Os mestres dos relvados

O campeonato chegou ao fim. Mas a bola da selecção nacional segue dentro de momentos. A menos de um mês do Euro’2008, os ícones do futebol da década de 60 ‘voltam’ aqui às quatro linhas

11 de maio de 2008 às 00:00
Os mestres dos relvados
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Troféus. Taças. Fotografias. A casa do antigo capitão do Sport Lisboa e Benfica (SLB) e de os 'Magriços' em Maputo está repleta de glórias irrepetíveis. Não há ninguém na cidade moçambicana que não conheça o 'Monstro Sagrado', homem de humildade invejável, figura paternal e serena. Os seus nervos apenas içam quando vê o Benfica a jogar. 'Já não vejo jogos em minha casa'. Coitadas das duas televisões que ficaram partidas com um cinzeiro. O sangue sobe-lhe a turbo nas veias. Até mesmo se o resultado é favorável: 'O Benfica ainda poderia marcar mais golos!'

'O senhor Coluna', como assim era chamado pelos adversários, nasceu em Inhaca, Moçambique, praticou boxe, atletismo e basquetebol, mas o futuro só tinha um nome: futebol. A astúcia de driblar veio ao mundo no mesmo dia que ele: 6 de Agosto de 1939. Entra com o pé direito no Benfica em 1954. Antes jogava no Grupo Desportivo de Lourenço Marques, um clube filial das Águias que em boa hora impediu que fosse contratado pelo Sporting. 'A vontade do meu pai foi mais forte'. O pai, benfiquista até mesmo depois da morte, facilitou o negócio à Luz. No ano seguinte, os encarnados ganharam o Campeonato Nacional. Não seria a última vez. 'Fomos dez vezes campeões'. Coluna lembra-se. Comove-se. A emoção é acalmada na esplanada de um clube onde não falha um final de tarde. Depois de um trago de uísque, a memória alarga: 'Marquei um bom golo...' 'Bom' é favor. Um tiro na baliza no estádio de Wankdorf (Berna), na Taça dos Campeões Europeus.

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'Eu não era avançado', mas o líder da selecção nacional que, em 1966, alcançaria o histórico terceiro lugar, tornar-se-ia num rematador de fino recorte. Aos 35 anos despede-se do Benfica. Joga no Lyon por uma temporada. Treina o Estrela de Portalegre. Enviuva. Após o 25 de Abril de 1974, vai viver para Moçambique. Casa pela segunda vez. Funda a Academia de Futebol na vila de Namaacha. Presidiu à Federação Moçambicana de Futebol. 'O Benfica está aqui'. No lado esquerdo do peito.

VICENTE LUCAS

Vicente Lucas tem, dizem ex-companheiros, um coração maior que o corpo. No restaurante do Belenenses o sentimento é unânime: ele foi o maior.

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O consagrado médio do Restelo, 71 anos enxutos, disfarça a timidez e pergunta: 'Quem é que vai entrar neste artigo?' Bastou dizer 'Mário Coluna'. 'Meu grande amigo e compadre. Jogaram no Acrobático'. Antes tinham corrido em terra batida.

O seu irmão, Matateu, extraordinário jogador do Restelo, espalhou o seu talento. Vicente apanhou o barco ‘Pátria’ no cais de Lourenço Marques e chegou a Lisboa a 30 de Junho de 1954. 'Eu tinha 19 anos. Vivi épocas muito bonitas'. A sua forma inigualável de desarmar os adversários e de passar por eles sem sequer lhes tocar a sombra é o seu selo. 'Ele era o maior', repetem antigos camaradas de campo. Vicente não gosta de elogios. Pede um cheirinho de uísque. Recorda. 'Não estava à espera'. O convite de Otto Glória, o treinador da Selecção, deixou-o surpreendido. Em 1966, no relvado inglês, uma das suas missões consistia em imobilizar Pelé. No encontro com o Brasil, Vicente aplacou o ídolo brasileiro com o pormenor de nunca ter cometido falta. O futebol, infelizmente, findaria pela porta trágica. Em Outubro de 1967 sofre um acidente de automóvel que viria a acelerar o divórcio. Um ninho de vidros causou-lhe um banho de sangue no rosto, mas ainda assim Vicente não acreditava na gravidade da situação. 'Mas estava errado, ceguei de uma vista'.

