"Não trocava a minha vida"
Duas gerações de músicos que, além das lides de palco, compartilham também laços de sangue. Kalú, o baterista dos Xutos & Pontapés, e os filhos, Fred (Oioai, Yellow W Van) e Sensi (que acaba de editar o seu álbum de estreia) numa conversa cruzada sobre o passado, o presente e o futuro da música em Portugal, com muitas recordações de infância e ‘segredos’ de família à mistura
Sensi – Conta lá o que tens a dizer sobre a música portuguesa após 30 anos de carreira...
Kalú – Está com saúde. Em 30 anos a evolução foi grande. Apesar de o mercado da música estar em baixo, há cada vez mais bons músicos e compositores.
Fred – O que achas que mudou?
K. – Tanta coisa. Vocês não se lembram porque nem eram nascidos... Tocava-se só com amplificadores de voz, porque não havia sistema de amplificação, nem luzes, nem coisa nenhuma. Hoje há ecrãs de led, laser, mesas de som altamente sofisticadas, gravadores de não sei quantas pistas para ter em casa. Os Xutos só depois de uma série de anos de carreira é que investiram num gravador de cassetes. Hoje vocês fazem os discos em casa mas isso há 30 anos não era possível. Mas há outras coisas que mudaram: actualmente não se investe em carreiras. Quando as editoras apostam num nome é porque os projectos já estão num estado de maturação avançado. Veja-se o caso da Ana Free. Só que é tudo muito mais efémero: numa semana batem recordes no MySpace, na semana a seguir os putos substituem-nos por outros porque aquilo já é antigo. A carreira dos Xutos é muito mais consistente: os fãs acompanham-nos há décadas, estão presentes nos concertos, não descarregam da internet. E vocês, conseguem criticar o vosso trabalho, o vosso tempo?
S. – Claro.
K. – Então digam lá da vossa justiça...
F. – Os tempos são mais difíceis. Já não se consegue sobreviver com uma banda só. É preciso tocar em meia-dúzia de projectos e, às vezes, andar à procura de concertos para fazer, senão o dinheiro não chega para viver.
S. – Há coisas boas e más. O meu primeiro disco permitiu-me confirmar o caminho que comecei a trilhar, incentivado pelo Fred, porque foi ele que me colocou a tocar com os Yellow W Van. Mas os rumos vão-se criando e mudando à medida que vamos evoluindo. Hoje em dia é possível chegar às pessoas através da internet, sem passar por editoras. Mas também é complicado para os mais novos safarem-se. É preciso estar sempre a criar coisas novas para atrair as pessoas, mas as bandas de hoje também encaram isso com naturalidade.
K. – Agora sou eu que faço uma pergunta, já que estamos aqui os três e ninguém nos ouve. Somos todos músicos mas temos carreiras diferentes. Sou músico, compositor e tenho uma banda. O Frederico é mais executante e o Vasco não toca mas escreve, que é coisa pela qual nunca me senti atraído. Afinal, o que temos em comum?
S. – Se vocês tivessem começado por escrever letras hoje já se sentiam à vontade. Mas como começaram pela bateria ficaram mais agarrados a esse aspecto.
F. – Creio que todos fazemos bons arranjos. É esse o ponto em comum. O problema de ser executante é sentir, por vezes, uma certa frustração, porque toda a gente tem necessidade de fazer as suas próprias coisas. É esse sentimento que contrario com os arranjos, e também vou compondo algumas coisas.
K. – Eu nunca pensei que conseguisses escrever. Eu não consigo. Sai sempre uma porcaria.
F. – E outra coisa que temos em comum é o futebol, ou melhor, o FCP.
S. - Mas eu não sou fanático. Aliás, cheguei a jogar mesmo a sério, com o meu pai sempre a acompanhar, mas depois deixei-me disso.
