Mães dentro da prisão

Ralam-se com as cólicas, as birras. Riem-se das gracinhas. Criam os filhos atrás das grades porque cometeram um crime e cumprem pena.

11 de fevereiro de 2007 às 00:00
Mães dentro da prisão Foto: António Pedrosa
Partilhar

Lourenço ficou num retrato na bancada da cela de Elísia. O filho viveu com ela em reclusão enquanto a lei o permitiu. Depois, aos três anos de idade, foi-se embora em lágrimas. Também se chora por não querer a liberdade.

Na sua cela arrumada como o espírito do fundamentalista, Elísia repete todas as noites o ritual fotográfico: mostra aquele retrato do filho e outros do resto da família, a Diana Soraia, dez meses enfeitados de lacinhos e folhos, uma barbie dentro da prisão. “Agora a minha companhia é ela, quem me dá força é ela. Se não fosse esta minha filha não levaria tão bem a cadeia.”

Pub

Elísia está presa por tráfico de droga com uma pena de sete anos e seis meses, dos quais já cumpriu cinco. Passou pelos estabelecimentos prisionais de Custóias, Tires, Castelo Branco – nestas, com o filho Lourenço – e agora está ali, em Santa Cruz do Bispo, com a menina concebida num imprevisto de uma saída precária cheia de saudades conjugais.

Nesta cadeia estão 14 das 54 crianças (dados de 2006) que vivem com as mães em cinco estabelecimentos prisionais portugueses. Estas mulheres reflectem o universo feminino detido. A maioria está condenada por crimes relacionados com a droga.

Entre elas, além de Elísia, está Marina que em Santa Cruz do Bispo foi encontrar duas irmãs que a amparam numa maternidade desencantada, iniciada um par de semanas depois de ter cruzado os portões da penitenciária. E Erica, a venezuelana que, grávida, tentou chegar a Barcelona com droga e acabou por ter a filha com a guarda à porta da sala de partos do Hospital Pedro Hispano. Registou-a em Matosinhos. E ainda Susana que planeou com o marido também preso a Débora Raquel, por pensarem ambos que a família continua neste primeiro trimestre do ano, quando se reunirem na liberdade condicional.

Pub

FORA DAS CAMARATAS

Quando se tem consigo um filho, sai-se das camaratas. As mães no sistema prisional têm uma cela. Poucos metros quadrados tão infantis, feitos de peluches, brinquedos, pacotes de fraldas descartáveis, pós de talco e cremes para as assaduras. O berço da criança e a cama da reclusa.

Sentada em cima da coberta está Marina. Ainda tem a barriga dilatada pelos nove meses de gravidez. Os braços cruzados à altura do peito grande do aleitamento formam a bandeja onde está deitada a filha recém-nascida.

Pub

Marina tem 24 anos, veio detida e teve o primeiro filho. A menina nasceu há um mês, ela deu entrada em prisão preventiva duas semanas antes do parto. É reclusa e mãe há tão pouco tempo que a sua cela tem um aspecto nu à vista das outras. “Ela é muito sossegadinha, não queria que fosse assim porque estou com ela muito tempo a dormir. Se ela fosse um bebé que precisasse muito de colo era bom porque era uma maneira de me distrair os dias.”

O dia das reclusas tem 12 horas, termina às sete da tarde quando são fechadas dentro das celas. A reabertura é às 07h15 da manhã seguinte. A noite tem muitas horas e pouco espaço. Até à entrada do sono, nas camaratas fluem conversas de mulher. Nas celas, sem gente adulta para passar o tempo, as mães agarram-se à sua condição. Marina desespera, a recém-nascida deixou de ser o bebé sossegado do dia claro e fechada com a mãe chora sem tino, se calhar por causa de cólicas. “Ai, Deus do Céu, dá-me noites...”

Quando aquela noite longa começa, a venezuelana Érica liga a televisão e entretém a filha Âmbar até começar o genérico que a menina, ansiosa, espera – o da ‘Floribella’. (O tema da série está gravado numa cassete áudio que a mãe põe amiúde a tocar; Ambarita bamboleia o corpo numa dança satisfeita).

Pub

Noutro lado da cadeia, Elísia tem com a filha de dez meses conversas de gente grande por não ter quem da sua idade para falar. Ler-lhe histórias como fazem Susana e Érica às suas filhas está fora de questão por um certo enferrujamento que um analfabetismo prolongado lhe deixou. Só aprendeu a ler em reclusão e há pouco tempo. “Por isso, falo-lhe das manas, dos sobrinhos, do pai. Digo-lhe que ela nasceu no hospital de Matosinhos e que foi muito triste para a mãe não ter o pai ao pé. Que é triste a condição do cigano e que gostaria que ela tivesse outro futuro, que estudasse e que não se metesse nas coisas que a gente se meteu e que acabaram com a gente”. Ri-se, com um sorriso dourado por um dente de ouro, ciente do disparate que é ter assim conversas sérias com quem aprendeu há pouco a dizer mãe.

