‘Impeachment’ à portuguesa
Processo de destituição do presidente da república seria muito diferente daquele que afastou Dilma
Nem com o Acordo Ortográfico a vigorar passou a haver em Portugal aquele ‘impeachment’ que nesta quarta-feira levou à destituição da presidente brasileira Dilma Rousseff, 24 anos após Collor de Mello renunciar ao cargo horas antes de lhe suceder precisamente o mesmo. Mas isso não significa que o Presidente da República não possa também ser afastado deste lado do Atlântico.
O artigo 130º da Constituição da República Portuguesa estipula que a condenação do Chefe de Estado por crimes praticados no exercício de funções "implica a destituição do cargo e a impossibilidade de reeleição". Só que não seriam representantes eleitos do povo português a avaliar a culpa e sim os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), num processo com uma sucessão de passos e incomparável às sessões na Câmara dos Deputados e no Senado do Brasil, que tiveram direito a transmissões televisivas de Brasília para todo o Mundo.
Em Portugal, a destituição teria início por proposta de um quinto dos deputados da Assembleia da República, sendo necessária uma maioria qualificada de dois terços – a mesma que permite a revisão constitucional – para o processo ser julgado no STJ. Só após a condenação do Chefe de Estado por crime de responsabilidade, cometido no exercício das funções, ter transitado em julgado, caberia ao juiz-presidente do STJ enviar a certidão da decisão condenatória para o Tribunal Constitucional. Este reuniria em sessão plenária no dia seguinte e, verificada a autenticidade da certidão, declararia o Presidente da República destituído.
Nunca equacionado
Nunca tal coisa aconteceu em Portugal, e os quatro ex-presidentes eleitos desde a entrada em vigor da Constituição de 1976 (Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva) levaram até ao fim os seus dois mandatos. Até porque a existência de crimes de responsabilidade se torna improvável quando o Presidente da República não detém o poder executivo. "Há situações hipotéticas, mas é muito mais difícil sucederem em semipresidencialismos como o nosso", reconhece o constitucionalista Carlos Blanco de Morais, sem excluir condutas abusivas, como "usar sistematicamente o veto de bolso [recusa de promulgar leis, de forma a que o processo legislativo volte ao início]", o que sucedeu com Eanes, mas deixou de ser possível depois da revisão constitucional de 1982.
"Essa hipótese nunca foi equacionada. Nem em momentos de confrontação com o Presidente", recorda o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos, deputado do PS, sublinhando que o processo de destituição "exigiria um acordo transversal às várias forças políticas".
Algo que também é necessário para o ‘impeachment’ de presidentes brasileiros, pois dois terços dos eleitos para a Câmara de Deputados devem aprovar um relatório favorável à continuidade do processo para que este seja avaliado pelo Senado. Com o (no caso de Dilma, ‘a’) Chefe de Estado suspenso, o vice- -presidente assume o cargo interinamente – assim foi com Michel Temer, como antes sucedera a Itamar Franco, ‘vice’ de Collor de Mello –, ficando a destituição dependente de nova maioria qualificada de dois terços dos senadores.
Julgamento político
Horas depois de deixar de ser presidente do Brasil, com a ironia de Collor de Mello ser um dos 61 senadores que ditaram o seu afastamento, Dilma Rousseff passou ao ataque. "Os senadores que votaram pelo ‘impeachment’ escolheram rasgar a Constituição. Condenaram uma inocente e consumaram um golpe parlamentar", disse, voltando a defender que foi alvo de um processo político que nada tem a ver com as ‘pedaladas fiscais’ [atraso de pagamentos ao Banco do Brasil e bancos privados, criando a ilusão de que a despesa pública era menor] e o recurso a crédito sem autorização do Congresso que levaram à sua condenação por crime de responsabilidade.
"Se a instância que tivesse de julgar e decidir a destituição de Dilma Rousseff fosse judicial, seguramente não o faria com a ligeireza com que todo este processo aparentemente decorreu", diz Bacelar Vasconcelos, que sublinha o contraste com o que sucederia em Portugal: "Entregar-se-ia ao poder judicial a averiguação e confirmação de uma conduta de índole criminoso, o que faz sentido no quadro do nosso sistema político".
Também Blanco de Morais afirma que o ‘impeachment’, tal como existe no Brasil e nos EUA, é típico dos sistemas presidencialistas, nos quais o Chefe de Estado não depende dos parlamentares, levantando-se a questão de como lidar com crimes no exercício das suas funções. "Criou-se um mecanismo de responsabilização em que se procede a um julgamento político, feito por um órgão político, parlamentar, representativo, também com legitimidade democrática, embora presidido pelo presidente do Supremo Tribunal", diz o professor catedrático, admitindo que "é um processo jurisdicional híbrido e equívoco".
No caso de Dilma Rousseff, ao contrário do que sucedeu com Collor de Mello, não houve inabilitação de direitos políticos, pelo que a sucessora de Lula da Silva pode voltar a apresentar-se como candidata presidencial do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2018 mesmo que o Supremo Tribunal Federal não dê procedimento ao seu recurso para que a votação seja repetida no Senado, voltando Michel Temer a ser apenas presidente interino.
A separação entre a destituição e a inabilitação de direitos políticos é vista por Bacelar de Vasconcelos como algo que "não é uma solução bizarra". Segundo o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, "os crimes de que Dilma é acusada não atingem a gravidade que poderia determinar essa inibição".
Por seu lado, Blanco de Morais, embora considere que "o debate foi particularmente rico em termos jurídicos", realçando a "excelente argumentação dos dois lados", discorda da forma como o processo foi conduzido. "Na minha opinião de constitucionalista, a norma constitucional liga diretamente a destituição à inabilitação do exercício de cargos públicos. É algo que é automático e que depende da própria Constituição", diz.
Especialmente graves
Quanto aos crimes comuns, que nada tenham a ver com as suas funções, incluindo crimes contra a vida, o Chefe de Estado português está mais protegido do que o homólogo brasileiro. Enquanto o titular do Palácio do Planalto pode ver o mandato suspenso por 180 dias para se defender da denúncia do procurador-geral da República ou da queixa-crime de um ofendido, a Constituição da República Portuguesa estipula que "por crimes estranhos ao exercício das suas funções o Presidente da República responde depois de findo o mandato perante os tribunais comuns".
"É uma grande falha da nossa Constituição", afirma Blanco de Morais, defendendo que o julgamento do Chefe de Estado poderia ocorrer durante o exercício de funções caso estivesse acusado de "crimes de homicídio, de traição à pátria ou outros especialmente graves". Mesmo concordando que esperar até ao fim do mandato é aceitável em "bagatelas penais, crimes de injúria ou que tenham a ver com o uso da liberdade de expressão", o catedrático diz que "faria sentido haver uma disposição constitucional diferente para crimes graves, que teriam de ser tipificados".
Reconhecendo que "o Presidente da República não fica impune, mas enquanto for Presidente não pode ser julgado e condenado", Bacelar de Vasconcelos acredita que um Chefe de Estado acusado de um crime de sangue "deixaria de ter condições políticas para manter o mandato até ao fim". Algo que impediria a eventualidade de um julgamento ser impossível, no limite, durante cinco anos.
"Tornava-se insuportável, institucionalmente e junto da opinião pública, a permanência do Presidente da República em funções. Nem sequer teria condições objetivas para o exercício do cargo. São situações extremas e que espero que não ocorram. Mas pode sempre ocorrer um grave crime financeiro, passional, ou outro dessa natureza", conclui Blanco de Morais.
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