K. – O que me foram lembrar... o miúdo tinha 13 ou 14 anos, jogava no Abóboda e chegava a sair do campo com escolta policial e tudo. Jogava-se a feijões, em troca de uma sandes e de um sumo, mas mesmo assim era um inferno, com os pais todos a mandar vir e à porrada. E depois acabou-se o futebol precisamente por causa disso: o Estoril interessou-se por ele mas o Abóboda pediu 300 contos pela carta de desportista. Tive uma conversa séria com o Vasco e ele deixou de jogar. É inadmissível um miúdo jogar para se divertir e depois anda um tipo qualquer a fazer dinheiro à conta dele.
F. – Lembras-te quando o pai era nosso treinador?
S. – É verdade. Ele era o treinador da equipa dos nossos amigos. Treinávamos em Carcavelos e chegámos a participar no torneio da Coca-Cola.
K. – Mas eu sou viciado. Se o FCP está a jogar não faço mais nada. Nem toco.
S. – A única vez que vi o meu pai a gaguejar foi por causa do Jardel!
K. – Isso foi no Porto. Ele ia a entrar para o carro e dirigi-me a ele mas o fulano arrancou e nem ligou nenhuma. Aconteceu-me uma situação parecida com o Rui Jorge aqui em Lisboa, quando eles iam embarcar, mas com mais piada. Fui lá cumprimentá-lo e ele virou-me a cara. Minutos depois veio um jornalista da televisão entrevistar-me e eu aproveitei: casquei nele! São exemplos daquilo que uma pessoa não deve ser nem no futebol, nem na música. Nunca se deve virar as costas a um fã. Eles é que nos põem lá em cima e fazem o que nós somos. O Zé Pedro, por exemplo, é uma pessoa excepcional nesse sentido. As pessoas reconhecem-nos na rua e ajudam-nos, oferecem-nos uma cerveja. É por isso que costumamos dizer que isto é uma família enorme.
F. – Os Xutos nunca viraram a cara a ninguém e é por isso que continuam a ser grandes.
K. – Ainda no outro dia fui à Loja do Cidadão e estava lá um arrumador de carros que me reconheceu e fiquei um bocado a conversar com ele. Há que ter noção de que essa atenção que se dá é muito importante para cada uma das pessoas que se dirigem a nós. Essa sempre foi a nossa postura. Quando andamos na estrada toda a equipa come na mesma mesa. Se há hotel de cinco estrelas ou bife é para todos.
F. – Por falar de equipa, os técnicos têm uma alcunha para cada músico. Qual é a tua? (risos)
K. – Na estrada todos temos alcunhas. Eu sou o ‘Trombinhas’. E só descobri depois de ter passado muito tempo a receber elefantes de presente. Achei estranho e resolvi investigar.
S. – Qual é o teu maior defeito?
K. – São tantos, e nem sei dizer qual é o maior. Sou muito egocêntrico. Penso mais em mim do que nos outros, e isso é mau. Converso imenso mas, no fundo, quero é estar sozinho com os meus botões. E ninguém deve ser assim.
S. – E maior virtude?
K. – Sou generoso.
F. – E o teu maior feito?
K. – A minha família. Ter tido três filhos maravilhosos. Gosto muito deles e estão todos no bom caminho, com algumas lutas pelo meio, na adolescência, mas isso são coisas normais. Depois, separei-me quando o Frederico tinha seis anos e o Vasco dois e, muitas vezes, não estava lá. Deixava-me ir. A malta, na altura, ficava a conversar, fumava umas ‘brocas’ e ‘roubava-lhes’ tempo a eles. Fico arrependido, por um lado, mas, por outro, não sei... Acho que tinha mesmo de fazer isto.
S. – Ser filho do Kalú tem os seus prós e os seus contras. Mas também há outras profissões complicadas.
F. – Não são as profissões, são os feitios. Eu tento ter sempre tudo organizado para estar o máximo de tempo possível junto do Sebastião [filho]. Tento dar-lhe o banho à noite todos os dias, ir levá-lo ao colégio, etc.
K. – Eu não era assim tão organizado. Mas fica uma mágoa grande, porque os tempos passam, eles crescem e o tempo não volta atrás...
