PARA ALÉM DOS CABEDAIS
Este fim-de-semana, são mais de 25 mil os que se reúnem na 22ª concentração de motos de Faro. Os quatro dias do festival prometem altas rotações, escapes a faiscar e música pela noite dentro. Mas há quem adore motos e não se reveja em nada disto.
Colete de ganga deslavada com botões cromados, calças de cabedal, cabelo comprido ao vento e barba por fazer. Ou então: amigo de poucos banhos, lata de cerveja sorvida e atirada para a berma da estrada, um cadastro do tamanho dum cartaz de cinema e, na pendura, uma rapariga de calções curtos que anima o galgar do asfalto. Este fim-de-semana estão concentrados em Faro mais de 25 mil motoqueiros para aquela que é a maior manifestação do género. E da fama não se livram: os filmes têm uma certa tendência (infeliz) para mostrar os condutores de motos como delinquentes e vândalos que se deslocam em grupo, deixando atrás de si um rasto de destruição. E se por vezes a ficção não anda longe da realidade – na Dinamarca, país inesperado no que toca a faltas de civismo, bandos rivais de‚ 'motards' causam regularmente distúrbios numa luta territorial, com histórias de tráfico de droga e prostituição ilegal – o certo é que a fama é injusta. Na verdade, a esmagadora maioria dos motociclistas são pessoas comuns que optam pelas duas rodas por razões de celeridade, prazer e independência, e que têm alguma coisa a ensinar aos seus colegas de quatro rodas.
Entre os motociclistas – estejam eles de fato e gravata ou vestidos de cabedal dos pés à cabeça – há uma solidariedade e entre-ajuda que os automobilistas desconhecem. E quem anda de moto tende a ter um maior cuidado com o consumo de álcool: a condução das potentes máquinas exige os sentidos bem apurados. Qualquer motociclista sabe que a sua vida depende do cumprimento das regras básicas de segurança. Só que, quando há grandes concentrações, há quem não resista ao exibicionismo.
HÁ QUEM TENHA MEDO DELES
Depois de concluídas as obras na estrada de acesso ao aeroporto de Faro, este ano os 'motards' têm pela primeira vez quatro faixas de rodagem, o que faz temer excessos de coragem, manadas de ‘cavalinhos’ e alucinantes velocidades. José Amaro, presidente do Motoclube de Faro – que organiza a concentração – tem consciência do problema : "Temos falado com as pessoas no sentido de serem responsáveis. Mas o maior problema aqui não são as motos grandes, são as motorizadas do pessoal que vive na zona".
Os serviços de urgência e a Polícia estão em alerta máximo e muitos moradores opõem-se ao espectáculo que durante quase uma semana torna a circulação, nas estradas de Faro e arredores, difícil e angustiante. “São noites inteiras de motores a uivar em acelerações assustadoras”, queixa-se Orlando Sidónio, que vive no campo, próximo de uma pequena estrada a nove quilómetros do local da concentração.
Há mesmo quem opte por fazer compras para a semana inteira para não ter que sair de casa. "É um alívio quando isto acaba e a cidade volta à normalidade", desabafa um popular, que prefere manter o anonimato.
A verdade é que ninguém associa a concentração de motoqueiros ao turismo de qualidade. E não é fácil compreender a lógica de um megaconvívio destas dimensões, que decorre a escassas centenas de metros do aeroporto de maior movimento do País nesta altura do ano.
Já para o comércio e a restauração, o evento é uma bênção. A cidade de Faro é um ponto de passagem e tem poucos visitantes – os milhares de motociclistas asseguram o momento mais alto da economia da cidade. Por isso, venham eles.
Gonçalo Macieira - Um resistente de fato e gravata
“Uma vez estava a andar a pé na rua, caí e parti o maxilar. De moto, os pequenos acidentes que tive nunca me causaram ferimentos”.As estatísticas não confirmam esta experiência pessoal, mas Gonçalo Macieira, um jovem advogado de 30 anos que vive e trabalha no centro de Lisboa, anda de moto o ano inteiro. “Desde que o tempo não esteja muito mau, não toco no carro”, afiança.
Gonçalo começou a andar de moto com um grupo de cinco amigos aos 18 anos mas hoje em dia anda quase sempre sozinho. “Já todos trocaram as motos por um carro”, lamenta. Aos fins-de-semana, nos seus habituais passeios, vai até Sintra ou Cascais. Mas a maior viagem que fez na sua moto foi até Marbella, no sul de Espanha. A conduzir actualmente uma Honda Shadow 750, o seu grande sonho é fazer uma viagem de São Francisco até Los Angeles, numa Harley Davidson, claro. É que embora os cabedais e as concentrações não façam parte do seu imaginário, a lendária marca de motos denuncia, desde logo, este espírito ‘motard’.
