Guiné em Tróia a ferro e fogo
A operação que levou a Marinha à Guiné, em 1998, é mais do que uma memória: é um exercício militar para testar a capacidade de reacção rápida.
Quando a guerra acaba, o pesadelo resiste na memória dos sobreviventes: 10 de Junho de 1998 – Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas –, o País é surpreendido com o agravar dos conflitos na Guiné-Bissau. O então líder da Junta Militar – brigadeiro Ansumane Mané –, que comandava as tropas amotinadas no país, acusava a França de conivência com a intervenção militar do Senegal e da Guiné-Conacri. Por seu lado, o presidente ‘Nino’ Vieira, suportado por 1500 militares (parte deles senegaleses), combatia os revoltosos. O nosso País acordava para uma missão imperiosa: a de resgatar os cidadãos portugueses ameaçados por fogos-cruzados. Melo Gomes foi o oficial superior escolhido para comandar a Força Naval envolvida na operação ‘Crocodilo’; na semana passada, sob a égide do hoje chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), a Marinha simulou, em Tróia, um cenário semelhante para testar a intervenção da Força de Reacção Rápida.
O exercício ‘Intrex’ tem como cenário a Península de Tróia – à qual se chamou ‘Centurion’. Este país, onde há portugueses, acusou a ‘Espandilandia’ – país vizinho que vive sob um regime ditatorial e que ocupa uma área semelhante à restante parte da Península Ibérica – de apoiar grupos rebeldes no seu território. Como resultado, há uma ‘Centurion’ a ferro e fogo com dois movimentos envolvidos numa subversão política.
Face ao cenário de terrorismo, o Governo português enviou a Marinha – sete navios e cerca de 700 militares – para resgatar os nossos compatriotas.
Recuando à África onde há nove anos se desenrolou uma missão real, desvendam-se contornos, até políticos, decisivos para fazer avançar a operação ‘Crocodilo’. “Criou-se logo uma célula no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e reuniu-se o primeiro-ministro, António Guterres, com o ministro da Defesa e MNE, Jaime Gama, e os respectivos gabinetes”, recorda José Lello, na altura secretário de Estado das Comunidades. Fizeram-se contactos diplomáticos, só que não era possível esperar mais. Pela primeira vez, ponderou-se a hipótese de pedir auxílio a navios civis que estivessem na região.
O feriado festivo – de quarta-feira – ligava por ponte o fim-de-semana do oficial de operações Braz de Oliveira (hoje porta-voz da Marinha). “Recebi a notícia quando estava dentro do carro, com a minha família, a caminho do Algarve”, recorda. Inverteu a marcha em direcção à Base Naval do Alfeite, em Almada, e embarcou na fragata ‘Vasco da Gama’ com o comandante Melo Gomes. “Foi feita a ordem de operações, promulgadas as instruções de coordenação e preparada a largada.” A Marinha tinha 48 horas para se aprontar e fazer--se ao mar quando a tutela decidisse.
O Aeroporto Osvaldo Vieira, em Bissalanca, era palco de confrontos – dominados pelos rebeldes –, impossibilitando que os cidadãos portugueses fossem resgatados por via aérea.
Contra-relógio, do lado do Governo, o secretário de Estado das Comunidades recebia dos Serviços de Informação os dados para avaliar o conflito. “Os relatórios permitiam fazer uma avaliação a cada momento. De antemão, já se sabia que a situação era complicada. Só que África é imprevisível. E, de repente, como não havia organização táctica [nos combates], aconteceu” – disse José Lello. Mas a situação agudizou-se.
“Acordámos com o som dos bombardeiros; a primeira coisa que fizemos foi ligar para a Embaixada”, relata ‘Amir’ Carmali, um português que residia em Bissau. “Ainda não tinham informações concretas para nos dar, só nos aconselharam a não sair de casa.” Ouviam-se rajadas, bazucadas, bombardeios, que tinham como alvo os militares. Na capital, as ruas eram controladas por senegaleses ao serviço de ‘Nino’ Vieira.
Em Portugal havia a certeza: o resgate impunha-se. A Marinha precisava de mais de três dias para alcançar Bissau. Só restava pedir ajuda a navios civis. “Houve um contacto que é das coisas extraordinárias: sabíamos que havia um navio lá e não é que o primeiro-ministro [Guterres] consegue, ele próprio, falar com o comandante”, revela Lello.
