JULIO IGLESIAS: “A FAMA NÃO É UMA MULHER FIEL”

O mito espanhol faz 60 anos, no próximo dia 23. Esta é a história de um romântico, feita de dor e amor, contada por alguém que conseguiu desvendar os seus mistérios, retirando-o do pedestal em que o público o ergueu. Fica aqui provado que o ídolo é mortal.

14 de setembro de 2003 às 14:21
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O Dauphine vermelho jazia destroçado por entre a poeira levantada com as capotagens. Antes de se precipitar na valeta, o automóvel tinha derrapado, esmagado três marcos de pedra, voado alguns metros até se deter com as rodas viradas para o ar. Julio Iglesias sentia a cabeça à roda e o peito a doer. O medo mantinha-o imobilizado. Não tinha um rasgão na roupa, hematomas visíveis ou sangue no corpo. Transportado ao hospital, é radiografado mas nada lhe é diagnosticado.

Findas as férias de Verão, Julio recomeça os estudos na Faculdade de Direito de Madrid e os treinos no Real, onde defendia a baliza da equipa dos júniores. Até que uma dor insuportável o começa a destroçar. Não conseguia dormir, nem respirar, a coluna vertebral contraía-se ao espirrar e a tumoração cística formada por um coágulo de sangue, segundo diagnóstico posterior, espetava-lhe os nervos. Apesar do esforço, não consegue acompanhar os treinos na Ciudad Deportiva e no Estádio Barnabeu.

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Na tarde da passagem de ano de 1964 para 1965, em frente à sua casa, ao espirrar, perde a consciência. A dor penetra-lhe o físico, implora ajuda.

O pai, o famoso Dr. Iglesias, chama ao hospital o médico particular de Franco, que descobre que Julio sofre de uma compressão medular, não localizada, que o deixa paraplégico. Precisamente dois meses após o dia do acidente é operado a um tumor raro, um osteocrestoma. Ficou com as pernas completamente flácidas, atrofiadas, sem nenhuma reacção. Pesava 45 quilos.

À custa de muito exercício físico numa piscina de recuperação para paralíticos totais ou parciais e entrevados, aliada a uma invulgar força mental, um ano depois consegue mexer o dedo maior do pé.

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Ainda em recuperação, o médico assistente do seu pai, Eladio Magdaleno, oferece-lhe uma guitarra: “E eu, que até àquela hora nunca tinha encostado a mão num instrumento musical, comecei a dedilhar o violão. Aprendi rapidamente a tocar e a cantar as músicas do Duo Dinâmico, de Luis Gardel, de Jaime Morey e de outros cantores que se apresentavam na televisão”.

“SÓ ME FALTA CANTAR COM O PAPA”

Ainda debilitado inscreve-se no Festival de Benidorme com uma canção, ‘La vida sigue igual’, onde relata a sua vivência. “Cantei como se fosse um touro, com toda a força que tinha e a que Deus me emprestou para aquele momento. Dei tudo de mim para vencer. Tirei a voz do fundo dos testículos, do fígado, da alma”. E ganhou. “Foi graças ao acidente que sofri que a minha carreira tomou o rumo que todos conhecem. Se isso não tivesse acontecido, hoje seria um advogado de terceira, infeliz e casado com uma mulher gorda. Vendo as coisas à luz da minha vivência, tenho de reconhecer que foi um mal que veio por bem. Nunca me esqueço de que foi diante daquela pequena morte que nasceu um dia, o cantor”.

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Mas as mazelas no corpo ficaram para sempre. Julio Iglesias ainda hoje coxeia da perna esquerda. “Sofri muito, talvez o sofrimento que faltava ao rapaz a quem tinham proporcionado todas as comodidades; talvez o sofrimento que acompanha continuamente muitos jovens da minha idade, por exiguidade de recursos familiares. Isso mudou toda a minha vida. Passei a ter uma outra visão do mundo, compreendi que o importante não é o dinheiro que se tem, mas a satisfação que se sente com aquilo que se faz. Convenci-me também de que o sofrimento existe e que eu não era o único a ser vítima dele. Enquanto eu sofri dois anos, há pessoas que sofrem durante uma vida inteira.”

Segue-se, em 1970, o Festival da Eurovisão, onde canta ‘Guendoline’, nome de uma francesa por quem estava apaixonado, e a desejada popularidade com o primeiro disco. “Pelas minhas veias já corria o veneno do artista, do cantor.”