LER HISTÓRIAS À FILHA

Noutra ala, Susana, ex-toxicodependente e ex-traficante, enfrenta as horas antes da cama a ler histórias à filha de um ano, a Débora Raquel. Mostra-lhe os bonecos de passarinhos e cães que ela de facto nunca viu.

Pub

A primeira palavra que a menina disse foi mamã e depois papá, à força da mãe lhe falar do homem do retrato. O pai, Joaquim, também está detido por tráfico de droga. Depois Débora disse ‘li’. ‘Li’ de ‘ali’ dito sempre em resposta à pergunta da mãe: Onde está o piu--piu? ‘Li’ e estica o dedo, aponta para um ponto imaginário além das grades da janela. Susana e a filha Débora deverão sair brevemente de Santa Cruz do Bispo – se tal não fosse, a menina provavelmente aprenderia o dicionário da penitenciária, o significado de palavras como cela, precária ou ‘ser fechado’ que é o recolher das 19h00.

Conta Elísia: “Na prisão de Castelo Branco, o meu Lourenço costumava acompanhar as guardas a fechar as celas e era o último a ser fechado. Depois de manhã percebia qual era a hora da abertura e começava a bater à porta. Os miúdos fazem todos isso. Parece que têm dentro um relógio.” Elísia prende Diana Soraia entre as mãos, vestida de rosa e bandelete na cabeça. É uma boneca. Pequena de mais para perceber que a casa que conhece não é mesmo ‘a casa’.

A cigana de Mirandela já cumpriu dois terços da pena de sete anos e meio por tráfico de droga. Faz contas de cabeça à liberdade. “Se não for em 2007, terei de esperar mais um ano. E a minha Diana vai perceber melhor as coisas...” Tal como percebeu Lourenço, o outro filho que também teve consigo na prisão e que com ela cumpriu os primeiros três anos da pena. Quando começou a pagar a dívida atrás das grades, Elísia tinha 29 anos, o filho dois meses.

Pub

Lourenço deixou a companhia da mãe quase nos quatro anos de idade. Andava, falava e tinha o dicionário todo: “Eles até percebem quando a gente tem cortes na precária. Lembro-me que o meu menino dava pela coisa e muitas vezes perguntava: “Mas, oh mãe quando é que a gente vai de precária?” Ai credo, lembro-me como se fosse hoje: a primeira vez que ele conheceu a rua saiu a correr e depois, quando voltou, dizia: “Oh mãe, já sei o que é um carro e uma bomba de gasolina. Que alegria!” A gente comove-se: ele só conhecia essas coisas de fotografia...”

Elísia teve-o consigo no período de detenção na penitenciária de Castelo Branco. Os filhos da prisão têm creche e saem em passeios organizados. Lourenço adorava ir à praia e ao McDonald’s como qualquer outro menino cá fora.

SEPARAÇÃO HORRÍVEL

Pub

Atabalhoada pela distância que a mói, a venezuelana Érica conta que a filha Paulita lhe diz ao telefone que ainda se lembra de ver passar as gaivotas do lado de fora da janela do Estabelecimento Prisional de Custóias. Estiveram juntas na prisão pouco menos de um mês, entre 31 de Outubro e 23 de Novembro de 2004. Tinha a menina quase três anos.

Paulita acabou por regressar de avião, sozinha, a San Cristobal, na Venezuela, fronteira com a Colômbia, onde a avó a esperava. “A separação foi horrível, chorei muito mas Deus deu-me uma força incrível porque estava presa, grávida de três meses da Ambarita, tinha-me separado da minha filha mais velha, o meu marido também estava preso e estava num país onde não conhecia nada nem ninguém.”

Érica, a mãe de Paula e Âmbar, tem 22 anos. Pendurou na televisão que tem na cela, onde a filha mais nova vê a ‘Floribella’ e o ‘Noddy’, as figuras do sol, da lua e das estrelas para lhe explicar o que são o dia e a noite. Âmbar nunca esteve na rua com a mãe, não conhece a irmã. Quando nasceu já Paulita tinha regressado à terra da família. “A ligação é muito maior. Estou sozinha com esta minha filha e tenho todo o tempo do mundo para ela. Estou sempre a explicar-lhe o significado das coisas, a conversar e a brincar.”

