Miguel Araújo: "Cada um tem de fazer aquilo que a vida pede"
Depois da parceria com António Zambujo, Miguel Araújo está de regresso aos coliseus mas com convidados.
De miúdo tímido passou a um dos mais conhecidos autores e intérpretes da música portuguesa. Só no ano passado, mano a mano com António Zambujo, encheu 28 vezes o Coliseu dos Recreios, um "feito improvável e inexplicável" até para o próprio Miguel Araújo. ‘Giesta’ é o seu terceiro disco a solo, gravado em casa entre a correria para muitos espetáculos.
Um disco que cheira à morada dos avós e brinca com as memórias de infância. Traz à baila a banda dos tios, o embaraço da primeira escrita, a orfandade dos ídolos de adolescência - de Axl Rose aos Nirvana -, tudo o que inspirou e fez de Miguel Araújo o músico que hoje é. É isso que vai levar na mala para os concertos que se avizinham nos coliseus - Porto a 3 e 4 de novembro e Lisboa a 11 do mesmo mês - mas vai sobretudo levar os amigos para com ele partilharem o palco e o sucesso presente: Rui Veloso, Kappas, André Tentúgal, Catarina Salinas, Os Azeitonas, Ana Bacalhau, João Só e Ana Moura.
O que podemos esperar destes concertos dos coliseus?
Vão passar sobretudo pelo repertório do novo disco, ‘Giesta’, que ainda tem pouco tempo, mas vão ser diferentes, sobretudo pelas parcerias com os convidados que vou ter em palco e pelas músicas que vamos tocar juntos. São músicas que habitualmente não fazem parte dos meus espetáculos porque não tenho os intérpretes ali comigo. Foi essa a razão de os juntar. Vou tocar, por exemplo, ‘Ciúme’, que escrevi para o disco a solo da Ana Bacalhau, e outros temas que partilho com os outros convidados. Também vou tocar um inédito que escrevi há pouco tempo.
E este novo disco, ‘Giesta’, de que nos fala?
É um disco muito pessoal que fala muito da minha infância. É conceptual. Ou melhor, o conceito passa pela casa da minha avó, que foi o sítio onde cresci. A casa dos meus pais era em frente – nós morávamos todos na mesma rua – mas quando eles iam para o trabalho, eu ia para a casa da minha avó. Era uma casa muito cheia, um universo riquíssimo de onde vieram as minhas primeiras memórias de infância e todas aquelas impressões que nos ficam para a vida.
É um disco muito pessoal, certamente...
Sim. Por outro lado, foi um disco que foi gravado em casa porque eu tinha uma agenda de concertos tão preenchida que não tinha qualquer hipótese de ir para estúdio. Então, montei um estúdio em casa e ia gravando. Acordava, tomava o pequeno-almoço, levava os meus filhos à escola e depois ficava por ali a trabalhar no disco. Acabou por ser um processo muito agradável e acho que isso reflete-se no disco, embora não soe a um disco artesanal. Ou seja: não é um disco de baixa fidelidade ou tecnologia, porque o equipamento foi idêntico ao de estúdio. Não é uma coisa rasca. O conceito é que é mais familiar.
E tem andado a ensaiar afincadamente para estes espetáculos ou com tantos concertos que fez no último ano já nem sequer é preciso?
A maior parte das canções não é preciso ensaiar, mas as parcerias sim. Tenho feito como sempre fiz: aproveito que o pessoal do Cineteatro de Estarreja é supersimpático e deixam-nos ir para lá fazer o ensaio geral durante dois ou três dias.
Foi na casa dos avós que despertou para a música?
Sem dúvida. O meu primeiro contacto com a música foi através dos meus tios que tinham uma banda e que costumavam ensaiar em casa da minha avó. Nos primórdios da banda, eu andava a gatinhar no meio deles. Depois a banda fez uma pausa e, mais tarde, quando retornou, já eu andava no meio deles a tentar tocar. No final dos anos 80, devia ter uns dez anos, comecei a querer tocar e formei uma banda ‘clone’ da dos meus tios com os meus primos.
O que tocava nessa banda?
Agarrei primeiro o baixo, porque era o que sobrava na tal banda, mas o que eu queria mesmo era tocar guitarra.
Era mais para o reguila ou mais para o tímido?
Era definitivamente mais para o tímido e introspetivo.
Como começou a escrita de canções?
Muito cedo. Mas durante muito tempo só escrevi na perspetiva das canções (agora mais recentemente é que comecei a escrever crónicas e outras coisas). E também não eram propriamente poemas. A poesia é uma coisa que se basta a si própria, a letra de uma canção não. Precisa da música para se revelar. Mas durante os dez primeiros anos não consegui escrever nada de jeito. Escrevia e deitava fora. Aprendi por tentativa e erro. Ficava quietinho e sozinho no meu quarto a escrever e, embora não se aproveitasse nada, acho que fui ganhando uma certa ginástica de mão. De maneira que, quando comecei a escrever umas letras mais aceitáveis, já tinha uns dez anos de tentativas.
Estudou para outra coisa que não música?
Tirei o curso de Gestão de Empresas na Universidade Católica do Porto, mas nunca exerci, até porque os Azeitonas surgiram ainda no tempo em que estava na faculdade. Não foi uma tomada de decisão, foi uma coisa que foi acontecendo naturalmente. O fim do curso coincidiu com a altura em que a música começou a pedir mais tempo e acabei por meter um ano sabático. Só que, depois disso, a música pediu ainda mais tempo. O ‘gap year’ dura já há 16 anos.
Por acreditar que é mais feliz assim do que a gerir uma empresa qualquer?
Cada pessoa tem de fazer aquilo que a vida lhe pede. A minha vida toda conduziu-me para a música e eu dediquei-me a ela sem pensar nas consequências. Se calhar é por isso que, quando chegou a hora, a música cobrou-me a minha vida toda. Não é uma questão de bem-estar individual… é o que tem de ser feito, possivelmente porque sou mais útil nisto do que noutra coisa qualquer.
Porque saiu de Os Azeitonas? Deixou de se encaixar no todo?
A falta de tempo. Em 2015 e 2016 cobraram-me muito, cobraram da minha saúde até. Chegou a um ponto em que era mais o tempo que Os Azeitonas estavam parados à minha espera do que as vezes que eu podia estar com eles. Portanto, aconteceu o que naturalmente acontece nestes casos. Eles deixaram-me seguir o meu caminho e eu também os deixei livres para seguirem o deles.
Em que zona do Porto cresceu?
Na Maia.
E como é que um portuense de gema vê agora este Porto tão renovado e cheio de turistas?
Acho que o facto da Ryanair ter voos para o Porto foi uma coisa ótima para a cidade. Começou-se a renovar a Baixa e a cidade ficou muito mais bonita. Eu hoje vou à Baixa do Porto e deslumbro-me tal e qual como os turistas. Vou de vez em quando e está sempre tudo diferente desde a última vez que lá passei, para melhor. Até porque ainda me lembro do deserto que a cidade era antigamente. Claro que percebo os problemas do imobiliário e das pessoas que lá moram, mas tem, apesar disso, muitas coisas boas.
Como é que uma pessoa que anda sempre de um lado para o outro a tocar, sempre em cima de um palco, observa os problemas reais?
É isso. Observando. E alguns saltam à vista, quando viajo pelo País: por exemplo, a questão da desertificação. Somos um País pequeno e tão mal distribuído! Veja-me a infelicidade que é nascer-se num sítio onde se tem tudo, mas onde não se pode ficar o resto da vida porque não se tem trabalho. É uma tragédia. Tenho a certeza que, se os nossos antepassados regressassem agora e vissem a forma como organizamos o nosso território achariam de certeza que somos muito estúpidos. Há vinho, há fruta, há mármore, há azeite no interior, mas depois todos têm de ir para Lisboa porque no fundo andamos todos a correr atrás dos mesmos cursos e dos mesmos empregos. Às vezes, empregos em multinacionais estrangeiras que não sabemos de quem são ou a que se dedicam verdadeiramente. E depois acaba-se a trabalhar numa coisa qualquer. E mediante todas essas condições, será que esses empregos depois nos fazem realmente felizes? Tenho um ou dois amigos que vivem da fruta, mas é muito raro isso acontecer.
Se fosse político e chegasse ao poder, qual a primeira coisa que mudava no nosso país ?
Não tenho qualquer vocação para político, portanto também não faço a mínima ideia sobre o que faria. É como se me perguntasse o que faria se fosse toureiro... também não fazia a mínima ideia. Nunca tive qualquer vocação de liderança. Sou uma pessoa mais contemplativa e melancólica e não tenho jeito para andar a mandar em pessoas. Para além disso, acontece ainda uma outra coisa engraçada: de todos os meus amigos que tinham imenso jeito para liderar, nenhum deles foi para a política. A razão é muito simples e reflete um pensamento que é muito comum na minha geração: a política não é uma coisa minimamente atrativa para uma pessoa de bem. É o que eu penso, sem querer estar a ofender os políticos, nem ninguém que tenha aspirações políticas. Mas é a realidade. Uma pessoa de bem não vai fazer realmente nada para a política a não ser arranjar chatices...
Para se meter em caldeiradas, como se diz em Lisboa...
Como sou do Porto, seria mais para me meter em ‘sarrabulhos’.
O que é que o tira do sério?
Não há muita coisa que consiga tirar-me do sério, até porque eu sou muito calmo e muito zen. Todavia... há uma coisa que é realmente capaz de me deixar profundamente enraivecido e frustrado: é a minha falta de perícia para alguns daqueles afazeres domésticos mais tipicamente masculinos, como consertar qualquer coisa que se partiu, mudar uma lâmpada ou a bricolage em geral. É nessas alturas que perco a calma toda e deixo de ser a tal pessoa zen. Sou capaz de ficar enraivecido por uma coisa tão simples como tentar tirar uma coisa da mala do carro e ela não estar a sair. Fico mesmo muito irritado. Pareço um animal. Depois, geralmente, é a minha mulher que me chama à razão.
E o que o faz rir?
Há muita coisa que me faz rir. Os meus amigos, porque têm aquele sentido de humor inteligente que eu adoro. Com a minha mulher também, porque ela também tem esse sentido de humor. E, claro, com os meus filhos. Gosto de me rir quando estou com os meus filhos.
Que idades têm eles?
Cinco e três anos. São dois rapazes. E daqui a um mês, precisamente, nasce uma menina.
E já escreveu canções a pensar neles, com certeza.
Já. Neste último disco tenho uma canção que se chama ‘Acalanto’ e que foi feita a pensar neles. Logo no meu primeiro disco também tinha ‘Capitão Fantástico’. Nessa altura só tinha ainda o Joaquim, o mais velho. E não era propriamente uma canção sobre os filhos, mas antes sobre a relação que eles têm com a mãe. Não havia ainda tantos filhos como agora, mas julgo que era já a paternidade a falar - neste caso, a compor - mais alto.
Sente que a paternidade o mudou muito nos últimos anos?
Claro. Antes de ter os meus filhos não tinha qualquer preocupação na vida. Quer dizer, tinha aquelas preocupações imediatas e quotidianas, preocupava-me com os meus pais, mas não havia nenhuma coisa com que realmente valesse a pena preocupar-me. Depois deles nascerem tudo muda. Aliás, só percebi verdadeiramente a preocupação que os meus pais tinham comigo depois de ser pai. Antes dos filhos, vivemos eternamente no ventre materno, depois de virem os filhos é que a vida começa a doer. Agora é um estado de vigília permanente, é um sono leve. É por isso que os pais se gastam mais depressa e ficam cheios de cabelos brancos. Em contrapartida percebi e ganhei o sentido da vida: nada é melhor do que viver em função deles.
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt