“Boicotei um bombardeamento à população”

Eu era contra a guerra, mas entendia que era dentro da máquina que se lutava. Em Angola, nunca tive conflitos de guerra, só com a PIDE

25 de novembro de 2012 às 15:00
A Minha Guerra, Guerra Colonial, Guerra do Ultramar, Luanda, PIDE Foto: Direitos reservados
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Embarquei para Luanda em Fevereiro de 1970 e fui já com 22 meses de tropa. Estava em Elvas, era operador de cripto, e quando outros foram mobilizados fiquei sozinho e fui eu mesmo que decifrei a mensagem da minha mobilização. Era contra a Guerra Colonial e chegaram a propor-me que desse o salto para França, mas entendi que era dentro da máquina que se lutava.

Fui chamado ao barco três vezes, em Dezembro, a 14 de Fevereiro e depois a 18, quando finalmente embarquei com outros camaradas. Fomos em rendição individual para o comando da zona militar leste. Cheguei a Luanda e vivi logo um episódio engraçado, pois a polícia militar implicou por levar o cabelo grande, como se usava naquela época. Coloquei as malas no chão e respondi: ‘Se alguma coisa está mal, está aqui o barco, mandem-me embora que eu não me importo’. Recordo a frase do alferes que disse: ‘Ó pá, este ainda agora chegou e já está cacimbado’. Era o que se dizia das pessoas que estavam em Angola há muito tempo e sofriam influência daquele clima, da cacimba.

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Ficámos uma semana na capital, numa unidade CMR 113, conhecida por ‘companhia de malandros e reguilas’. Havia lá gente com vários anos de tropa, castigados e assim. E era uma coisa mesmo desregrada, pois quando entregavam as licenças para o pessoal sair ninguém esperava e, normalmente, havia porrada à saída. Ali a nossa actividade era nula e dormíamos na rua porque o quartel estava empestado de percevejos.

MENSAGENS DECIFRADAS

Depois de três dias de viagem fomos para o Leste e aí o pessoal do meu grupo, a que chamavam ‘o desarranjado’, andava por sua conta. Na altura, o exército gastava 20 escudos e 50 centavos com cada pessoa e dava-nos a quantia para usarmos como queríamos: comíamos nos restaurantes e alugámos uma casa. O nosso trabalho era só decifrar mensagens. Trabalhávamos 24 horas e éramos os únicos criptos em África com esse horário. Mas fazíamos escalas para nos revezarmos e só trabalhei 24 horas seguidas duas vezes, em situações extremas. Uma ocorreu no dia de Carnaval de 1971, em que houve um ataque a Caripande, à unidade onde estava na altura o escritor António Lobo Antunes e que sofreu 113 morteiradas.

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Um dia aproveitei para boicotar um bombardeamento à população. Enviei a mensagem para todos excepto para o local onde estavam os aviões. Foi de propósito. No dia seguinte, o sub-chefe avisou-me de que iria para a prisão. Ainda respondi a uns autos mas aquilo estava bem engendrado e foi dado como erro de serviço. Era a nossa maneira de boicotar a guerra.

Conflitos de guerra nunca tive. Dentro da cidade era pacífico, íamos para o rio, andávamos por ali, tínhamos alguns casos com a PIDE, mas nada de especial. Lembro-me que o simples convívio com a população negra era criticado e um dia fomos chamados à PIDE porque tínhamos andado a saltar as fogueiras de S. João com uns miúdos negros, no Luso. Mas o pessoal sabia fazer as coisas, tínhamos actividade política sem problemas. Eu tinha 16 homens sob meu comando e nunca andámos armados. Só quando fomos de Luanda para o Leste é que me deram uma velha mauser, à qual tirei a culatra e atirei para o fundo do saco.

Voltei a Portugal a 8 de Dezembro de 1971 e no regresso encontrei um país velho. Em Luanda, a malta andava de calções, as moças vestiam apenas bata para ir para o liceu. Em Portugal, na altura, as pessoas andavam de preto por causa do luto provocado pela Guerra Colonial.

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PERFIL

Nome: Jorge Fernando Santos

Comissão: Angola (1970-1971)

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Força: Operador de cripto

Actualidade: Reformado, 65 anos

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