Tem aí início a carreira daquele que, actualmente, é o “rei da música romântica”, um “dos mais famosos intérpretes do mundo”, o “cantor mais popular”, o “mais universalmente célebre”. Daquele que é visto como sendo um homem de voz e coração quentes, “o primeiro embaixador espanhol no exterior sem ter nenhuma credencial diplomática, embora tenha sido esse o sonho alimentado quando jovem. Sou um cônsul ambulante”. E um mito. “Um mito que me conduzirá a uma velhice intranquila, nervosa, possivelmente fatal. Um ser formidável e intolerante. Insuportável, formoso e muito orgulhoso. Um ser absoluta e totalmente imperfeito. Mas é na minha imperfeição, em todas as minhas contradições, que reside o meu triunfo.”

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“SOU UM CANTOR DE PRIMEIRA”

Julio Iglesias procura manter a imagem pública de galanteador. Durante alguns minutos, limito-me a observar o seu sorriso aberto, o olhar penetrante, o bom humor, a vaidade, o descaramento. Parece-me um bem sucedido protótipo do ‘latin lover’. Simpático e extrovertido, diz o que lhe apetece sem rodeios. É frequentemente irónico. Vestido de azul-escuro, bronzeado, soltando gargalhadas, brinca, diz piadas, repete palavrões. Permite-se a tudo.

Nada é demais para quem tem a sua estátua em três museus de cera e recebeu todos os prémios que um artista pode ambicionar. Com mais de 500 discos de platina, 1100 de ouro e um de diamante, correspondentes a vendas superiores a 200 000 000 de álbuns, Iglesias é o cantor com mais discos vendidos. “Mais do que um cantor de charme, sou um cantor de primeira. Dos melhores. Pode gostar-se ou não da minha música, mas a verdade é que eu tenho aprendido muito. Hoje, canto com mais intenção e sabedoria. É a mesma coisa que um orgasmo. Aos 20 anos é diferente que aos 40. O que marca um artista não é cantar bem ou mal. É o seu estilo. Os artistas, tal como os jornalistas, os futebolistas ou os pintores, são vendedores de estilo”, dizia-me aquando o nosso primeiro encontro, no sumptuoso Hotel Alfonso XIII, em Sevilha, onde me fez crer que construiu a sua vida “com o objectivo de fazer com que as pessoas se amem mais. Talvez seja por isso que eu sou um cantor de primeira. Se não o fosse, não teria cantado com Sting, Stevie Wonder, Amália Rodrigues, Lola Flores, Pavarotti, Plácido Domingo, Willie Nelson, Paco de Lucia, entre muitos outros, nem enchia os estádios por onde passo com trinta e quarenta mil pessoas. Julgo que é porque a minha voz tem muitas cores. Se não as tivesse, jamais conseguiria vender tantos discos. Agora, só me falta cantar com o Papa.” Enquanto isso não acontece, a venda dos seus discos triplica e a sua voz acetinada vai modulando os sentimentos com subtileza. Diz que é porque a sua música “é grande e universal” e porque “sou um mito, não um génio”.

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O seu novo disco, ‘Love Songs’, prova isso mesmo. Clássicos como ‘As Time Goes By’, que fica a léguas da interpretação de Bryan Ferry, ‘When I Fall In Love’, ‘Mona Lisa’, ‘When I Need You’ ou ‘Vincent’ remetem-nos, invariavelmente, para outras vozes. “O talento é virtude dos humildes e ser vulnerável aos olhos do público é um gesto que cai bem. Tudo, até a música, me deixa inseguro. Sei, no entanto, que quanto mais inseguros são os artistas, mais êxitos conseguem. Na arte, a insegurança é sinónimo de talento e nos campeões, as dúvidas são mais importantes que as certezas”. Julio sabe que “a fama não é uma mulher muito fiel”.

HISTÓRIAS DE AMOR E TRAIÇÃO

Sente-se como se fosse um ‘playboy’ amador. Ele mesmo, num outro encontro, em Miami, dizia-me que considera o seu estilo “inconfundível” e que a música e o público são as únicas coisas a que consegue ser fiel. Talvez, por isso, apareçam tantas mulheres de vários pontos do planeta a acusarem publicamente que têm filhos seus.

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A ex-bailarina portuguesa Maria Edite Santos é uma delas. Julio não gosta de falar disso. Disfarça, mais uma vez, com uma venenosa ironia: “Ela já foi a esse género de programas... do tipo de ‘A Máquina da Verdade’ onde lhes pagam 30 000 dólares para inventarem essas coisas, mas a verdade é que não é depois de quinze anos que um pai vai saber que tem um filho de uma mulher com quem fez amor uma vez”.

