Grey preto no branco

Depois da versão erótica de Anastasia, chega a versão pornográfica de Grey.

06 de setembro de 2015 às 10:30
04-09-2015_12_55_45 3.jpg Foto: D.R.
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Toda a gente sabe que não é a qualidade da prosa aquilo que torna os livros de E. L. James um sucesso mundial. É o sexo. "Ah, também é a sedução", dirão algumas leitoras; "O conto de  fadas dos tempos modernos", farão crer outras. Sim, sim… Está bem... Foi o sexo que vendeu mais de 125 milhões de livros da trilogia ‘As Cinquenta Sombras de Grey’.

E é o sexo que está a fazer vender o quarto livro, sobre a mesma história, mas desta vez contada pela mente – e o pénis – de Christian Grey. Isso mesmo: o pénis do milionário sadomasoquista tem personalidade e opinião próprias. Transcrevendo dois exemplos: "Nunca tinha dormido com uma mulher. Já levei muitas para a cama, mas acordar ao lado de uma jovem atraente é uma experiência nova e estimulante. A minha pila concorda."; "Lá está ela: mais uma vez a desarmar-me, a surpreender-me a cada instante. A minha pila concorda."

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Depois do lançamento no Reino Unido e nos Estados Unidos, no dia 18 de junho – o dia do aniversário de Grey –, a Portugal o livro chega no dia 10 de setembro – o dia do aniversário de Anastasia Steele. E este é bem mais direto, mais seco, mais bruto, menos romântico do que os primeiros. Mais hardcore. Muito mais explícito. É natural que a perspetiva de um homem aparentemente frio e dominador seja bastante mais crua do que a de uma ingénua rapariga virgem e apaixonada.

Mas há quem goste. Há muito quem goste. Nos Estados Unidos foram vendidos 1,1 milhões de exemplares nos primeiros quatros dias. Em Portugal, a editora Lua de Papel está preparada para sucesso semelhante: a primeira edição mandará para as livrarias 40 mil livros a 18,80 euros. José Prata, o editor, não está minimamente preocupado com as críticas – que têm sido muito negativas. À ‘Domingo’, explica que este tipo de bestseller mundial está imune à crítica dos profissionais.

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Sublinha que na Amazon, o livro tem quatro estrelas em cinco e que em todos os fóruns gera um ror de comentários. "É isso que faz o sucesso de um livro, o passa-palavra", afirma o editor.

Mesmo que a palavra não seja sempre boa. Na verdade, parece aplicar-se a máxima: "Bem ou mal, o que interessa é que falem". E se têm falado… Eis as principais opiniões que têm sido amplamente partilhadas: o livro é exatamente o mesmo que o primeiro da trilogia, repete muitíssimas cenas e diálogos, acrescentando apenas os pensamentos de Grey – a autora foi pouco criativa e preguiçosa; ao basear-se na mente masculina e sádica de Grey, o livro torna-se cru, negro – a autora eliminou o romantismo do "mommy porn"; e a revelação das motivações de Grey desmistifica-o, tornando-o bastante mais assustador – a autora revelou um homem com tendências psicopatas. São opiniões. Apenas.

O AÇOITAMENTO

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Mas, para saber o que se acha, é preciso ler as 608 páginas, que não estão divididas por capítulos, como os anteriores livros, mas por datas, ao estilo de um diário confessional. E é verdade que para muitas leitoras (e alguns leitores) o facto de a história ser exatamente a mesma, apenas e só relatada de outro prisma, não é um defeito, mas um atrativo. "Desde a publicação de ‘As Cinquenta Sombras de Grey’ em 2011, milhares de leitores escreveram a James pedindo o ponto de vista de Christian", explica o site oficial da autora. A própria escolheu dedicar o romance "às leitoras que o pediram… e pediram… e pediram… e pediram."

Ter-se entrado na história através da mente de Anastasia e agora perceber o que, nos mesmos exatos momentos, estava Christian a pensar, por que fazia certas coisas ou reagia de determinada maneira, agarra e agrada muitas fãs. Para mais, porque fica também a saber-se o que sente afinal o homem que poucas emoções parece transparecer para Anastasia – em cada situação e por ela própria.

