Ary dos Santos: sem papas na língua

A provocação feita poesia erótica, satírica e política.

20 de outubro de 2019 às 13:00
Ary dos Santos Foto: Direitos Reservados
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José Carlos Pereira Ary dos Santos (1936 ou 1937-1984) foi um meteoro na poesia portuguesa dos anos 60 a 80 do século XX. Os seus poemas, muitos escritos na rua da Saudade, no bairro lisboeta de Alfama, andaram na boca do povo como letras de cantigas que ganharam o Festival da Canção e fintaram a censura do Estado Novo, com versos subversivos para a época, como: "quem faz um filho fá-lo por gosto". A sua crítica de costumes com linguagem excessiva desdobrava-se em crítica social e política, ora através de provocações de forte carga erótica, ora chamando a atenção para a assumida homossexualidade - "serei tudo o que disserem: poeta castrado, não!"

De origens aristocráticas, era descendente, pela parte do pai, de um oficial miguelista na Guerra Civil e, pela mãe, do célebre Pina Manique. Filho e neto de médicos prestigiados, o jovem José Carlos ficou marcado pela morte da mãe, tinha ele 13 anos. Aos 16 zangou-se com o pai e saiu de casa. Foi paquete na Sociedade Nacional de Fósforos, escriturário no Casino Estoril e criativo de publicidade. Opositor ao Estado Novo, tornou-se ativista da CDE nas eleições de 1969 e aderiu ao PCP. Quatro canções com letras suas representaram Portugal no festival da Eurovisão, cantadas por Simone de Oliveira, Tonicha, Fernando Tordo e o grupo Os Amigos. Após o 25 de abril de 1974 foi um dos mais conhecidos propagandistas do PCP. Vinte anos depois de morrer foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique.

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Do livro ‘Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica’, ed. Ponto de Fuga

"A Rainha de Inglaterra faz uma gaifonas vai à sua diz o pirata da perna de pau o espumante francês faz borbulhas na cona o marechal reformado bate a pala ao mau-mau.

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(…) O chulo da corista também subiu na vida

cortem-lhe o caralho

cortem-lhe o pescoço

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é preciso dinheiro

é preciso comida

é preciso pagar-se a fome do grosso.

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a Duquesa Larocas toca pandeireta

o Barão do Balão toca xilofone

a Marquesa da Aorta toca uma punheta

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a menina Decoro morreu ao telefone.

(…) Meus Irmãos Meus Irmãos

ensaiemos agora

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antes que seja tarde

antes que seja cedo

não há parto sem dor

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não há tempo sem hora

é urgente rompermos a vagina do medo."

Do livro ‘As Palavras das Cantigas’, ed. Avante

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Desfolhada

"Corpo de linho

lábios de mosto

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meu corpo lindo

meu fogo posto.

Eira de milho

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luar de Agosto

quem faz um filho

fá-lo por gosto. (...)"

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Do livro ‘Fotos-grafias’, ed. A Bela e o Monstro

Retrato de Gomes Leal

"Meu menino anarquista minha trança

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cor do luto da terra que é a nossa

meu pequeno quixote sancho pança

no meio da praça príncipe da troça

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Meu demónio de versos minha estrela

minha luva amarela meu tunante

que namoras beatas à janela

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e fodes a duquesa de brabante.

Minha rosa de rimas meu sacrário

meu cálice no bar do anticristo

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minha espora de vinho visionário

deste quase protesto de opereta.

Meu quase tudo quanto resta disto

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meu poeta meu trapo meu trombeta."

Do livro ‘Obra Poética’, ed. Avante

Poesia-orgasmo

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"De sílabas de letras de fonemas

se faz a escrita. Não se faz um verso.

Tem de correr no corpo dos poemas

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o sangue das artérias do universo.

Cada palavra há-de ser um grito.

Um murmúrio um gemido uma erecção

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que transporte do humano ao infinito

a dor o fogo a flor a vibração.

A Poesia é de mel ou de cicuta?

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Quando um Poeta se interroga e escuta

ouve ternura luta espanto ou espasmo?

Ouve como quiser seja o que fôr

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fazer poemas é escrever amor

poesia o que tem de ser é orgasmo."

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