Este caso de possível paternidade não foi, como é sabido, o único que Iglesias teve de enfrentar. Ainda em Portugal, uma senhora de Fujacos, uma aldeia perto de Águeda, de nome Manuela Ferreira Oliveira, também veio a público dizer que a sua filha, Teresa Ferreira de Almeida, era fruto de uma relação que teve com o cantor. Ainda hoje, na aldeia, chamam à Teresa a filha do espanhol.

Durante sete anos, dos 25 aos 32, Julio esteve casado com Isabel Preysler, com quem viveu uma bela história de amor e infidelidade. Até que se divorciaram. Julio não tinha tempo para a família.

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As consequências são mais graves do que ele mesmo poderia esperar. Fica deprimido, volta a pensar na morte, passa seis meses muito difíceis. Dos mais duros da sua vida. Tanto quanto os da sua paralisia parcial. Teve problemas psicossomáticos gravíssimos, deixou de sentir as pernas. Passava noites consecutivas acordado, angustiado, totalmente infeliz. Sentia o seu corpo como se fosse uma ferida, “um corpo que recebeu, pela segunda vez, um tiro quase mortal”.

Tempos felizmente passados, pois agora “estou muito bem ao lado Miranda, a grande companheira da minha vida. Adoro a sua presença e preciso da energia que ela me dá. Amo-a e ela ama-me. Mas não sou uma pessoa fiel. Só sou fiel ao público e, se for obrigado a escolher entre a minha vida emocional e a profissional, escolho a profissional”.

UMA MANSÃO DE SONHO

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Julio Iglesias recebeu-me em Miami, cidade onde, em 1979, comprou uma magnífica mansão. Custou-lhe 3 milhões de dólares e fica situada em Indian Creek.

Lembra um convento branco com inúmeras janelas viradas para o mar onde está estacionada a sua lancha. Para chegar aos 20 000 metros que envolvem a propriedade, entra-se em Indian Creek por uma ponte onde vários polícias fardados controlam as entradas e as saídas. A mansão tem o nº 5 na porta. À sua volta, um enorme relvado, um campo de golfe e muitas árvores de frutos ao redor de uma piscina de água fria onde Julio costuma passar várias horas a fazer exercícios físicos ou a olhar a baía e o imenso canal bordado por gaivotas e pelicanos, enquanto apanha sol.

No interior, descobre-se um salão que conduz até ao ‘suzuki’, uma invenção japonesa que não é mais do que uma tina de madeira onde o cantor retempera as suas forças. O salão, de 400 metros quadrados, também tem vistas para o mar. Ao lado, o quarto de Julio, a divisão mais especial de toda a casa, com uma cama onde podem dormir três pessoas atravessadas, e um guarda-roupa com cerca de 30 fatos na sua maioria azul escuros. Todos os móveis são cor de osso. Num quadro de ouro e cana, emoldurado em prata dourada, salienta-se uma foto de Chabeli, sua filha, por quem Julio sente uma verdadeira paixão. Reconheço esta foto de uma capa de um dos seus discos. Próximo, uma linda cruz de prata. Na cabeceira, fotos dos seus filhos, incluindo Julio José e Enrique. Numa outra parede, há pedaços de papiro egípcio e, no chão, vasos com flores que chegam quase ao tecto de vidro fumado.

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ANATOMIA DE UM MITO

Nome: Julio Iglesias de la Cueva

Data de nascimento: 23 de Setembro de 1943

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Local: Madrid - Espanha

Filiação: Julio Iglesias e Rosario de la Cueva

Hobbies: natação, navegação e andar de bicicleta

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Bebidas: café, água e vinho tinto

Pratos: bife de lombo, tortilha espanhola, marisco, gaspacho e paella

Carros: Rolls-Royce, Wolkswagen Rabbit e Cadillac

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Qualidades: inteligência e vitalidade

Defeito: intransigência

Ambição: cantar até morrer

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Adoração: os seus filhos

Mistério: as suas superstições

Medo: andar de avião

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Exigência: não ser fotografado do lado direito

Cor dos olhos: café

Cor do cabelo: preto

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Desporto: futebol e basquetebol

Estudo: curso de Direito

Primeira canção escrita: ‘La vida sigue igual’

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