COM A TELEMEDICINA ACABARAM-SE AS BARREIRAS

Em Lisboa muitos não sabem o que é a telemedicina, no Alentejo já é uma realidade. Álvaro Pacheco é um dos responsáveis pela revolução em curso.

18 de julho de 2004 às 00:00
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Nos últimos cinco anos, Elvas posicionou-se como impulsionadora da rede de telemedicina no Alentejo. Com apenas 37 médicos, o Hospital de Santa Luzia tornou-se um hospital do futuro. Virtualmente, usufrui das especialidades à disposição nos hospitais centrais e oferece aos centros de saúde alentejanos formação e consultas nas áreas de saúde em que tem competências.

Através da teleconsulta e da teleradiologia, os doentes poupam nas deslocações e ganham no atendimento, em que estão no centro das atenções. Dois médicos – o de clínica geral local e um especialista externo – discutem o diagnóstico num espaço virtual, mas num tempo real e mais humanizado. Angolano, humanista, e visionário, Álvaro Pacheco – o director do Hospital de Santa Luzia, em Elvas – é o rosto da revolução em marcha.

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Apesar do seu trabalho nesta região, não é alentejano…

Sou angolano e vivi 30 anos em Angola. Tive a felicidade de pertencer ao primeiro curso de Medicina feito em Angola. Isso deu-me uma bagagem muito boa porque éramos só 11 alunos.

Terminei em 20 de Novembro de 1972 e comecei em 1965. Sou o primeiro médico formado em Angola porque me chamo Álvaro e fui sempre o número 1. Depois por força da guerra… Ninguém me apontou uma pistola a dizer para vir embora, mas quando estou em casa e me entra uma bazucada pelo prédio… Uma semana depois estava cá.

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Foi a primeira vez que vim a Portugal, em 1974. Deixei cá a família e naquela coisa do ‘sou angolano’ regressei. Dois meses depois estava de volta. Infelizmente a minha primeira mulher morreu muito nova, aos 32 anos, com um cancro. Daí a minha vocação para os cuidados paliativos. Durante sete anos, até à morte, acompanhei-a. Morreu em casa, por desejo dela mas também meu.

Já em Portugal, onde foi colocado?

Fui trabalhar para o Hospital de Setúbal. A minha preparação tinha sido polivalente, para trabalhar em hospitais pequenos. Depois de estar dez anos em Setúbal achei que, com a formação que tinha, não era para ficar ali. Tinha que ir para um hospital onde pudesse fazer algo em prol da população. Um dia concorri a Évora e a Elvas. Quando vim achei que a cidade – muito pequena mas muito bonita, com um hospital antigo, da Misericórdia – tinha muitas possibilidades para vir a fazer-se algo. Há vinte anos que estou cá. Mas não vou ficar.

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A minha vida ainda vai passar por África. Por isso a minha veia da cooperação internacional.

E quer voltar a Angola?

Sim, se bem que por ironia do destino estou a ajudar S. Tomé e Príncipe. É um país muito pobre e com muitas necessidades e Portugal, no campo da saúde, tem feito muito. Também é África e uma pessoa ao dizer que é angolana no fundo é africana. Angola ou África não é melhor nem pior do que a Europa, mas é diferente.

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A cooperação que faz é no âmbito de alguma instituição em particular?

Temos no Ministério da Saúde uma Cooperação Internacional da Saúde que colabora com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Estou a dar apoio, quer pontualmente em S. Tomé, quer na gestão, como por exemplo agora na área da telemedicina. A telemedicina começou aqui em Elvas – não por sermos mais ou menos espertos, mas por necessidade.

O que é a telemedicina?

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A telemedicina – que não é uma medicina nova, antes uma maneira nova de fazer medicina – é uma ferramenta que permite que, usando as novas tecnologias de informação e comunicação, se consiga prestar cuidados de saúde sempre que os intervenientes estejam distantes. Em 2002 tínhamos teleconsulta em quatro especialidades, em 2003 já tínhamos em sete, e em 2004 temos em onze.

Não precisamos de ter aqui um especialista para ter uma consulta em genética. É o hospital virtual. Vai ser o hospital do futuro – já é noutros países. Temos de ter as valências básicas que respondam à população. E depois, por inovação e virtualmente, podemos ir buscar outras.

Como é uma teleconsulta?

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Há toda a parte administrativa que tem de ser feita como se fosse uma consulta clássica, depois o doente é visto aqui pelo médico que o assiste…

Pode ser. Os médicos hospitalares sabem o que o doente tem porque, 24 a 48 horas antes, mandamos um fax. Conhecem a sintomatologia do doente. O diagnóstico definitivo é discutido depois virtualmente.

Como se processa em urgências?

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A telemedicina abrange as teleconsultas e as teleradiologias. Na urgência, no caso de um traumatismo craniano por exemplo, temos de fazer um TAC. É enviado para o Hospital de S. José através da teleradiologia e o que estamos a ver aqui também o colega de Lisboa pode ver. Directamente, pela teleconferência, o colega pode fazer o diagnóstico.

Estão a desenvolver-se duas tendências paralelas em que uma espécie de João Semana no interior colabora com o superespecialista que vive nos grandes centros urbanos?

No fundo é isso.

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O Hospital de Santa Luzia serve quantas pessoas?

No distrito de Portalegre há dois hospitais, o da capital e o nosso, já muito no Sul do distrito e junto à fronteira. A nossa área de influência é a de Elvas e Campo Maior e atinge 30 mil habitantes. Simplesmente, temos um hospital com dez anos que está muito bem equipado e pode servir mais população. Criámos uma área de atracção que chega a mais 30 ou 40 mil habitantes.

