doutor da Igreja, mostrou benevolência com os mentirosos do primeiro tipo. São Tomás de Aquino não – mentir é mentir e mais nada. Menos polémica é a questão da origem da mentira.
O primeiro mentiroso foi a serpente, quando convenceu Eva a provar o fruto proibido, dizendo-lhe que ficaria a saber tanto como Deus. Eva levou Adão a morder a maçã e os dois foram expulsos do Paraíso. O resultado está à vista.
HISTÓRIA DE UM BONECO: PINÓQUIO NASCEU EM 1881
‘Storia di un burattino’ (‘História de um boneco’), da autoria de Carlo Lorenzini, pseudónimo de Carlo Collodi, começou a ser publicada em 1881 num jornal dirigido às crianças. O sucesso foi tanto que, em 1883, os capítulos foram compilados em livro – ‘Le Avventure di Pinocchio’, ‘As aventuras de Pinóquio’, um rapazinho de madeira que queria ser de carne e osso, a quem crescia o nariz sempre que dizia uma mentira.
O livro foi traduzido em todas as línguas, encantando crianças e adultos, pois permite vários níveis de leitura, até do ponto de vista psicanalítico: só quando desiste das mentiras e aceita o princípio da realidade, Pinóquio se torna humano.
A GRANDE NECESSIDADE DE ENGANAR O PRÓXIMO
No mundo dos mentirosos compulsivos, as pessoas transformam a farsa num estilo de vida. Alguns procuram ajuda clínica; outros continuam a enganar-se a si própriosde enganar o próximo.
Uma mentira piedosa pode ajudar alguém. Uma boa mentira pode ajudar a fazer toda uma vida. Mais do que uma – muitas e muitas vezes – é doença. Caso de Manuel Rosa. Inconstante nos humores e esquivo nas adversidades da vida, Manuel, 32 anos, esconde um longo historial de mentiras.
Para conseguir um emprego numa empresa, valorizou-se com um curso que nunca teve, apresentou experiências profissionais inexistentes e, por diversas vezes, omitiu a realidade à mãe quando foi despedido. Sempre que é confrontado com dificuldades económicas ou situações que, na sua mente, o desvalorizam perante os outros, engendra uma história. Afirma-se um “mentiroso por piedade, para não ferir os outros”.
Tal como acontece com a maioria das pessoas que enfrenta o problema, rejeita ser classificado de mentiroso compulsivo, mas admite que mente “demasiado”. “As minhas mentiras nunca fizeram mal a ninguém, a não ser a mim próprio. Sei por que minto. É sobretudo quando quero atingir os meus objectivos. Sinto que, se disser a verdade, não me vão dar a oportunidade. Outras vezes, é para evitar magoar alguém”, considera.
A maior parte das vezes, a mentira acaba por ter ‘perna curta’. Manuel Rosa vê-se obrigado a confessar a verdade: “Nesses momentos, sinto-me mal. Mas aí, já provei o meu valor enquanto profissional e deixam-me ficar. Perdoam-me”. A necessidade da mentira perturba tanto a sua vida profissional como pessoal. “Nos dias em que não me apetece ir trabalhar ou ver ninguém, invento desculpas de todo o género e feitio. Só não justifico as minhas faltas com a morte de alguém, pois tenho medo que, realmente, aconteça.”
O maior imbróglio em que se envolveu foi inventar um emprego que nunca existiu, longe das pessoas que o rodeiam. “Disse que estava em Barcelona, mas fui para Trás-os-Montes. Não tinha trabalho”, lembra.
Essa mentira é justificada com uma atitude defensiva: “Prefiro engendrar uma coisa destas do que ter de dizer que ando em baixo. Sei que as pessoas vão comentar.
Não suporto a ideia de ser alvo de chacota dos outros. Tenho mais coragem do que eles todos e não lhes dou o direito de terem pena de mim.” A falta de dinheiro acabou por pôr fim ao embuste. Pediu ajuda a um amigo, a quem revelou a verdade: “Não minto por mal. Se há alguém que sai prejudicado, sou apenas eu.
Por exemplo, se dissesse à minha mãe que estava desempregado e sem dinheiro, ela iria perder a imagem modelo que tem de mim, de alguém que consegue vencer na vida sem precisar do apoio de ninguém.”
SEM NENHUM QUADRO
Sem nenhum quadro clínico específico na lista de doenças mentais, a mentira compulsiva surge, segundo os médicos, como uma perturbação ligada a disfunções da personalidade e associada a outros problemas psíquicos, incluindo as dependências de álcool ou droga.
No caso de Manuel Rosa, o seu comportamento resume--se a uma mentira funcional, de protecção narcisista. Margarida Robalo, terapeuta na consulta de psicoterapia cognitivo-comportamental do Hospital da Universidade de Coimbra, explica que “a mentira acontece porque as pessoas não querem enfrentar a realidade.
Preferem evitar situações de zanga que determinada situação causará noutra pessoa. Por algum motivo nunca vimos ninguém mentir às paredes”. A psicóloga alega que “os mentirosos se habituaram a mentir porque acham que não têm hipóteses de ser aceites pelo outro, tal como são”.