Pub

Noutra ala, noutro piso, está Marina. Leva mal a solidão em que carrega a filha. Está numa cela sem sequer um terço dos brinquedos que estão na cela da venezuelana. Aprende cabisbaixa a conhecer a recém-nascida e não encontra o alento que Érica encontrou na maternidade. Choraminga as dificuldades, a ausência do homem que ama, o facto de o parto ter sido solitário e de cesariana. Está deprimida. Em nada se assemelha à exuberância latina da outra mãe reclusa.

Marina tem à mão a fotografia de Fernando para a encostar à boca da recém-nascida. Se Taísa aprender a dar um beijo, será na fotografia do pai. “Levanto-me de manhã, visto-a. Sempre que vejo que ela está com fome, vai de peito. Mas não devia ser assim... Não estou bem. Eu ainda não consigo sair para o pátio, vou para sair mas não consigo...”

Uma semana depois do nascimento de Taísa, o companheiro de Marina, detido em Braga, veio vê-la. Ela tinha--lhe ligado do hospital, enquanto esperava a cesariana. Ao telefone comunicou-lhe: “Amor, a nossa bebé já vai nascer...”

Pub

O Lourenço vem habitualmente à visita. Quando esta termina, pergunta sempre à mãe quando volta para casa. Sai a choramingar. Diz-lhe adeus até mais não poder. “Parte-me o coração. Ter os filhos lá fora e estar a criar outro cá dentro... Quando soube que estava grávida fiquei muito triste”, diz Elísia de 34 anos.

A vendedora em feiras e traficante de droga tem cinco filhos no exterior a crescer com o pai. As mais velhas já foram mães. Os outros, os mais pequenos – o Lourenço, inclusive – passam a vida na bainha das calças paternas, sem ir à escola. Há anos que a família só se reúne em retratos na cela da detida.

Susana também é mãe à distância. Tem um menino de 11 anos e uma menina de 10 anos numa família de acolhimento. Susana é de Paredes, trabalhava numa fábrica de calçado que faliu, depois ganhou a toxicodependência e começou a traficar para sustentá-la. O marido seguiu-a na queda. “Fui apanhada com grande quantidade de droga e condenada a sete anos e sete meses de pena. Aguardei julgamento em liberdade condicional e fiz sozinha a desintoxicação. Deitei-me na cama e só saí de lá quando me consegui levantar. Foi nessa altura que a comissão de protecção de menores me perguntou se queria ajuda.” Disse que sim e em 2001 deu os dois filhos a criar a estranhos. Quando vai a casa de precária, está com eles. “Eles sabem quem é a mãe e o pai. Ao casal chamam tios e já me disseram que quando regressarmos querem continuar a vê-los. Não nego uma pontinha de ciúmes mas sei que fiz o certo e que eles estão bem.” Quando cumpriu dois anos de detenção, na primeira precária, Susana reviu os filhos: “Foi uma festa tão grande! Nessa noite dormimos todos juntos.”

Pub

Érica está sentada na sua cama, na sua cela, noutra ala de Santa Cruz do Bispo. Âmbar já recuperou da disposição rabujenta de fim de sesta e entretem--se a puxar os cabelos da mãe: “Ai, mi amor!”, ralha. Ao contrário de Susana e de Elísia que esperam precárias para abraçar os filhos, a venezuelana só pode adivinhar o beijo da filha mais velha. As novas de Paulita chegam via telefone desde San Cristobal. “Conta-me que vai à escola e que lá se faz um concurso de meninas bonitas e que ganhou e que lhe puseram faixa e coroa. A minha Paulita foi eleita a princesita da escola! Ai, que lindo!” Em cima de uma mesa lá está Paulita, pequena miss numa fotografia.

NÃO SABE LER NEM ESCREVER

Marina não sabe ler nem escrever, nunca aprendeu. Nunca teve profissão que não fosse o tráfico. Como Elísia, é cigana. É a custo que reconhece a sua ascendência: “Não pareço, pois não?! Às vezes, dizem que pareço brasileira... O pai dela não é cigano, é muito forte e é um homem muito querido. A minha menina, felizmente, saiu a ele... Eu sempre quis que ela não parecesse cigana, assim quando crescer é mais fácil arranjar trabalho.” Nos braços da mãe, Taísa abre os olhos do sono. São azuis.

Pub

Marina apoquenta-se com a hipótese da filha não se vir a entender com o pai por terem vivido apartados. Fernando está preso preventivamente. Ela também mas espera ter a medida de coacção revista. “Tenho um advogado a tratar da minha ida para casa com a pulseira. Se fosse para casa, poderia ir vê--lo mais vezes à cadeia, com a menina. Ai Céus!...”