F. – E que memórias tens da nossa infância?
K. – Tantas! E às vezes ainda me farto de rir quando vejo os vídeos caseiros que fazíamos, como aquele em que o Fred se ‘espetou’ de bicicleta e esfolou-se todo; e, depois, só se vê a cara do Vasco, agarrado às minhas pernas, a perguntar o que é que tinha acontecido. (risos)
S. – E na adolescência demos-te assim tantas dores de cabeça?
K. – Os pais querem sempre o melhor para os filhos mas, por vezes, definir esse caminho é difícil. A vida de músico é gira mas é complicada em termos familiares. Estou contente por eles terem seguido a música, mas sei que é uma área dolorosa e por vezes questionei-me se não seria mais seguro terem tirado um curso. Mas o Frederico agora já está com uma carreira mais estável e o Vasco está a começar. Os tempos também mudaram. Já não é como antigamente, em que eu dizia à minha avó que era músico e ela perguntava 'mas para sobreviver vais fazer o quê?'.
F. – E agora ficas orgulhoso quando nos vês no palco?
K. – Então não fico! Já tive, inclusivamente, a oportunidade de tocar com o Fred, nos Oioai e nos Yellow W Van. E o Vasco já me convidou para produzir o segundo disco dele.
S. – O nosso irmão Max [13 anos] também vai herdar de ti a música?
K. – Ainda está a descobrir as coisas. Se calhar vai ser como os irmãos. O Frederico fez com o irmão aquilo que eu fiz com ele. Bastou levá-lo aos ensaios de som e, naturalmente, ele foi começando a fazer a música dele.
F. – Os putos vêem e aprendem. O facto de convivermos todos uns com os outros dá-nos bagagem. Faz-nos aprender. Só eu já tentei com o meu filho – mas ele não parece estar para aí virado!
S. – Pois é... Já és avô!
K. – Esse é outro cromo! É o miúdo mais simpático e engraçado que eu conheço. Só é pena ser fanático pelo Sporting. Isso é que é mau! Mas o Sebastião é uma criança muito especial.
F. – Ser avô é ser pai duas vezes?
K. – Confesso que esta coisa de ser avô está a bater-me mais agora. Gosto imenso de estar com ele. Somos uma família muito grande, um verdadeiro clã – até nos chama os ‘Ferranos’ em vez dos ‘Ferreiras’, por alusão aos ‘Sopranos’. Há sempre um miúdo a nascer. Quando nos juntamos para um almoço de família, há sempre meia-dúzia de pequenotes. Eu já nem sei os nomes deles, nem quem é filho de quem. E quando o Sebastião está lá em casa é mais um miúdo como os outros, mas a verdade é que é um puto mais especial e está numa idade muito gira. Quando estou com ele acho que sou como os outros avós: sirvo para ‘estragar’, pois os pais é que servem para educar.
S. – É o verdadeiro Avô-Cantigas!
K. – Ele chama-me ‘o avô Kai’. Começou a chamar-me isso depois de ouvir o ‘Ai se Ele Cai’, dos Xutos.
S. – Nós, provavelmente, somos músicos porque crescemos neste meio. E tu como vieste aqui parar?
K. – Também houve alguma influência da minha mãe, que é brasileira, e, como se costuma dizer, ‘tocava piano e falava francês’. Havia muita música em casa e todos tocávamos piano...
S. – Mas depois cresceu e deixou de tocar, porque ficou com as mãos muito grandes. (risos)
K. – Depois também fui baixista e fiz parte do coro da missa das sete, na Igreja dos Jerónimos. O meu irmão é que tocava bateria e eu comecei a interessar-me por aquilo. Ainda cheguei a tocar com ele nos bailarecos. Nessa altura, lembro-me que chegava a ganhar sete contos por fim-de-semana, enquanto o meu pai ganhava 25 ao final do mês. Era uma rica vida. Até que respondi ao anúncio do Zé Pedro, para formar os Xutos. Resolvi arriscar, ir pelo caminho menos seguro... E corre bem até hoje.
S. – És feliz?
K. - Muito. Não trocava a minha vida por nada. Tive uma grande sorte com tudo: a família, a profissão, os amigos. Tudo.
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