Na casa do exorcista
Igreja Católica admite prática em casos excecionais, mas rito é celebrado à revelia.
Maria Cília, 62 anos, é católica praticante, "batizada e casada pela Igreja", tem fé em Deus, no poder das rezas, nos óleos e nas mezinhas, na mesma medida em que crê nas tentações do demónio. "Nesta vida há de tudo", garante. E desde que perdeu um filho para morte prematura e inexplicável, na Suíça onde esteve emigrada três décadas, tornou-se assídua nas consultas do padre Gama, em Murça, Vila Real. Acredita que os exorcismos praticados pelo padre, que a Igreja não reconhece, são meio caminho para a cura da alma e pede agora ajuda para um primo, de 15 anos, que vê mortos, "tal e qual estão no caixão".
Resultado da crença ou da teologia, conforme as versões, o exorcismo volta a ser mais procurado e não menos celebrado. A posição da Igreja Católica é discreta e exige regras próprias. Só pode celebrar um exorcismo um padre habilitado e com licença do bispo. Crucifixo, estola e água benta são de uso obrigatório, assim como as orações, muitas vezes em latim. No Vaticano, aumentam os cursos e retiros para aprender tais práticas, e num documento de 2012 o patriarca de Lisboa pediu aos padres que ajudem quem procura "expulsar os demónios". A prática deve ser feita em local discreto, longe dos media. E só na diocese de Lamego o padre Duarte Sousa Lara se apresenta como exorcista oficial, aluno de Gabriele Amorth - que há 25 anos coordena este departamento em Roma. Noutros locais reina a discrição.
O padre Carreira das Neves, que assegura nunca ter praticado um exorcismo, reconhece que a prática voltou com os papados de João Paulo II e Bento XVI. "É um problema de teologia. Os evangelhos falam do diabo, mas entendo isso como uma metáfora para o problema do mal, que não tem explicação científica", diz. E no Convento da Luz, em Lisboa, encontra pessoas que acreditam na cura só ao "ver um padre, com estola, água benta, a fazer uma reza. É um placebo, na minha perspetiva, mas as pessoas ficam mais libertas". Já na diocese de Évora, onde não existe um exorcista nomeado, o padre Senra Coelho encontra é "muita gente a pedir ajuda, também pelo momento que vivemos".
REZAS E ÁGUA BENTA
Nas casas do padre Gama, 74 anos, não há calendários. Recebe uma semana em Murça, Vila Real, outra no Cadaval, em Fátima, onde acorrem "muitos aflitos". Padre de culto mariano, diz pertencer à "Igreja de Deus", e ao rol de suspeitas que pesam sobre as suas práticas e os sinais exteriores de riqueza o padre, que conduz automóveis Porsche e BMW, responde que tem "fortuna de família" e garante não cobrar nada. "Cada um paga o que quer e recebo pessoas do Canadá, Austrália, Bélgica. Se fazem essas viagens, e gastam o que gastam, não é para fazerem turismo." Uns querem recuperar a fala, outros encontrar paz para os males da vida.
No exorcismo, Humberto Gama segue o rito católico. "Uso a cruz, hóstias, um cálice com água benta e leio os evangelhos." Garante que as pessoas saem reconfortadas. "Recebo médicos, advogados, políticos e difícil é saber se uma pessoa tem problemas mentais. Exige uma prática muito grande." Na sua versão, "o que existem são forças de energia, uma positiva e outra negativa. O importante é as pessoas acreditarem, e vêm aqui porque têm fé."
É também a fé que leva uma legião de crentes a procurar o padre Amorth. No livro ‘Memórias de um Exorcista', o italiano de 88 anos revela ter libertado "70 mil possuídos", alguns dos quais cuspiam "cacos de vidro, pedaços de metal e também pétalas de rosas". As sessões implicam por vezes risco de vida, nota o padre que encontra "alguma precisão" no filme ‘O Exorcista', que em 1973 conquistou as bilheteiras ao retratar o fenómeno da possessão numa menina de 12 anos.
RITO ANTIGO
Foi precisamente com essa película que o exorcismo veio para praça pública. Realizado para afastar o diabo, o ritual "existe desde sempre e antigamente todas as dioceses tinham quem o praticava, geralmente padres tidos como muito santos", diz Carreira das Neves.
Senra Coelho, professor de História da Igreja na Universidade de Évora, cita "o exorcismo catecumenal, datado dos séculos II e III", para explicar que a Igreja "sempre teve disso consciência. E permanece com o rito aprovado depois do Concílio Vaticano II", nos anos 1960, que permite o uso das línguas locais. No entanto, frisa, "a Igreja é exigente, pois este fenómeno cruza-se por vezes com problemas de solidão, dimensões de esquizofrenia, histeria", e é "mais grave nos centros urbanos, onde as pessoas estão mais vulneráveis e sozinhas".
Para o padre Manuel Villas-Boas, da sociedade missionária, "o diabo é uma figura inventada" que afeta as pessoas. "Acreditam e por vezes, em situação desesperada, dificilmente vão a um psiquiatra, que lhes cobra couro e cabelo", nota. "Eu próprio passei por uma situação tremenda, quando ao chamar a atenção de uma pessoa de que deveria ir ao médico fui muito maltratado fisicamente."
No Cadaval, o padre Ricardo Jacinto nunca encontrou ninguém "a necessitar de exorcismo maior". Já o "exorcismo menor sempre fez parte dos ritos do batismo." Nesse caso, "usam-se as vestes sagradas e gestos sacramentais normais, o de súplica, com a imposição das mãos, o do batismo e até a unção com o óleo dos catecúmenos".
Manuel Pereira, 45 anos, assistente técnico de equipamentos de frio, visitou o padre Gama "para tentar as melhoras da mulher, que sofre com dores de estômago". Com um diagnóstico de "úlceras nervosas", a paciente "ficou na mesma. Paguei cinco euros para nada".