Marina diz que o seu ‘gadjo’ tinha um café, que é alto e sabe ler e escrever. “Ele tem estudos porque foi abandonado pelos pais e criado num colégio.” Durante uns tempos, no início do namoro, não traficou. Depois, diz, precisaram de dinheiro: “Como não sabia fazer outra coisa, trafiquei. Viemos os dois presos. Não vou dizer que a gente não estava a vender. Vendíamos, sim. Mas aquilo que eles apanharam não era nosso.”

Foi também uma aventura ilegal a dois que prendeu Érica. Em 2004, com 20 anos, a venezuelana embarcou no aeroporto de Caracas, com o marido e a filha de dois anos, Paula. Ia grávida de Âmbar. No porão, uma mala com cocaína. A rota era Caracas-Porto-Lisboa-Barcelona. A família ficou no Porto, retida pela polícia... Foram presos: “É incrível mas a minha Paulita lembra-se de tudo. Durante uns tempos, ainda lhe disse ao telefone que a mamã e o papá estavam a trabalhar em Portugal mas ela respondia-me sempre: “Não, não, tu não me enganas. Eu sei que estão presos porque me lembro de tirarem as malas para fora e depois foi como nas novelas”. Desisti e contei-lhe.”

Pub

Érica, que no seu país estudava no 11.º ano e fazia animação em parques infantis, vai ser extraditada em Março com Âmbar. Não poderá voltar a Portugal. José Gregório, atleta de artes marciais de uma equipa regional, seguirá a mulher e a filha. Em San Cristobal espera-os Paulita. Na cadeia, Susana esqueceu a profissão de operária fabril e tirou um curso de cabeleireiro. Está à espera da ordem judicial que a tirará de Santa Cruz do Bispo com Débora nos braços. Talvez a Primavera traga a reunião familiar em Paredes – ela, o marido, os dois meninos e a bebé. Marina e Elísia estão dependentes de uma improvável revisão de pena.

Nenhuma destas mulheres pretende esconder das filhas que um dia viveram na prisão.

TERESA PIRES: CASAR, ENGRAVIDAR E TER UM FILHO NA PRISÃO

Pub

Na enfermaria da prisão estende-se redonda na cama, quase a ter o filho, Teresa Pires. Trinta e quatro semanas de gravidez do Ricardo, feito numa lua-de-mel desfasada com o dia do casamento, celebrado há um ano no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, onde cumpre pena de 20 anos por ter morto o seu primeiro companheiro, pai de três dos seus quatro filhos.

Teresa e Alexandre encontraram-se num tribunal do Porto e cimentaram um namoro que quase parecia à antiga por ter sido por carta. Assentaram casamento para “facilitar as visitas e as coisas burocráticas.” Em Santa Cruz do Bispo, o enlace deu festa

e reportagem na Domingo em 11 de Dezembro de 2005. O Ricardo foi concebido na segunda visita íntima – nas três horas estipuladas para rodriguinhos. Ainda se conheciam pouco. Não houve tempo para ser romântico. “Vai ser bom ser mãe aqui dentro porque me vai ajudar a passar o tempo. É capaz de ser complicado quando ele tiver que sair mas passarei a vê-lo nas visitas com o pai que está para sair da cadeia.”

Pub

A REVOLUCIONÁRIA E A PSIQUIATRA: CRESCER EM RECLUSÃO

“A presença da criança pode ser muito boa para a mãe mas também é fonte de ansiedade e angústia”, diz a médica Isabel do Carmo, fundadora do Partido Revolucionário do Proletariado/Brigadas Revolucionárias, que esteve presa quatro anos entre 1978 e 1982. Na prisão esteve acompanhada pelo filho, Sérgio, e intermitentemente pela sua filha mais velha, Isabel.

O menino tinha oito meses quando a mãe foi detida; a filha pouco faltava para fazer cinco anos – morria de ciúmes do irmão por este poder ficar sempre com a progenitora. Sérgio tem hoje 28 anos. A memória da cela de isolamento da cadeia das Mónicas chega-lhe falsa, como se tudo tivesse decorrido num só dia. “Quando saímos da prisão, o Sérgio era muito agarrado a mim. Lembro-me de o pôr na escola de circo da Teté, para umas sessões de movimento corporal. Ele ia, mas era preciso que eu estivesse lá também.”

Pub

Ana Vasconcelos, pedopsiquiatra, diz que não se pode traçar regras sobre o crescimento em reclusão – a qualidade do tempo entre mãe e filho será sempre o factor preponderante. Uma má mãe sê-lo-á tanto em liberdade como a cumprir pena.

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

Partilhar