De olhos em bico

Enfiar a China e o Japão num saco com o rótulo de ‘Culturas Orientais’, é como juntar numa compilação musical o fado e as sevilhanas. Não é natural. O que é natural e fica bem é descobrir em cada país a sua cor primitiva.

01 de março de 2009 às 00:00
De olhos em bico Foto: d.r.
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Ainda a salivar com as favas guisadas do restaurante Fernando, em Coloane, subo à penthouse do Venetian, o maior casino do Mundo, para saborear em grande estilo um whisky que me sabe a ginjas. A vista nocturna sobre Macau, do outro lado da ponte, é uma passagem para outro mundo, verdadeiro show de luz e cor do qual sobressaem os fogos-de-artifício lançados pelos chineses para celebrarem o Ano Novo e espantarem os maus espíritos.

Durante os vários dias em que dura a festa há que cumprir diferentes rituais de cariz religioso, mas a alma capitalista deste povo empreendedor não lhe permite grandes delírios espirituais. Em depoimentos recolhidos quer em reportagens de rua, quer nas assustadoras filas que se formam à entrada dos templos, de entre todos os pedidos e requisições feitas aos deuses há um que se destaca claramente: prosperidade. A saúde, o amor, a paz mundial e a restante panóplia de desejos que nos habituámos a elencar dos concursos de Miss Universo e que, pelo menos nós portugueses, vamos engolindo um a um nas 12 passas de uva tradicionais, são para a grande maioria dos chineses motivo de riso e, nalguns casos, de absoluta perplexidade. É o caso de uma rapariga de ar citadino que olha para o repórter com desdém e responde: 'Peço para mim e para a minha família, o Mundo é demasiado grande.'

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Não este. Uma migalha da gigantesca China, a que os portugueses chegaram em 1535 obtendo licença para ancorarem os seus navios e comerciarem géneros provenientes do remoto Ocidente, de Goa e de Malaca. Dadas as frutíferas trocas para ambas as partes – os tentáculos lusitanos tinham entretanto alcançado o Japão, com o qual os chineses estavam proibidos de fazerem comércio devido a actos de pirataria – os portugueses obtiveram, em 1557, o reconhecimento formal como parceiros comerciais da China, bem como autorização para assentarem arraiais em Macau a troco de uma renda anual.

Sendo os únicos intermediários na exportação de sedas e porcelanas para o país do Sol Nascente e para a Europa, a comunidade rapidamente prosperou, alcançando alguns privilégios, dos quais se destacam o estabelecimento de um Senado e de uma diocese católica. No entanto, foi só depois da Guerra do Ópio (1839-42), que opôs a China ao Império Inglês e na sequência da qual os portugueses ocuparam as ilhas vizinhas de Taipa e Coloane, que os governantes da dinastia Qing assinaram com Portugal um Tratado de Amizade e Comércio (1887), através do qual a China nos cedia direitos perpétuos sobre a nova colónia do, então, já agonizante Império.

Percorrendo as salas do interessante Museu de Macau, instalado na Fortaleza do Monte, é possível admirar vários aspectos de uma história de interpenetração cultural que os chineses, ao invés de apagarem, como normalmente acontece, se esforçam por preservar: 'Estão convencidos, e com razão, que a nossa herança é uma ponte para o mundo latino no qual têm vastos interesses comerciais, nomeadamente no Brasil e em Angola', explica-me o jornalista Alfredo Vaz na frenética pista da discoteca em que exorcizo a despedida dos amigos e da 'boémia' à portuguesa.

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