Joaquim, 47 anos, é maníaco-depressivo desde a juventude. O seu estado de espírito sofre oscilações inexplicáveis. Tanto pode viver seis meses de euforia, como cair num estado de tristeza prolongado.
Durante muito tempo, julgou que a mentira era sua aliada. “Não sei por que mentia. Às vezes, até eu ficava surpreendido com as intrujices que dizia”, revela. Nos momentos em que a sua auto-estima estava em queda, a tendência de Joaquim era para fabular as origens da sua família, para relatar feitos que nunca se concretizaram. “Houve uma vez que disse que o meu avô tinha sido governador civil de Faro. Outras vezes, magicava situações dos tempos da Faculdade de Direito”, admite.
Para ele, a farsa nunca representou um dilema moral. “Não me importava e tão-pouco sentia remorsos. As mentiras eram impulsivas, mas tinha essa consciência.”
Os distúrbios psíquicos que o acompanham desde cedo impediram-no de seguir uma vida normal. “Andei muitos anos a tentar tirar o curso de Direito. Já na altura, fazia planos, mas depois, por minha culpa, acontecia sempre qualquer coisa que estragava tudo. No fundo, mentia a mim próprio. Hoje, sei que foi o meu problema que me impediu de ser advogado e de ter uma carreira”, justifica-se.
Solteiro e solitário, há cerca de 13 anos que Joaquim é acompanhado por um psiquiatra, um psicólogo e uma assistente social. A necessidade de mentir desapareceu e, por vezes, quando fala com certas pessoas a quem ficcionou histórias, é ele quem se sente na obrigação de repor a verdade. “É curioso que, quando mentia, ninguém se apercebia disso.
Acho que o fazia mesmo muito bem. E como tenho boa memória, nunca dizia algo que me contradissesse. Vivi assim durante muitos anos. Agora, quando falo com alguém, sou eu quem pede desculpas por ter inventado determinada história.”
FANTASIAS DE MANUEL ROSA
As fantasias de Manuel Rosa ou de Joaquim nunca trouxeram consequências de maior a ninguém. O mesmo não pode dizer Jorge, vítima de uma mentirosa compulsiva. Uma noite com uma colega transformou-se num pesadelo psicológico, que se arrastou por mais de um ano. “Conhecia-a na escola onde dava aulas. Acabou o ano e ela foi-se embora.
Um dia, telefonou-me a dizer que estava grávida. Tentei marcar encontros para falar sobre o assunto, mas ela evitava-os. Cheguei a vê-la mais tarde. Nessa altura, disfarçou a barriga com um casaco largo e não deu para me aperceber de nada. Até que o bebé supostamente nasceu, sem que eu conseguisse vê-lo. Telefonava-lhe a perguntar se estava tudo bem.
Tentei ver a criança, mas ela encontrava sempre uma desculpa qualquer. Enviou-me fotografias de um bebé, telefonava-me e descrevia-me as roupas que a menina trazia vestidas”, conta. Jorge convivia com estes relatos, acreditando na sua veracidade.
Embora a gravidez indesejada de uma mulher que mal conhecia não lhe agradasse, decidiu contar o sucedido à família e enfrentar as consequências com naturalidade, mas sem nunca ter oportunidade de ver a suposta filha. Até que se aproximou o dia marcado para o baptizado: “Telefonou uma semana antes a dizer que a cerimónia tinha de ser adiada porque o padrinho estava na Holanda.
Sugeri-lhe que escolhesse outra pessoa. Mais uma vez, recusou.” A desconfiança instalou-se. Com a ajuda de um conhecido natural da cidade onde a rapariga vivia, Jorge descobriu que nunca existiu nenhuma gravidez. “Decidi enfrentá-la com a verdade e evitar mais mentiras”, recorda.
NA COMPANHIA DO IRMÃO
Na companhia do irmão, dirigiu-se para o norte do País. Ao chegar, surpreendeu-a na casa onde vivia com os pais. “Ainda tentou prolongar a mentira. Desceu para falar longe da família. Disse-me que a bebé estava numa casa da aldeia. Depois de muito insistir, convencia-a a mostrar-me a criança. Quando chegámos lá, ela mentiu-me, inclusive, à frente de uma tia.
A senhora, sem compreender o que estava a acontecer, só dizia, aflita, ‘o que se passa filha? que bebé? quem é este rapaz?!” Depois, ainda me tentou convencer de que a criança estava noutra casa da aldeia. O meu irmão foi lá ver sem que ela se apercebesse, mas obviamente que não encontrou nada”.
Jorge ficou apavorado; confrontou-a novamente. Chocado com a veemência com que mentia, percebeu que ela acreditava naquilo que estava a dizer. Não havia nada a fazer. Sugeriu-lhe que procurasse ajuda médica e regressou a casa, estarrecido com o episódio que tinha presenciado. “Fui-me embora, mas vi-me obrigado a ter de a ameaçar que a denunciava à polícia, caso ela não parasse com a história”.