De concelhos próximos. Por exemplo, Borba pertence ao distrito de Évora mas, por estar a 23 km, os habitantes preferem vir para aqui do que andar sessenta e tal km para Évora. A telemedicina tem essa vantagem, não haver barreiras. Temos de estar em rede com os outros hospitais e os centros de saúde. Temos ortopedia com Mértola, com Moura, fazemos cirurgia para o Alandroal.

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E com os vizinhos da raia, há cooperação?

Começámos com Cáceres, com a cirurgia laproscópica. As pessoas dizem que é a dos furinhos, em que se opera de fora. Tivemos a possibilidade de, nos chamados projectos Interreg, transfronteiriços, ir lá aprender.

Em 1996, 97. Puxou-me o bichinho para a telemedicina porque, quando estávamos a fazer a cirurgia experimental, o Centro de Microcirurgia estava ligado a Houston. Éramos supervisionados por quem estava nos EUA. Através de um projecto nacional compraram-se aparelhos de telemedicina para vários hospitais e o nosso foi um deles. Pensei que podíamos fazer uma formação com Cáceres a nível teórico. Íamos lá fazer a experimentação e o resto fazia--se através da videoconferência.

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Qual o equipamento necessário?

É uma consola especial e depois há um outro computador especial ligado à teleradiologia.

Muito. Custa cerca de cinco mil contos.

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Como é a relação do doente com o médico que não está presente fisicamente?

Na telemedicina o doente está no centro das atenções porque, em vez de um, tem dois médicos a tratar do seu problema. O doente está em Elvas quando pedimos apoio, por exemplo, em dermatologia. O médico do hospital apresenta o doente que sabe que está a ser visto à distância por um dermatologista. Sente que está no centro das atenções…

As teleconsultas provocam situações diferentes das consultas clássicas?

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Quando há mudança, há resistência. Tem é que se sensibilizar, explicar o porquê e as pessoas vão aderindo. Em 1998 fiz um inquérito a 60 funcionários. Setenta por cento não responderam. Dos que responderam, 60% diziam não saber o que era a telemedicina. Este ano, fizemos novo inquérito e só dois por cento disseram não saber o que é a telemedicina. Mas há sempre histórias.

Optámos por ter um informático a preparar o material e avisamos o doente que na consulta vai estar uma pessoa estranha à mesma. Nas primeiras consultas, havia uma doente que tinha um nódulo na pele da região mamária e perguntei se queria que o informático saísse dado que íamos mostrar ao dermatologista. A senhora disse “não, não, quero é que me trate”.

A telemedicina levanta questões éticas?

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Quando as pessoas querem fazer algo de novo, fazem-no respeitando o que sempre se respeitou do ponto de vista ético. Em certos hospitais levantam-se muitos problemas e as pessoas acabam por desmotivar.

Quais são os problemas que coloca?

É um direito do doente saber o que tem. Quando se trata do cancro temos de saber se ele quer saber. Aí, como há uma equipa que está presente, o tratamento é muito entre o médico e o doente. Tem de haver uma habilidade do médico para perceber se o doente quer saber e até onde. Não é fácil. Tanto que hoje há a medicina paliativa.

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É um acompanhamento?

É um acompanhamento da fase terminal do doente. Estou a frequentar o primeiro mestrado de Cuidados Paliativos da Faculdade de Medicina. Tenho de provar a necessidade de criar, a montante do hospital, os cuidados paliativos para os doentes não virem ao banco de urgência. Podem criar-se condições – que são mínimas – para os doentes morrerem em casa. Estas pessoas não querem estar no hospital com tubos e soros.

Não querem estar indefesos à espera de morrer…

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Há muitos anos, quando se pensava dar morfina a um doente, tinha-se medo de o drogar. Hoje sabe-se que não é em três ou quatro meses de vida que vamos drogar alguém. Vamos é fazer com que 80% do sofrimento se resolva tirando-lhe a dor. Os outros 20% são sofrimento espiritual. O que é que ele quer? Que alguém lhe faça uma festa, lhe agarre a mão, é estar no espaço dele. Isto obriga à organização da parte do Estado. Há que reconhecer a Medicina Paliativa. Vai ser uma das minhas lutas nos próximos anos.

No hospital já temos uma equipa composta por um médico – que sou eu –, duas enfermeiras, uma assistente social e uma psicóloga. O luto não é vestir de preto pela morte de alguém e ir ao velório. O luto não é só pela morte. É pela perda. Não termina quando a pessoa morre. Tem de fazer-se o ‘desmame’ dois, três meses, daquela perda. Andamos anos a curar os doentes, quando o segredo é a prevenção e depois o ajudar a superar.

Tem ali medicamentos para enviar como cooperante. Como exerce essa actividade?

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Começou por um dia precisarem de um cirurgião em S. Tomé. Toda a gente quer colaborar com os países de expressão portuguesa, mas quando se pede para ir seis meses, há a mulher, os filhos… A primeira vez que me convidaram perguntaram--me numa sexta-feira se podia ir no domingo e disse que sim. De Setembro de 2000 ao de 2001, estive como director clínico.

Todas as quintas-feiras jogava ténis com o Presidente da República, o Trovoada. Morava à minha frente e um dia viu-me jogar e mandou perguntar se me importava de jogar com ele. Eu adorava jogar com ele. Tínhamos oito empregados, todos vestidinhos, para apanhar as bolas e um deles para trazer as toalhas.

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