Cowboys diferentes arrasam o Velho Oeste
Depois de ‘O Segredo de Brokeback Mountain’, a imagem do Velho Oeste como local violento onde só os mais fortes, feios, porcos e maus sobrevivem nunca mais será a mesma.
Em apenas duas horas e um quarto, Heath Ledger e Jake Gyllenhaal destroem o último reduto homofóbico norte-americano, cimentado durante décadas pelos westerns onde o malogrado John Wayne se fez mito, ‘cowboy’ de barba rija sem rival à altura, pistoleiro destemido com bons reflexos e dedo leve no gatilho.
A diferença está no século e, principalmente, nos realizadores. Ao contrário de John Ford, Ang Lee não é um mestre do clássico americano, nunca sonhou com paisagens áridas de terra avermelhada, muito menos com o longo e inóspito desfiladeiro do Grand Canyon. Por isso, a história que 5.ª feira chega às salas portuguesas assenta-lhe que nem uma luva, derrubando esteriótipos e convenções.
Definitivamente, como dizia o anúncio, ‘a tradição já não é o que era’. Se não, veja-se: ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ aborda a relação secreta entre dois cowboys que durante duas décadas escondem o seu amor da sociedade falsamente moralista e mesquinha que os rodeia.
A acção decorre em 1963. De um lado está Ennis Del Mar (Heath Ledger), do outro Jack Twist (Jake Gyllenhaal), dois jovens que se conhecem no início do Verão, quando são contratados por Joe Aguirre (Randy Quaid) para tratarem de um gigantesco rebanho de ovelhas na imensidão da montanha Brokeback, situada na zona alta do Wyoming. Isolados no meio daquela paisagem bucólica, Ennis e Jack desenvolvem uma intensa amizade à volta da fogueira. Tão intensa que acabam por dormir agarrados no recato da pequena tenda.
O romance acaba no fim do Verão, quando o trabalho chega ao fim e cada um segue o seu caminho. Quatro anos depois, casados, com filhos, Ennis e Jack voltam a encontrar-se, traçando desde a primeira troca de olhares o rumo da história: um amor escondido, vidas duplas, tormentos, negações, medos, vergonhas. ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ é, graças a essa amálgama de sentimentos, um épico doloroso onde habitam frustrações da parelha a abalar as profundezas de uma América que ainda guarda dois bastiões da masculinidade: o desporto e as forças armadas. Apenas por mais algum tempo.
Publicado na revista norte-americana ‘The New Yorker’, o argumento que dá vida ao filme de Ang Lee surgiu quase por acaso numa noite fria de 1997, quando Annie Proulx estava num bar a norte de Wyoming e viu um homem velho olhar meio acabrunhado, triste e misterioso, para jovens que se entretinham a jogar snooker. Seria gay? A escritora nunca teve coragem para lhe fazer tal pergunta, começando de imediato a construir a prosa: “Os críticos urbanos catalogaram o conto como sendo relativo a dois vaqueiros homossexuais. Não é disso que se trata. Esta é uma história sobre a destrutiva homofobia rural”, explicou ao jornal espanhol ‘El Pais’.
Apesar de Annie Proulx tentar vender ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ com outro olhar, certo é que a película ficará para a eternidade como uma bandeira da comunidade gay e da sua tentativa de emancipação.
Polémicas à parte, a película tem-se revelado lucrativa e muito acarinhada, espécie de ‘Garganta Funda’ dos tempos modernos... mesmo que sem sexo explícito. Prova disso, começou por ser exibida nos Estados Unidos a 9 de Dezembro em apenas seis salas e há duas semanas podia ser vista em 1190, com tendência para continuar a espalhar-se; arrecadou quatro Globos de Ouro e prepara-se para atacar os Óscares sem rivais à altura; apresentadores/comediantes de renome como Jay Leno ou Jon Stewart já brincaram ‘em antena’ com o guião, dando-lhe ainda maior publicidade; facturou até meados de Janeiro 34 milhões de dólares embora se preveja que atinja 100 milhões até ao início de Março; as t-shirt’s com frases do filme são um sucesso comercial.
Conclusão: o cowboy dos anúncios aos cigarros morreu de cancro no pulmão mas deve estar a dar voltas no caixão, Bush continua entretido com o terrorismo e os guionistas do ‘tio Sam’ encontraram um novo filão: o amor. Mesmo que entre duas personagens do mesmo sexo.
VAI GOSTAR SE... não perde uma boa história de amor e já não acredita no mito americano, no qual os ‘cowboys’ mais aventureiros são todos muito machos, feios, porcos e maus.
HOMOSSEXUALIDADE MILIONÁRIA
'JOGO DE LÁGRIMAS'
História da estranha relação entre um voluntário do IRA e um jovem soldado britânico raptado por aquela organização irlandesa, aborda ainda o transformismo. Realizado em 1992, atingiu os 63 milhões de dólares só nos Estados Unidos.
'FILADÉLFIA'
O filme que Hollywood queria sobre um tema então polémico como a sida rendeu em 1993 cerca de 77 milhões de dólares e ajudou Tom Hanks a arrecadar o seu primeiro Óscar. História de um casal gay às voltas com a doença.
'A GAIOLA DAS MALUCAS'
Adaptação ‘hollywoodesca’ de um clássico do cinema burlesco, relata as desventuras de um grupo de homens num clube de transformistas. Realizado em 1996, contou com Robin Williams e amealhou 124 milhões de dólares só nos EUA.
As más-línguas dizem que o realizador Ang Lee (na foto) proibiu o argumentista Larry McMurtry de entrar no ‘set’ de filmagens por desencadear várias alergias sempre que tal acontece. Contudo, há quem avance que isso só aconteceu porque estava a escrever uma novela durante o período em que as cenas estavam a ser rodadas.
De acordo com alguns relatos, Heath Ledger quase partiu o nariz ao colega Jake Gyllenhaal durante uma cena em que os dois actores tinham de se beijar. Resta saber se tal aconteceu de propósito ou por simples falta de jeito...
O director de casting apresentou Anne Hathaway a Ang Lee dizendo que se tratava de uma quase desconhecida actriz da Broadway, quando na verdade já tinha dois sucessos de bilheteira. O homem reagiu dessa forma porque pensou que se contasse a verdade poderia fazer com que Anne não fosse escolhida para o papel. Felizmente para ambos, Lee nunca tinha visto os filmes dela.
Durante as filmagens, que decorreram em Alberta, no Canadá, a equipa de produção viu-se obrigada a recorrer a alguns truques para motivar todos os que fizeram figuração. Na cena do 4 de Ju-lho, por exemplo, disseram a uma verdadeira multidão que festejasse como se a equipa dos Calgary Flames tivesse ganho a Stanley Cup, ou seja, o campeonato americano de hóquei no gelo. Só assim conseguiram um resultado mais real.
'O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN'
- Género: Drama.
- Realização: Ang Lee.
- Actores: Heath Ledger, Jake Gyllenhaal e Randy Quaid.
- Classificação: 4/5.
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