José Amaro - O Presidente
José Amaro, 50 anos, é uma figura conhecida e muito respeitada na cidade. Não é um rebelde, nunca foi um desordeiro. Calmo, reservado, a sua autoridade impõe-se sem ter que levantar a voz. O tipo de pessoa que ajuda uma velhota a atravessar a rua mas que, se for preciso, também consegue separar uma rixa de bêbados, com uma mão, sem pestanejar.
O presidente do Motoclube de Faro é a alma das gigantescas concentrações de motos que anualmente transformam Faro na capital mundial das duas rodas. Conduz uma Kawasaki 1000 ZL, dirige o Motoclube de Faro com mais de 400 sócios e foi sócio fundador da federação que agrega 200 associações de motociclistas espalhadas por todo o País. Nunca teve um acidente. Gosta do convívio com os motoqueiros e a paixão de andar de moto é vivida em grupo, com os amigos, partilhada.
Comerciante, e filho de comerciantes, José Amaro trabalha desde a adolescência atrás do balcão na sua loja, mas por paixão ao motociclismo, tornou-se um organizador de talento. Este ano, a concentração vai na sua vigésima segunda edição e na semana passada já havia mais de 25 mil inscrições. Não há muitas pessoas no País com a sua experiência e capacidade de organização. O trabalho e a responsabilidade da concentração são enormes. “Tenho amigos em todo o mundo. Essa é a principal recompensa”.
Flávia Antunes - Puro sangue da Estrada
“Detesto a ideia de trabalhar presa atrás de um balcão”, dispara Flávia no seu português açucarado. Veio há pouco mais de dois anos do Brasil, de Belo Horizonte, para Lisboa, tem 23 anos e é estafeta numa Honda CB 500 preta, comprada em segunda mão. Quando desmonta do seu veículo de trabalho, percebe-se que a moto é um pouco mais do que isso: sem olhar, passa a mão pela mota como se estivesse a acariciar o dorso de um animal.
Flávia faz parte daquela legião de pessoas que, no trânsito caótico e engarrafado das grandes cidades, asseguram a entrega atempada de cartas, documentos, encomendas, remédios ou pizzas. E ela adora o que faz. Veio para Portugal porque o namorado já cá estava – “Passado seis meses de separação não aguentei, fiz as malas e vim atrás dele” – e pelos vistos, o amor arde mais que gasolina. No Brasil era técnica de edificações, formada. Por cá, 'virou' estafeta, a profissão do namorado. A liberdade de não estar presa a um local de trabalho – de “ser senhora do meu nariz“, como gosta de dizer - tem um preço: um trabalho duro, oito a nove horas e 200 a 300 quilómetros por dia. Os riscos da profissão não são de desprezar e muitos colegas de Flávia já tiveram acidentes graves. A própria confessa: “No início, trabalhava com uma Boss Casal da empresa e caí uma série de vezes”. Este fim de semana, Flávia Antunes e mais de 100 amigos e colegas brasileiros vão estar na grande concentração em Faro.
Jorge Almeida - O aventureiro solitário
Jorge Almeida, de 62 anos de idade, vive em Faro e anda de moto desde a infância. Mas enquanto junto ao aeroporto os motociclistas de todo o mundo se reúnem num festival de escapes a faiscar e música pela noite dentro, Jorge refugia-se no campo, em Figueira de Castelo Rodrigo. “Não tenho nada contra as concentrações. Não aprecio é estar no meio da confusão”. Este ano, Jorge voltou de uma viagem solitária de quatro meses na Austrália, país onde as proporções se agigantam: as suas fronteiras davam para acolher 85 vezes Portugal.
A sua BMW 1150 GS queimou 26 mil quilómetros de estradas australianas. Mas o dono já viajou por vários países do Norte de África e à volta de todo o Mediterrânio, bem como pela Europa. Nos últimos 15 anos fez mais de 600 mil quilómetros em duas rodas - uma ida e volta à lua. Quando este fim de semana os motoqueiros desfilarem em Faro , a BMW de Jorge Almeida ainda roda vinda da Austrália. “A seguir gostava de ir aos Estados Unidos, mas não sei se vou ter dinheiro para isso.” É que mesmo com um orçamento apertado, uma aventura como a australiana não fica por menos de 15 mil euros.
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