MARIA DA FONTE, UMA MULHER DE ARMAS

Há pouco mais de século e meio, numa aldeia perdida do Minho, estalava o movimento político mais espontâneo do século XIX, protagonizado por uma mulher do povo que, real ou imaginada, ficou conhecida na História por Maria da Fonte.

24 de junho de 2002 às 15:43
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No Portugal de D. Maria II, habituado aos golpes e contragolpes que caracterizavam a vida política, o governo autoritário de António Bernardo Costa Cabral, apostado em modernizar o país, pretendeu reformar o sistema fiscal, substituindo os velhos tributos por novas contribuições. A lei foi posta em execução a 16 de Fevereiro de 1846 e, desde o primeiro momento, os contribuintes receberam com protestos, por vezes violentos, os funcionários encarregues da organização dos boletins referentes às propriedades, logo alcunhados de "papeletas da ladroeira". Começou então a correr o boato de que o cadastro das propriedades rurais se destinava, não ao lançamento da contribuição, mas sim a à elaboração de um levantamento das propriedades a serem vendidas aos ingleses.

Num meio onde prevalecia o analfabetismo, as "papeletas" constituíam por si só um quebra-cabeças; os novos impostos pareciam ainda mais injustos do que os anteriores - a esses, o povo já estava habituado! Para cúmulo, com as novas contribuições cobrava-se um imposto extraordinário para a construção de estradas. A entrada de Portugal na modernidade tinha os seus custos... e despertava a revolta de muitos grupos sociais.

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Uma Afronta ao Povo

Neste ambiente, a aplicação da Lei da Saúde de 26 de Novembro de 1845 - que proibia os enterramentos nas igrejas - vai ser recebida pelo povo rural como uma verdadeira afronta. Presos à tradição, os opositores desta lei de progresso e civilização consideravam o cemitério como indigno de ser a última morada de pessoas e o afastamento da igreja como um obstáculo à salvação na vida eterna. Não é de espantar, por isso, que do mal-estar se passasse à revolta aberta quando, numa aldeia do Minho, provavelmente Fonte Arcada, no concelho de Póvoa de Lanhoso, se deram os acontecimentos que popularizaram Maria da Fonte.

Tudo parece ter começado quando umas camponesas se recusaram a cumprir a Lei da Saúde e enterraram um cadáver na igreja. Quando as autoridades compareceram para fazer cumprir a lei, exumando e trasladando o corpo para o cemitério, os sinos tocaram a rebate, juntaram-se as mulheres da aldeia e delas destacou-se uma, chamada Maria, que com uma foice na mão carregou sobre os funcionários, os quais não tiveram outro remédio senão fugir para salvar a vida. Estes acontecimentos, datados de finais de Março ou início de Abril de 1846, alastraram pelas aldeias do Minho na primeira quinzena deste mês. Desqualificada inicialmente pelo ministro Costa Cabral como "revolução do saco ao ombro e da roçadoura na mão", certo é que os revoltosos, entre morras ao governo e vivas às "leis velhas", se sentiram suficientemente fortes para invadir Braga e atacarem o quartel de Infantaria 8, tendo sido repelidos à custa de muitos feridos e alguns mortos. Para combater a rebelião Costa Cabral obteve poderes extraordinários, suspendendo as liberdades, impondo a lei marcial para os crimes de revolta e destacando o seu irmão, José Bernardo, ministro da Justiça, para o cargo de comissário do Governo com poderes extraordinários para sufocar a revolta no Norte - o que lhe vale a alcunha de "Rei do Norte" dada pela oposição.

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A Revolta das Aldeias

Entretanto a revolta alastrou do Minho a Trás-os-

-Montes, sobretudo na região de Vila Real. Nos concelhos de Guimarães, Braga, Cabeceiras de Basto, Viana, Barca e Amarante, as guerrilhas, algumas com milhares de homens, defrontavam-se com o exército, incapaz de, com as tácticas de guerra clássica, fazer face à mobilidade e imprevisibilidade dos insurrectos. Aldeias inteiras revoltavam-se, com os tradicionais instrumentos de trabalho, forquilhas e foices, transformados em armas. Repartições públicas eram saqueadas e os documentos incendiados.

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Neste contexto, dão-se as primeiras deserções do Exército da Rainha: primeiro dos soldados, depois dos comandos militares em Trás-os-Montes. Ao mesmo tempo, constitui-se em Vila Real uma Junta Governativa, verdadeiro governo revolucionário que substitui as autoridades legítimas. O exemplo frutifica rapidamente e constituem-se juntas em várias localidades, entre as quais Santarém, Braga, Viseu, Leiria, Lamego, Évora e Coimbra. Estes governos locais, geralmente apoiados pela tropa, substituem-se ao poder central, enquanto no Parlamento, nos jornais e nas ruas se apela a D. Maria II para que destitua o Governo.

O regresso de José Bernardo Cabral, do Porto para Lisboa, a 17 de Maio é o reconhecimento de que a situação no Norte está fora de controle. Nessa noite o Governo demite-se. O afastamento dos Cabrais é acolhido com alívio no País e com festa noite adentro em Lisboa, com o povo entoando as estrofes do hino "Maria da Fonte".

O fim da Guerra de 'Pata-ao-léu'

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O novo Governo, chefiado pelo Duque de Palmela, vai procurar a conciliação nacional, revogando as contestadas leis da saúde e da reforma tributária, demitindo algumas autoridades cabralistas e prometendo convocar eleições logo que a situação se pacifique. Mas, entretanto, a situação no País não vê melhoras: os governos locais agem a seu bel-prazer, as populações recusam-se a pagar impostos e correm aos bancos para trocar as notas por metal sonante. Os absolutistas ameaçam com o regresso de D. Miguel, exilado em Roma e ,em Espanha, Costa Cabral consegue convencer o chefe do governo do país vizinho a invadir Portugal.

D. Maria II demite o Duque de Palmela a 6 de Outubro e nomeia o Marechal Saldanha como novo chefe do Governo, o que é entendido pela oposição como um golpe de estado de sinal conservador. Enviado ao Norte para pacificar a situação, o Duque da Terceira, representando a Rainha, é recebido com hostilidade e aprisionado no Castelo da Foz. Era um passo irreversível e que constituía uma afronta à soberana. O Porto prepara-se para a guerra e nomeia uma "Junta Provisória do Governo Supremo do Reino". O Minho, Trás-os-Montes, a Beira interior, o Alentejo e o Algarve seguem-lhe o exemplo. As guerrilhas, que não tinham chegado a desmobilizar reaparecem. Aos 4000 soldados do Governo conservador opunham-se mais de 6000 homens da Junta revolucionária. Aproveitando a confusão, os miguelistas dominam largos territórios no Norte, organizados em guerrilhas chefiadas por padres e pelo brigadeiro escocês Macdonnell.

Durante oito meses a Guerra Civil vai lavrar em Portugal, numa relação de forças equilibrada que ameaça perpetuar o conflito e paralisar definitivamente Portugal. Assim, em Maio de 1847, a Rainha, impotente para controlar os revoltosos, pede a intervenção estrangeira, que não se faz esperar: no fim desse mês uma esquadra inglesa aprisiona as melhores tropas da Junta e, em Junho, o exército espanhol invade o nosso país por Valença, Bragança e Elvas. Em Gramido, perto do Porto, é assinada a Convenção que põe fim à Guerra da Patuleia, nome derivado de "pata-ao-léu" (pé descalço), ilustrando o carácter popular do levantamento que lhe deu origem.

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