No ‘Intrex’ – tal como na Guiné – a Marinha apenas dispôs de 48 horas para preparar a operação em ‘Centurion’. Antes, nem mesmo o comandante da Força Naval conhecia o cenário. Durante o trânsito em mar, a esquadra militar faz exercícios de prontidão. Chegados à região, a fragata fundeia. O Regimento de Sapadores assegura que o local de embarque está livre de engenhos explosivos; o Destacamento de Acções Especiais (DAE) recebe a missão de resgate de três portugueses reféns dos terroristas; a Força de Desembarque aguarda ordens para, em terra, estabelecer o perímetro de segurança que irá resguardar um centro de evacuados.
No exercício, os militares são os primeiros a chegar ao teatro de operações. Na Guiné, a distância obrigou a que fosse o navio de carga ‘Ponta de Sagres’ o primeiro a tirar portugueses de Bissau.
Contrariando o noticiado na época, o comandante do ‘Ponta de Sagres’ afirma que o navio não foi mobilizado. “Tínhamos carga para Bissau e fundeámos no limite das águas territoriais”, conta Hélder Almeida. Foi Stanley Ho – o ma-gnata de Macau e principal accionista da Portline – quem assumiu todos os riscos da operação.
“A Embaixada, que tinha os contactos de toda a gente, foi inexcedível no apoio”, garante o refugiado ‘Amir’ Carmali. Os estrondos da guerra aterrorizavam. Mais: tinha chegado o momento de abandonar as casas. A representação portuguesa aconselhou-os a levar panos brancos e pertences leves. Correram até à Sé de Bissau, que servia de ponto de encontro, e seguiram para o cais. “Estavam lá centenas e centenas de pessoas brancas, pretas, tudo.”
Dia 11, perto da hora de almoço (cinco dias depois do estalar da crise) zarpou a ‘Vasco da Gama’. Antes, às 09h00, o ‘Ponta de Sagres’ avançou para Bissau. “Tive noção do risco. Mas decidi sozinho, porque há alturas em que o comandante decide sozinho.” Chegados ao cais, dois navios, um cubano e outro russo, cerravam o espaço. Mais de seis horas depois, o russo cedeu lugar ao cargueiro – ainda com 300 contentores cheios de alimentos, material de construção, roupa e outros produtos. O embaixador Henriques da Silva e a cooperação portuguesa assistiram ao embarque e à filtragem de refugiados feita por senegaleses. Só embarcavam portugueses e cidadãos de países amigos.
“Íamos de calções e camisa; o calor apertava”, conta ‘Amir’, que agarrava apenas uma garrafa de água e um saco com o que se salvou. Para trás, o irmão deixava negócios de importação e exportação. “No porto, as granadas caíam muito perto – nem na Guerra Colonial em Moçambique vi bombas cair tão perto.” Soavam alertas; o chão e o ar vibravam assustadoramente; o assobiar dos tiros atirava os refugiados, encobertos pelas mãos na nuca, para terra. Os estrondosos morteiros só encontravam resposta nos gritos de pânico.
‘Amir’ e mais 30 refugiados, zarparam à boleia do navio russo que transportava para a Índia as cinco mil toneladas de castanha de caju, vendidas por ele e o irmão. Foram para Banjul, Gâmbia. À partida, antes de darem lugar ao ‘Ponta de Sagres’, o agora dono de um restaurante lisboeta, com 54 anos, disse: “Olha, oh Deus, nós já estamos a safar-nos. Agora, Ajuda estas pessoas.”
No ‘Ponta de Sagres’ caberiam cerca de mil pessoas. Embarcaram 2250. Os refugiados, de 30 nacionalidades, fizeram 24 horas até Dacar, no Senegal. “A bordo, a habitabilidade era precária: casas de banho, só algumas mulheres e crianças lá chegaram; eles faziam onde calhava; as messes foram abertas também às mulheres e crianças com alimentação à base de massas, grão e bolachas; à noite passaram frio e, muitos, fome e sede; devem ter dormido sentados”, conta o comandante.
Dia 15 de Junho de 1998, a ‘Vasco da Gama’ entrou em águas territoriais da Guiné – o pior dia, o do ataque da Junta Militar ao quartel de Brá e ao aeroporto. “Estivemos sempre sob ameaça e a própria Força Naval foi bombardeada e alvo de morteiros”, lembra o oficial de operações do Estado Maior. Durante os 44 dias de missão foram evacuados, em 23 operações, 1237 refugiados. A fragata ‘Vasco da Gama’, as duas corvetas ‘João Coutinho’ e ‘Honório Barreto’ e o reabastecedor ‘Bérrio’ foram a localidades distantes, como Bubaque, Ponta do Biombo, Varela e Rápidos do Saltinho, buscar pessoas. Faltou um navio polivalente à Marinha.