Maria Cília encontra força nas visitas. O primo, "com a primeira comunhão feita e organista na Igreja, está liberto dos arrepios que sentia sempre que passava no cemitério ou entrava na sacristia. E não eram nervos, pois sempre foi muito calmo", garante. "Ele tinha visões dos mortos porque o corpo estava aberto. Foi o senhor padre Gama que me disse."
GESTO DO PAPA FRANCISCO LEVANTA POLÉMICA
Quando, no passado domingo, o papa Francisco se aproximou de um jovem numa cadeira de rodas e lhe colocou as mãos na testa, muitos foram os que ali viram um gesto de exorcismo. O que os bispos italianos deram como certo, o Vaticano tratou de clarificar: foi apenas uma "oração mais pessoal".
PADRE SOUSA LARA: O EXORCISTA OFICIAL
por Secundino Cunha
Duarte Freire de Andrade de Sousa Lara, filho do antigo subsecretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva, António Sousa Lara, é dos poucos padres da Igreja Católica que se assumem como exorcistas autorizados pelo bispo diocesano. Pároco de Desejosa, Folgosa e Valença do Douro, na diocese de Lamego, e professor de Teologia no Instituto Superior das Beiras, dedica muito do seu tempo a ajudar os fiéis a libertarem-se do diabo.
À beira de completar 38 anos (já tinha 30 quando foi ordenado), o sacerdote não esconde a sua faceta de exorcista, embora seja extremamente difícil contactá-lo, uma vez que não tem mãos a medir neste ministério, que designa de "muito bonito" e "revelador da força de Deus em ação".
Na sua página de internet Santidade.net há uma caixa de mensagens, a que o sacerdote responde sempre, mas em que avisa que pode não responder no prazo de duas semanas. Aos paroquianos explica sempre da mesma maneira a razão pela qual não atende o telemóvel: "Se atendesse as chamadas, não fazia outra coisa."
Numa catequese sobre exorcismos, que a Domingo visualizou, o sacerdote lamenta que haja poucos padres preparados para fazer exorcismos e que seja muito diminuta a formação dos seminários sobre esta matéria.
"As pessoas com problemas espirituais são pouco compreendidas e têm muito pouca ajuda por parte da Igreja", diz o padre Duarte Sousa Lara, sublinhando que "é urgente olhar para estas coisas com mais atenção, porque os problemas existem e são cada vez mais graves e complexos".
"Todos os padres deviam saber um pouco disto, porque as pessoas, quando procuram um sacerdote, esperam que ele lhes dê a bênção de Deus e as ajude a libertarem-se das coisas más", afirma o exorcista da diocese de Lamego. E vai mais longe: "Há muita gente a sofrer de distúrbios de origem diabólica que vão muito além das simples tentações, e essas pessoas precisam de ajuda.
Nessa catequese, o padre Duarte Sousa Lara não poupa nas palavras para designar a possessão maligna, referindo-se a "ataques diabólicos", "obras de Satanás" ou "distúrbios do maligno".
Sublinhando que é muito errada a ideia geral que as pessoas têm do exorcismo, o sacerdote adverte para o facto de o sucesso de um exorcismo implicar uma verdadeira conversão. "Para que o exorcismo seja profícuo, as pessoas têm de empenhar-se na vida cristã. O primeiro passo para vencer o demónio é sair do pecado, porque um balde roto não retém a água", explica o sacerdote.
Sendo pároco, o exorcista opta por poupar as comunidades a estas "coisas do demónio", atendendo os fiéis atormentados numa casa de religiosas franciscanas próxima do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego.
"Eu faço oito exorcismos maiores todas as sextas-feiras, depois atendo muita gente para as confortar a livrar de pequenos ataques do mal", afirma o padre Sousa Lara, admitindo que vem gente de outras dioceses e até de fora de Portugal.
"É um ministério delicado e a Igreja faz bem em ser prudente, uma vez que os padres têm de estar devidamente preparados para isto. Agora, trata-se de um problema pastoral e devia haver pelo menos um exorcista em cada diocese", afirma o religioso da diocese de Lamego.
O padre Sousa Lara diz que o ritual de exorcismo que faz demora cerca de vinte minutos, é rezado em português e afirma que gosta de envolver a família nas orações e na ajuda à execução prática do exorcismo.
"As reações das pessoas são as mais diversas. Nos casos mais leves, sento as pessoas num sofá cómodo e umas contorcem-se, arrotam ou vomitam. Há casos médios em que é preciso duas pessoas a segurá-las no sofá. Nos casos muito graves, deito as pessoas numa marquesa e peço a cinco ou seis pessoas para as segurarem. É preciso algum cuidado, porque os demónios gritam muito, cospem e, às vezes, até mordem", explica o padre Duarte Sousa Lara.
Nas paróquias deste sacerdote que passa os dias a lidar com as coisas do diabo, os fiéis convivem bem com isso. "Foi a melhor coisa que podia ter acontecido a esta terra, a chegada deste padre", diz Heitor Figueiredo, habitante de Folgosa, no concelho de Armamar.
Também Arsénio Fernandes Peixoto, que é o sacristão da paróquia, não poupa elogios ao pároco. "A igreja estava quase sempre vazia, as pessoas andavam divorciadas das coisas de Deus, e agora não se cabe nas missas, tanto à sexta, como ao domingo", explica o colaborador do padre Sousa Lara.
Em dois anos de pároco, o sacerdote já conseguiu recuperar a igreja paroquial, numa obra de mais de 120 mil euros, e cativar as pessoas, incluindo os jovens. Trata-se de um dos discípulos do padre Gabriele Amorth, o maior exorcista do Mundo.
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