O Café que dá de caras com o Estádio de Alvalade. Hilário da Conceição não consegue ficar longe do literal relvado verde. Está por explicar, mas é verdade que de África chegava a fina-flor de astros. Hilário não teve que esperar muito tempo para que o Sporting o chamasse, em 1958. 'É provável que eu tenha tido sorte'. A sorte não teria dado tanto mérito. Uma senhora que espreita a conversa assegura que ele fazia mais do que um avião. Corria de frente, de costas, fintava, defendia, rematava sem largar a íris da bola, conquistou três Campeonatos de Portugal, três Taças de Portugal e uma Taça das Taças, que lhe deixou marcas: 'Não joguei na final porque estava lesionado'. Em 1966, a tíbia já estava mais do que afinada. 'E há muita gente que se esquece de um detalhe'. Pormenor gigante. Foi considerado o melhor defesa-esquerdo do Mundo. A final da Taça de Portugal de 1973, conquistada pelo Sporting, foi o seu derradeiro jogo. Fica o responsável pela formação dos juvenis leoninos e treinador-adjunto da primeira categoria. Mas o sol não demorou a trazer nuvens: 'Desentendi-me com João Costa'. No dia do desaguisado, os deuses estavam do seu lado: 'Apareceram dois senhores que me perguntaram se eu conhecia alguém que pudesse treinar o Sporting de Braga'. Hilário conhecia a pessoa certa: o próprio.

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SUBSTITUIÇÕES INEXISTENTES

Pelo facto de as substituições serem inexistentes, Fernando da Cruz, defesa-esquerdo do Benfica, no Mundial de 1966 ficou no banco. 'A malta pensava que só ia passar a primeira fase'. Inclusive, a 'malta' – os dirigentes – só tinha levado bacalhau para uma semana. Engano. Os 'Magriços' pareciam foguetões. 'E lá veio mais bacalhau... Chegaram a pensar que aquilo dava sorte'. Até que as espinhas engasgaram a esperança no Estádio do Wembley. 'Mas ali houve gato. Todos os outros jogos tinham sido em Liverpool menos aquele'.

Para Fernando da Cruz, natural do Bairro da Liberdade, 68 anos, que desde a reforma reside com a mulher em Cabanas de Viriato, esse detalhe ‘mia’ suspeição. Não participou na mais disputada competição do Mundo mas desde que, em 1956, iniciou a sua estrondosa vereda futebolística nos ‘principiantes’ do Benfica viveu um corredor de glórias. Alcançou duas Taças dos Campeões Europeus, oito Campeonatos e três Taças de Portugal. Fernando da Cruz confessa que a afamada mística do Benfica contribuiu para que os objectivos fossem compridos. Quem o viu jogar testemunhou a sua impressionante descontracção em jogos difíceis e a sua abnegação em campo. Em 1968 ruma a França e à Venezuela para ser treinador-jogador. Depois parte para os Estados Unidos da América, país onde treinou inúmeras equipas até ter trocado o futebol pelo trabalho fabril nos EUA: 'A vida não dava mesmo para brincadeiras'.

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ANTÓNIO SIMÕES

António Simões, 65 anos, também jogou e treinou na terra do Tio Sam mas antes foi um caso sério do futebol. O comentador da Sport TV estreou-se no Almada, o Sporting ainda apareceu na corrida à sua contratação, mas é o Benfica que, em 1959, o apanha. Com apenas 20 anos, a Europa classificou--o 'o melhor extremo-esquerdo'. No seu brilhante palmarés consta uma Taça dos Campeões Europeus, 4 Taças de Portugal, 11 Campeonatos Nacionais. 'Ainda hoje me lembro'. Do sermão de Otto Glória. No balneário, o técnico brasileiro não poupou o calão para remendar o desempenho na primeira parte do jogo contra a Coreia do Norte. Remédio santo. Simões garante que um jogador de futebol que queira tratar por tu a glória precisa de 'ter engenho, sentir brio em jogar bem'. Sem humildade e trabalho ninguém é artista da bola. Se tantas vezes soube qual iria ser o mínimo passo de Eusébio às muitas horas de treino o deve. E porque o futebol é uma arte, havia jogadas que ficavam na manga. Uma delas, Simões descreve-a: 'Eu ia com a bola em direcção aos defesas de uma linha de quatro jogadores, Eusébio pisou a esfera, deu de calcanhar, seguiu, eu piquei a bola por cima dos defesas e coloquei-a aos pés do Pantera Negra, que acerta na baliza.