A saga parecia não ter fim. Passadas algumas horas – continua – “telefonou-me uma amiga comum a afirmar-me que ela já lhe tinha ligado a dizer que a criança existia, mas que a escondeu porque nós a queríamos raptar”. Este professor de 33 anos teve de mudar o número de telefone. “Espero que tenha procurado ajuda médica, antes que alguém caia numa situação igual à que vivi. As pessoas que a conheciam deixaram de lhe falar. Não sei o que foi feito dela, nem quero saber.”
EPISÓDIO VIVIDO
O episódio vivido por Jorge teve um final neutro. Viveu momentos de pesadelo que, no presente, servem só de hitória, uma espécie de filme mau que apesar de tudo conta.
No entanto, José Pacheco, terapeuta no Serviço de Terapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, avisa que, quando são descobertos, os mitómanos podem ser “perigosos”: “Eles acreditam que aquilo que dizem é verdade. Se houver um confronto muito duro de alguém que desmonte a mentira, essa pessoa entra em frustração e pode fazer asneira, do suicídio à agressão. É como se ficasse nua em relação ao outro.”
Apesar de raros, o psicólogo clínico lembra-se de um caso em que as mentiras de um paciente afectavam, sobretudo, a família. “Era um sujeito que tinha a mania das grandezas. Era funcionário administrativo de uma empresa, só que insistia que era o dono. Dizia que tinha um brevet. Quem se sentia incomodada era a mulher, que ficava envergonhada à frente das outras pessoas.”
QUADRO SEMELHANTE
Num quadro semelhante, mas ainda solteiro, António, 30 anos, diz despudoradamente que é proprietário de uma firma de sucesso. Mentira. Todos os amigos sabem que há muito que o negócio faliu. Convivem com ele desde os 14 anos. Só mantêm a amizade porque, refere um amigo, “ele é boa pessoa, apesar de ser um caso perdido”. “Já na adolescência chegava a dizer que tinha estado com cinco raparigas numa só tarde, quando todos sabíamos que, nesse dia, ele nem sequer tinha saído de casa”, exemplifica.
A amizade prevalece com a bonomia dos que são alvo ou assitem às mentiras de António – os amigos. Mas nem essa prova de amizade incondicional comove o mintomano. Nada adianta. Nem o conselho sinceroque é o recurso a um terapeuta. Não quer, recusa. “Diz-nos que somos malucos, quando todos sabemos que mente compulsivamente.”
António é apenas um entre muitos que não assumem o problema. Todas as pessoas, uma ou outra vez na vida – mais do que às vezes desejam –, se cruzam com gente para quem a mentira é a única forma de lidar com a existência. A única forma de viver. E continuar.
Até admitirem que vale a pena procurar ajuda vai um longo caminho, quase sempre perdido. “Não há nada que os faça recorrer a tratamento. Muitas vezes, as pessoas nem estão conscientes da mentira. Outras vezes, no caso dos mentirosos mais funcionais e que têm essa noção, estão relativamente adaptados às situações do dia-a-dia. Sobrevivem assim”, conclui o psicólogo José Pacheco.
A ancestral mentira continuará a persistir e a merecer anualmente um dia no calendário.
JEAN-CLAUDE ROMAND: HISTÓRIA LITERÁRIA
A história mais macabra aconteceu em França. Jean-Claude Romand enganou a família e os amigos durante 18 anos. Todos acreditavam que ele era médico e chegou a extorquir 2,5 milhões de francos aos parentes.
Quando a verdade foi descoberta, preferiu assassinar os pais, a mulher, os filhos e até o cão, com a ideia de se suicidar a seguir, a encarar a verdade.
O crime teve lugar a 9 de Janeiro de 1993. Jean-Claude Romand foi condenado a prisão perpétua a 2 de Julho de 1996. A sua vida inspirou o romance ‘O Adversário’, de Emanuel Carrère. Em 2001, a história, com título homónimo, foi adaptada para o cinema por Nicole Garcia, com o actor Daniel Auteil, no papel principal.
No ano seguinte, o cineasta Laurent Cantet recriou a história, em ‘L’Emploi du Temps’.
ESTUDO: UM CÉREBRO DIFERENTE
Uma equipa de cientistas da University of Southern California, nos Estados Unidos da América, descobriu que o cérebro dos mentirosos compulsivos é diferente das pessoas com reacções normais. Ao observarem os indivíduos submetidos ao estudo, os referidos cientistas concluíram que os mentirosos têm mais 26 por cento de matéria branca no cérebro.
A função desta parte do cérebro é transmitir a informação, enquanto que a matéria cinzenta a processa. A amostra utilizada para esta investigação norte-americana foi dividida em três grupos. O primeiro era composto por 12 pessoas com historial de mentiras. No segundo, encontravam-se 21 indivíduos sem qualquer problema do género. O último era formado por 16 pessoas com um distúrbio de personalidade anti-social, mas sem patologia de mentira. Observando os três grupos, os investigadores da University of Southern California constataram que o dos mentirosos tinha mais entre 22 a 26 por cento de matéria branca do que os outros todos.
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