Mas os militares foram surpreendidos pelo desaparecimento do capitão Almeida, um dos elementos da cooperação portuguesa na Guiné. Há mais de oito dias que tinha paradeiro incerto – melhor, a Junta Militar tinha-o capturado. “Ele tinha estado a correr numa maratona entre Bissau e Bissalanca. Quando os confrontos começam, ele ia em direcção da Junta e aí foi impedido de recuar”, relata Braz de Oliveira. Os DAE infiltraram-se entre os homens liderados por Ansumane Mané e, com a colaboração da própria Junta, conseguem libertar o refém português.
Estas manobras exigem uma preparação muito especial. Por isso, durante ‘Intrex’ – o exercício da Marinha em Tróia –, os DAE resgataram três reféns portugueses, abatendo um dos dois terroristas que os mantinham sequestrados numa casa abandonada.
06h00: os terroristas em ‘Centurion’ estão ainda embrenhados na sonolência matinal. Camuflados, os DAE vigiam e registam os seus hábitos há 24 horas. O momento era aquele: um sniper dispara e mata o sequestrador que estava prostrado à entrada da casa; outros oito militares irrompem pelo edifício, apontam as armas ao terrorista e libertam os reféns – tudo isto em segundos.
A operação é coordenada com o piloto do helicóptero (Lynx Mk95) que pouco antes descolara do hangar da mesma fragata da missão de 1998, a ‘Vasco da Gama’. Ouvem-se os rotores; a aeronave aproxima-se; e paira sobre o local e iça os portugueses para bordo. Já longe do resgate, no centro de evacuação de refugiados vivem-se momentos de grande tensão. À semelhança da Guiné, há muitas pessoas a tentar furar as barreiras que são porta para um país neutro. Em 1998, a capital do Senegal, Dacar, servia de ligação a Portugal.
Uma semana depois de terem começado os confrontos na Guiné, a população da capital guineense baixou de 300 mil para 130 mil residentes. Fugiram para o interior do país.
“Quando a fragata ‘Vasco da Gama’ se fez ao mar, parti para o Senegal com uma equipa médica e jornalistas”, relata o então secretário de Estado das Comunidades. “Levava um telemóvel satélite para me manter em contacto com o MNE.” O embaixador português em Dacar estabeleceu a ligação entre os refugiados e os voos da TAP que os trariam, sãos e salvos, para o nosso País.
No centro de refugiados, em Dacar, “fomos bem tratados”, garante ‘Amir’, embora muitos portugueses se tivessem queixado das condições. Havia um pavilhão amplo e cheio de camas de campanha para descansarem; comiam ração de combate e uma refeição quente por dia. Mais tarde, com as saudades a apertar, embarcaram com destino ao Aeroporto Militar de Figo Maduro, Lisboa. As autoridades verificaram os documentos; os refugiados descansaram e alimentaram-se; quem não tinha casa em Portugal recebeu dinheiro, alimentos e produtos de higiene.
A missão na Guiné terminou com recordações amargadas pelas circunstâncias, mas felizes pelo sucesso no resgate de 3487 refugiados. Na semana passada, o ‘Intrex’ deu provas da capacidade de reacção da Armada. E a ‘Vasco da Gama’ seguiu para o Mediterrâneo Ocidental para integrar uma força com o porta-aviões espanhol ‘Príncipe das Astúrias’, em mais um exercício.
VOZES DO RESGATE NA GUINÉ
1. ‘Amir’ Carmali, 54 anos Nasceu em Moçambique e, depois do serviço militar, veio para Portugal. Mais tarde, foi para a Guiné trabalhar com o irmão. Fugiu do conflito.
2. Braz de oliveira, 43 anos Participou na operação ‘Crocodilo’, em 1998, na Guiné, a bordo da ‘Vascoda Gama’ como oficial de operações. Hoje, é porta-voz da Marinha portuguesa.
3. Hélder Almeida, 64 anos Comandou o navio de carga ‘Ponta de Sagres’, durante o resgate na Guiné. Recebeu de Jorge Sampaio, ex-Chefe de Estado, a Ordem Militar de Torre de Espada.
ACONTECIMENTOS NA GUINÉ
1. ‘Ponta de sagres’, em Dacar Imagem do navio de carga à chegada ao Senegal, com 2250 refugiados de 30 nacionalidades
2. Resgate de civis, na Guiné Militares portugueses a retirar de bote os refugiados durante a missão, de 1998, em Bissau
3. A caminho do embarque, Bissau Muitos refugiados caminharam horas a fio em direcção ao ponto de evacuação, no porto da capital
4. Mortos nos confrontos Combates entre os rebeldes e as tropas de ‘Nino’ Vieira causaram mortes, no meio do fogo-cruzado
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