Trecho [alerta spoiler!] de uma das cenas mais violentas do livro, o açoitamento com cinto:

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Ter-se entrado na história através da mente de Anastasia e agora perceber o que, nos mesmos exatos momentos, estava Christian a pensar, por que fazia certas coisas ou reagia de determinada maneira, agarra e agrada muitas fãs. Para mais, porque fica também a saber-se o que sente afinal o homem que poucas emoções parece transparecer para Anastasia – em cada situação e por ela própria.

Trecho [alerta spoiler!] de uma das cenas mais violentas do livro, o açoitamento com cinto:

"- Sinto em relação ao castigo o mesmo que tu sentes em relação à  possibilidade de eu te tocar.

E, vindas de nenhures, as trevas envolvem-me, cobrem-me a pele,

deixam um rasto gelado de desespero.

Não. Não. Eu não suporto que me toquem. Nunca.

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(…)

– Mostra-me até que ponto pode ser mau.

– O quê? – Chego-me para trás e fito-a, incrédulo.

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– Castiga-me.

Eu quero saber até que ponto pode ser mau.

Oh, não. Solto-a e afasto-me dela.

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Ela olha para mim: franca, honesta, séria. Está a oferecer-se-me mais uma vez; minha para que eu faça o que me apetecer. Estou estupefacto. Ela saciaria essa minha necessidade? Nem acredito.

– Estarias disposta a experimentar?

– Sim, eu disse que sim.

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(…)

Chegámos a este ponto muito mais cedo do que eu esperava.

Serei capaz de fazer isto?

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E, neste momento, sei que não há nada que eu queira mais… Nada satisfará mais o monstro dentro de mim.

(…)

É isto. O que quero. Aonde sempre quis chegar.

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– Estou a fazer isto para que te lembres de que não podes fugir de mim. Não quero que voltes a fugir de mim, por muito excitante que isso seja. Além disso, reviraste-me os olhos. Tu sabes o que eu penso acerca disso.

Inspiro profundamente, saboreando o momento e tentando acalmar o ritmo cardíaco desenfreado.

Preciso disto. É isto que eu faço. E estamos finalmente aqui.

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Ela é capaz.

Até agora, nunca me desiludiu.

Mantenho-a no lugar com uma mão sobre as lombares e desenrolo o cinto. Inspiro de novo, concentrando-me na tarefa em mãos.

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Ela não vai fugir. Foi ela que pediu.

Depois fustigo-a, atinjo-a nas duas nádegas, com força.

Ela grita, chocada.

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(…)

Deixo cair o cinto, a saborear esta descarga doce de euforia. Estou inebriado, sem fôlego e, por fim, repleto. Oh, esta linda rapariga, a minha linda rapariga. Quero beijar cada centímetro do seu corpo. Chegámos. Onde eu quero estar.

(…)

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É isto que acontece quando me desafias, querida."

A iniciativa correu tão mal que até o humorista Ricky Gervais fez um Tweet precisamente sobre isso: "Devias fazer uma sessão de pergunta-resposta no Twitter – o ex-assessor publicitário de E.L. James."

A autora ignorou o que não lhe interessava e respondeu apenas ao que quis. Como, com os mais de 125 milhões de livros que já vendeu da primeira trilogia (545 mil em Portugal) e a certeza de mais um sucesso, se mantém imune à crítica profissional.

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A escritora Jenny Colgan escreveu no jornal inglês ‘The Guardian’: "O primeiro livro era bastante divertido e um retrato moderadamente fiel de uma fantasia sexual de mulher. No entanto, é quase impossível ler o ‘Grey’ e não se presumir que o narrador vai acabar preso." Outro autor, Bryony Gordon, escreveu no inglês ‘The Daily Telegraph’: "É tão excitante como o diário de abusador sexual (…) assustador nem sequer chega para o descrever."

No geral, a opinião prevalecente parece ser a de que a mudança no narrador transformou um melodrama erótico já de si pouco plausível num retrato perturbador de uma relação controladora e abusiva. E um artigo do ‘New York Times’ sobre o novo romance começa com esta simples palavra: "Condolências".

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