EUSÉBIO

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Para a figura emblemática do SLB, Eusébio, 'o futebol é uma festa'. O eterno 'embaixador do Benfica', que chorou baba e ranho diante da derrota em Wembley, ao recordar essa fantástica jogada de perícia parece que está em campo. 'Eu acho que cumpri a minha missão como jogador'. O dono do restaurante Q.B., em Lisboa, seu compadre, conhece-o de ginjeira. Sabe de cor as luzes do afilhado: 733 golos. Recebeu duas Botas de Ouro, sete Botas de Prata, foi o melhor marcador nacional e o melhor marcador do Campeonato do Mundo de 1966. A sua fama internacional nasce no jogo da segunda final europeia do Benfica, em 1962, ao marcar dois golões aos madrilenos.

Desde que chegou à Luz, em 1960, com 17 anos, vindo de Moçambique, Eusébio, casado com Flora e pai de duas filhas, apenas deu alegrias, muitas, muitíssimas, aos adeptos. 'É uma enorme inspiração ter sentido tantas emoções'. Multidões a enrouquecer pelo seu nome. Milhares e milhares de criaturas em êxtase. O futebol é um acto cultural, contemplação, festejo, mas Eusébio é uma estrela cintilante nos céus do universo do futebol. E os adversários massacravam-no. Operado sete vezes aos joelhos, nunca deixou de jogar. Em Setembro de 1973, o Benfica dedica-lhe uma festa de despedida. Dois anos depois, aventura-se nos EUA, mas regressa após seis meses. Ainda joga pelo Beira-Mar, com a condição ‘sine qua non’ de não marcar golos na baliza encarnada, e pelo U. Tomar. Confrontado com a fraca prestação do seu clube na actual temporada, Eusébio corta a pergunta: 'Eu não vou falar do Benfica!' Tem pressa. As suas mãos esperam pela manicura. E os pés pela calista.

É na sua casa no Barreiro que José Augusto, um avô babado, o mais famoso extremo-direito do SLB, afirma: 'O plantel do Benfica parece uma Sociedade das Nações'. Jogadores de vários países, e sem lhes tirar o mérito, essa evidência ocasiona uma descaracterização. 'Já não existe o mesmo sentimento que nós tínhamos'. Se perdiam com o Porto, ninguém ia jantar ao vagão do comboio: 'Sentíamos vergonha'. A sua ligação com o clube da Luz inicia-se, em 1959, quando o Benfica vai à sua terra, o Barreiro, homenagear o seu pai, que sofria de tuberculose. Tentado por vários clubes – alguns até lhe prometiam fortunas –, José Augusto não esquece a gratidão, e aos 20 anos adere ao SLB. Jogador correcto – apenas foi expulso uma vez –, um génio que fazia dribles iguais a valsas nos finais dos anos 60 arrumou as chuteiras e passa a técnico do Benfica. Orientou a selecção nacional na Minicopa de 1972 e nesse mini- mundial leva Portugal à final. Actualmente é empresário e um homem bastante dedicado à família: 'Enquanto jogador, quase que não vi os meus filhos crescer'.

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Hoje o Futebol Clube do Porto (FCP) destaca-se, e à larga, no pódio, o que nos anos 60/70 era impensável. Contudo, Alberto Festa, o então jovem que iniciara a sua paixão pelo futebol no Tirsense, não deixou passar despercebida a sua participação no Mundial de 1966 e foi o único elemento do FCP presente na fase final. 'Joguei contra a Bulgária, Inglaterra e União Soviética'. Foi ele – defesa-direito disciplinado cuja espontaneidade em jogo ainda hoje não tem paralelo – que no princípio da década de 60 tirou uma grande dor de cabeça ao FCP substituindo o veterano Virgílio Mendes. Apostaram, e bem, no rapaz nascido em Santo Tirso em 1939. Nesse mundial totalizou a sua 19.ª internacionalização e, apesar do seu corpo robusto, um joelho veio ressentido. 'Eu estive três anos sem jogar, porque os médicos portugueses ainda pioraram'. A medicina em Barcelona, mais certeira, tirou--lhe as dores e deu-lhe o aval para de novo jogar. 'Mas eu já tinha 30 anos e, já se sabe, a idade não perdoa'. Voltou ao Tirsense, onde dá por concluída a sua senda de jogador. De seguida, e por oito anos, treina a equipa juvenil do FCP. Encerrou a sua ligaçãoaofutebol comosecretário-técnico do Tirsense, o 'clube do coração'.

MEMÓRIAS DOS ALTOS E BAIXOS DA SELECÇÃO DAS QUINAS

Nascida em 1921 por vontade de um grupo de jogadores como Jorge Vieira, António Pinho, Cândido de Oliveira e Ribeiro dos Reis, a 'equipa das quinas' – ou 'os negros', por equipar de camisola preta – faz o seu primeiro jogo (derrota em Espanha por 3-1) antes de existir um campeonato nacional no País. Em Maio de 1925, a União Portuguesa de Futebol, embrião da Federação Portuguesa de Futebol, nomeia António Ribeiro dos Reis seleccionador nacional. A equipa brilha nas Olimpíadas de Amesterdão (1928) mas nos primeiros 60 anos de existência apenas consegue uma participação numa grande competição internacional (1966). Nas décadas seguintes, pouco se distingue até aos anos 80. Depois da prestação no Euro’2004 e no Mundial de 2006, as esperanças estão apontadas para a Áustria e Suíça, anfitriãs do Euro’2008, a disputar entre 7 e 29 de Junho.

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O 'BOM GIGANTE'

Tal como Eusébio, Coluna e Simões, Torres foi um dos poucos a disputar os seis encontros da qualificação para o Mundial de 66 e efectuou todos os desafios da fase final da prova, tendo marcado três golos. A carreira do futebolista com a camisola nacional terminou a 13 de Outubro de 1973, num encontro entre Portugal e Bulgária (2--2) para o Campeonato da Europa, o mesmo jogo que assinalou a despedida de Eusébio e Simões. Torres, o ‘gigante’ natural de Torres Novas, representou o Benfica entre 1959 e 1971, onde se destacou com o seu imponente jogo aéreo, sagrando-se nove vezes campeão nacional. Conduziu os destinos da equipa portuguesa num Mundial do México, em 1986. Concluiu a sua carreira no Estoril-Praia, em 1980, com 42 anos. Há uma década o Alzheimer silenciou o homem. Mas não a lenda.

Na década de 60, o País e o Mundo andam a velocidades bem diferentes. As convulsões políticas, sociais e culturais que acontecem lá fora são silenciadas pelos tempos de uma ditadura enformada por três efes: Fado, Futebol e Fátima.  

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- A urbanização é um privilégio de poucos. Em Lisboa a população rural corresponde a 35%. Mais de 85% no resto do País

- A classe alta representa cerca de 0,5% da população. A classe média é praticamente inexistente

- Cada mulher tem em média 3,5 filhos

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- Surgem os primeiros supermercados

- Regista-se um grande fluxo de emigração

- Há apenas 41 mil indivíduos com formação superior. Agronomia e Direito são os cursos preferidos

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- A elite industrial é predominantemente familiar

- Só os alfabetizados – e homens – ou viúvas exercem o direito de voto

- Na escola, prevalece a separação dos sexos

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- A bica custa 15 tostões

- A década é marcada pelo início da Guerra Colonial

- Grupos como o Quarteto 1111 ou os Sheiks dão um ar de rock ao país do Fado, que tem em Amália Rodrigues o principal cartão de visita

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- Em 1966 é inaugurada a Ponte sobre o Tejo, então ‘Ponte Salazar’

Na década de 60, o País e o Mundo andam a velocidades bem diferentes. As convulsões políticas, sociais e culturais que acontecem lá fora são silenciadas pelos tempos de uma ditadura enformada por três efes: Fado, Futebol e Fátima

- Drogas, a perda da inocência, a revolução sexual e os protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos governos alimentam o Verão do Amor, o espírito Woodstock e a cultura Flower Power, ao som de grupos como os Beatles

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- Politicamente, a década é marcada pela Guerra do Vietname, pela Guerra Fria, pela Revolução Cubana (com a chegada de Fidel Castro ao poder), pela Revolução Cultural Chinesa e pelo assassínio de J.F. Kennedy

- A revolução é também comportamental, com o surgimento do feminismo e dos movimentos civis em favor dos negros e dos homossexuais

- O Papa João XXIII abre o Concílio Vaticano II e revoluciona a Igreja Católica

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- Em 1969, Neil Armstrong pisa a Lua e dá um pequeno-grande passo para a Humanidade

- O aparecimento da televisão a cores muda a forma de ver o Mundo

- Em 1964, a IBM lança o circuito integrado, ou chip, e surge a Arpanet, que se tornaria o embrião da internet

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