Cego é aquele que já viu tudo
'Cegueira’ de Fernando Meirelles, inspirado no livro de Saramago, já está disponível em DVD. Trata-se duma evidente parábola sobre o mundo contemporâneo, a sua desaliança e desafiliação, no qual a solidariedade é um luxo, mais raro que espécies em extinção. E, como diz Baudrillard, uma sociedade em desintegração não pode integrar.
Muitos vivem como estrangeiros nos seus próprios países, sem sentimento de pertença cultural ou político. O exilado torna-se numa metáfora. Ou, como sintetiza John Gray, a inclusão, antagónica à globalização, advém agenda radical. De desafiliar a desafiar vai um passo. Nem sempre no melhor sentido. Esses traços desta época, em tempos de medo – do terrorismo, bairros sociais, crise, gripe – passam a sulcos. A desaliança é amplificada quando o horror corre pelas ruas e pelas veias. Em ‘Cegueira’, o mundo entra em pânico ao perder a visão subitamente. Esse pavor estoira com o que sobra da civilização e, como se sabe, sem ela a humanidade revela a sua animalidade. De cientistas a filósofos, muitos têm especulado sobre o destino.
Aliás, ‘O Dia das Trífides’ de John Wyndham, a praga de plantas que cega humanos para os devorar, é anterior ao ‘Ensaio sobre a Cegueira’. Mas a ficção científica raramente é levada a sério e Orwell, Kafka ou Borges não são considerados autores do género. Contudo, como classificar esta ‘Cegueira’? Os autores de ficção científica especulam sobre o destino olhando para a realidade, enquanto Saramago encara o futuro como se já fosse passado, um pretérito de falhanço e egoísmo. Talvez seja essa a diferença.
‘Cegueira’ não se liberta do Nobel. É uma ilustração estilizada, sem densidade. Nunca se coloca no ponto de vista dos cegos, como seria crucial. Até porque esta cegueira não é escura mas luminosa, semelhante à angústia do escritor perante a página em branco ou à do pintor frente à tela. É a angústia da ausência de ideias. Da falha de alternativas.
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt