“Mostrou-me um frasco com orelhas e dedos"
Quando saltaram para a mata, os dois cabos foram capturados e feitos prisioneiros - a coisa que mais temíamos
Estava uma tarde cinzenta e triste. Mais tristes estavam os familiares que foram despedir-se de nós, sem certeza de voltarem a ver-nos. No Cais da Rocha do Conde de Óbidos só havia tristeza e lágrimas, em mais uma ida do ‘Vera Cruz’ para Angola. Chegámos a Luanda a 9 de dezembro de 1962, ainda de noite. Tudo nos parecia escuro, mas o dia trouxe os movimentos próprios de uma cidade em grande desenvolvimento. Estivemos três dias no Grafanil, onde os mosquitos gigantes pareciam apostados em sugar-nos o sangue.
Dali para o norte foi um salto. O batalhão foi ocupar a zona da Pedra Verde, a 120 quilómetros, ficando uma companhia em Piri (a 389), outra no Pango Aluquém (a minha) e as outras duas (Caçadores 388 e de Serviços) em Úcua. O primeiro mês foi passado em ações de reconhecimento, de fazenda em fazenda, algumas delas abandonadas.
Em meados de janeiro de 1963 sofremos a primeira baixa, num acidente de viação. A inexperiência do condutor, o terreno acidentado e o piso escorregadio levaram à morte de um soldado. Sendo alferes, fui nomeado comandante da coluna que acompanhou o funeral até Quibaxe. Ainda hoje revejo muitas vezes os militares cavando a sepultura e deitando o caixão à cova.
ATAQUE DO 'MATA-ALFERES'
O capim, mais alto do que um homem, dava até à picada. Quando saltaram para a mata, os dois cabos foram capturados e feitos prisioneiros – a coisa que mais temíamos, por sabermos as torturas que nos esperavam. Ainda perdemos seis armas mas o inimigo não conseguiu levar a metralhadora, montada numa viatura Unimog.
Este ataque foi comandado pelo célebre António Fernandes, que veio a ser morto pelas tropas portuguesas e que era conhecido por ‘Mata-Alferes’. Ao primeiro tiro, matava sempre um graduado. A sua arma era uma carabina que havia ganho num concurso de tiro em Portugal. Na nossa zona havia outro mulato, filho de um fazendeiro branco e de uma negra, que também usava carabina de caça. Esse tinha a cabeça a prémio, por ordem do pai.
Os meses foram passando, com mortos e feridos de ambos os lados. Recordo o cabo Baptista e o soldado ‘Feio’. No triângulo Piri-Úcua-Pango, numa operação em que capturámos vários inimigos, um soldado mostrou-me um frasco com orelhas e dedos de guerrilheiros conservados em álcool. "É para levar de presente ao nosso comandante", explicou.
Na Úcua, perto do rio Dange, fizemos uma operação em que esteve o então capitão Jaime Neves – oficial valente e querido dos seus homens. O calor era muito e não havia água. Fomos sobrevoados por duas ou três avionetas, que atiraram bidões. A maior parte rebentou ao tocar o solo.
Após um ano no norte de Angola, fomos para o leste, para patrulhamentos apeados e em viaturas na zona em volta do Marco 25, reconhecimentos e reconstrução de pontões. O inimigo queria abrir uma nova frente, e nós sabíamo-lo. Por isso apareceu no destacamento do Marco 25 o então tenente-coronel Spínola. Só com o condutor, andava em reconhecimento, pois havia a possibilidade de o seu batalhão entrar em ação de sobreposição ao nosso.
Nome: Carlos Venâncio Bilro
Comissão: Angola (1962-1964)
Força: Companhia de Caçadores 390
+INFO: Este relato foi publicado originalmente na revista 'Domingo' em junho de 2009
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