Por outro caminho para a escola

O ano lectivo traz preocupação com a mudança curricular, mas também com a crise. As famílias alteram rotinas

02 de setembro de 2012 às 15:01
Regresso às aulas, Manuais escolares, Livros escolares, Escola Foto: Vítor Mota
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O conselho de um pediatra, para quem a "melhor escola é a que fica perto de casa", alertou Carlota Themudo para a necessidade de se antecipar à crise. Mãe de Maria do Carmo, de 16 anos, de João Maria, 8, e de Isabelinha, 6, esta técnica oficial de contas, de 42 anos, casada com um engenheiro civil, mudou de hábitos antes de sentir no bolso o aumento do custo de vida.

Neste momento, os três filhos estudam perto de casa, em escolas públicas. "A mais velha andou numa escola privada até ao 8º ano, mas os outros foram logo para escolas do Estado e no nosso agregado familiar houve muitas mudanças. Eu e o meu marido estamos na área da construção civil, onde a crise é particularmente aguda, e fomos cortando em algumas despesas extras para não sentirmos tanto, nem nós nem os filhos", diz.

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Prescindir da empregada doméstica a tempo inteiro, da carrinha que ia buscar os mais novos à escola e tentar escolher actividades em locais mais baratos foram os passos já executados.

"O João Maria está no futsal na junta de freguesia, onde só paga o equipamento. Houve experiências que a mais velha teve que os outros não tiveram, mas acho que não perderam nada. Estou até mais contente com a escola pública, acho os professores e pais mais atentos. E não sou caso único. Noto que as pessoas estão a acautelar-se", diz.

Como a família Themudo, muitas outras estão a mudar de hábitos para contornar a crise e manter a aposta na educação dos filhos. Escolha de estabelecimentos de ensino mais perto de casa, reutilização de livros e de materiais e o regresso da marmita escolar são alguns dos truques que ajudam a equilibrar as contas ao fim do mês. Ainda assim, o peso da educação é grande no orçamento familiar. E as mudanças de ciclo contam a dobrar, garantem os pais.

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ESPÍRITO DE ENTREAJUDA

Cristina Falcão, 44 anos, consultora na área de gestão, já gastou 335 euros só na aquisição dos livros de João, de 12 anos, que este ano lectivo entra para o 7º ano, e de Rita, seis anos, que se aventura nas primeiras letras e números do 1º ano do ensino básico (a antiga primeira classe). "É mais do que costumo gastar, devido à entrada no 7º ano. Isso faz imensa diferença, pois pagávamos cerca de 70 euros e agora, com mais disciplinas, é uma loucura." Depois, adianta, "ainda virá a soma do material escolar, lápis de cor, canetas de feltro, réguas e outros, em que costumo gastar 160 euros. Com os 335 para manuais e visitas de estudo, tudo somado são para cima de 500 euros por ano", frisa.

Por sentir de perto os efeitos do menor poder de compra das famílias, Cristina Falcão, presidente da Associação de Pais do Jardim de Infância e Escola Básica 1 do agrupamento de escolas Vergílio Ferreira, em Telheiras, Lisboa, defende sistemas de ajuda para todos, que partam de encarregados de educação e de educadores.

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"Temos um placard, na escola, onde incentivamos a troca de livros e os professores também tentam incutir esse hábito nas crianças. Os meus filhos, por exemplo, não escrevem nos livros. Mas muitos não podem passar para outros anos lectivos devido ao acordo ortográfico e porque os programas mudam. Dos manuais que o meu filho usou no 5º ano, só três vão ser aproveitados por outra menina, mas já não é mau. Na primária, os livros também mudaram há dois anos, com a introdução do novo programa de matemática. No entanto, noto um esforço para alterar essa situação", frisa.

O que mais choca Cristina é ver o crescendo de famílias em dificuldades. "Há muitos agregados da classe média com problemas financeiros, seja pelo desemprego ou por situações de divórcio, e os pedidos para o serviço de acção social escolar, SASE, aumentam todos os anos. Temos arquitectos e designers a pedir apoio para os filhos porque não têm outra possibilidade de fazer face às despesas, e muitas vezes os pais ficam de lágrima no canto do olho porque os livros não chegam a tempo." Já os alunos não notam diferenças. "Os outros ficam tristes ao ver os que têm SASE receber material novo quando o deles já está estragado. As crianças têm essa vantagem de ver as coisas de outra maneira", diz.

MARMITA NA ESCOLA

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Na Serra das Minas, Rio de Mouro, Sintra, Jessica, de 14 anos, e Raquel, de 19 anos, sempre contaram com esse apoio estatal, pois os baixos rendimentos da família colocam-nas no escalão A, onde tudo é gratuito, desde manuais a refeições. "Os livros chegam a horas, porque o agrupamento tem um acordo com uma livraria local, e como elas são muito poupadinhas no material, reutilizando de um ano para o outro, nunca sentiram falta de nada" diz a mãe, Maria José Marinha, de 38 anos, que nunca gastou mais de 50 euros por ano em "coisas da escola".

O orçamento apertado, a que aos 600 euros que Maria José recebe do emprego temporário na Junta de Freguesia de Rio de Mouro se somam apenas o que o marido vai conseguindo nas obras, obriga a família Marinha a uma gestão mais do que apertada. Porém, os estudos têm prioridade nesta casa ensolarada.

"Eu e o meu marido só estudámos até ao 4º ano e queremos mais para elas", diz Maria José. Jessica ingressa no 10º com a intenção de vir a ser técnica de multimédia. Raquel fará uma pausa nos estudos, "para procurar trabalho e juntar dinheiro de modo a pagar a universidade no próximo ano lectivo". Com o curso de técnica de turismo ambiental e rural, da Escola de Colares, pretende seguir a licenciatura nessa área. "Vamos ver, acho que vou conseguir", diz, mostrando a confiança de quem está habituada a dar a volta às adversidades.

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Contas bem feitas e sorrisos estampados no rosto, levam a vida a fluir sem dramas na casa dos Marinha. Os computadores chegaram com o apoio do programa ‘e-escolas’, a mochila de Jessica, "cara, mas de qualidade", já dura há três anos, as refeições são feitas em casa e o caminho para a escola faz-se a pé. Raquel, que nos últimos três anos estudou em Colares, conta, entre sorrisos, que aderiu à moda: "Agora usa-se marmita".

"Deixava a comida feita à noite, porque me levantava muito cedo, levava nas caixas térmicas e aquecia na escola. Comia o que gostava e não gastava dinheiro", frisa. Também no transporte, optou pelo mais barato: "Pagava um passe de 60 euros, mas logo que fiz 18 anos tirei a carta, guio o carro do meu primo e juntei-me com cinco amigos para ir à escola em Colares. Dávamos 25 euros cada um para a gasolina. Sai mais barato e temos mais mobilidade, porque o passe do comboio só dá até ao Rossio, não chega para os transportes dentro de Lisboa."

MAIS CONTENÇÃO

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Poupar nos passes e fazer o percurso casa-escola a pé é também o objectivo que levou Rui Cruz a mudar os três filhos de agrupamento escolar. Com 38 anos, desempregado, vai gerindo os 1200 euros de rendimento mensal com parcimónia. Quando o fundo de desemprego acabar, e se a família ficar a depender apenas dos 600 euros que a mulher, Sandra, assistente técnica da câmara, leva para casa, a situação terá de ser revista. Até lá, é fazer contas todos os dias.

Rui Cruz sentiu um rombo com a entrada do filho mais velho, Miguel, no 10º ano, na área de ciência e tecnologia. Bom aluno, foi aceite na Escola Bartolomeu Dias, que através de um protocolo de associação garante o ensino secundário em Santa Iria, onde a família reside.

"As mudanças de ciclo implicam custos adicionais e só para o Miguel já gastámos 350 euros em livros." Ainda por comprar estão os livros para Maria João, de 13 anos, que vai para o 8º ano, e para Alexandre, com 9, que este ano ingressa no 5º ano: outra mudança grande.

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"Para os três, costumamos gastar cerca de 150 euros por ano em material, porque recuperamos muita coisa, desde canetas de feltro, marcadores, borrachas, estojo, mochilas, réguas, esquadro, compasso. As refeições são na escola e a do meio almoça em casa dos avós, o que é uma grande ajuda."

Reutilizar os livros tem sido mais difícil, diz Rui Cruz, presidente da Associação de Pais do Agrupamento de Escolas de Sacavém e Prior Velho. "Temos lutado para que demore mais tempo a utilização dos livros, para uniformizar também a nível de escolas, pelo menos nas públicas, o que ajudaria imenso os orçamentos familiares".

MANUAIS PARA SEIS ANOS

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A partir deste ano, e segundo informação das editoras, os manuais terão uma vigência de seis anos, mas até 2015 as alterações inerente ao acordo ortográfico obrigam a renovar manuais.

Segundo o calendário da Direcção-Geral de Ensino, no ano lectivo de 2011/2012 mudaram os manuais para o 1º e 2º anos de escolaridade, os da área curricular disciplinar de Matemática do 4º ano de escolaridade, todas as disciplinas e anos de escolaridade do 2º Ciclo do Ensino Básico, Língua Portuguesa do 7º ano de escolaridade e de Matemática do 8º ano. Para este ano, o calendário indica alterações no 3º ano de escolaridade, nas disciplinas de Educação Física, Educação Musical e Educação Visual e Tecnológica do 5º ano de escolaridade, disciplina de Língua Portuguesa do 6º ano de escolaridade, todas as disciplinas do 7º ano de escolaridade (excepto Língua Portuguesa), Língua Portuguesa do 8º ano e Matemática do 9º ano. O programa continua com alterações regulares até ao ano lectivo de 2014 e 2015, inclusive, e, entretanto, professores e família fazem o que podem.

"Promovemos a partilha de livros, alertámos o agrupamento para a criação de uma bolsa de livros, onde os encarregados de educação podem depositar os manuais que os filhos vão deixando para trás, de modo a que sejam depois usados por outros", diz Rui Cruz.

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Em casa, usar e reutilizar é regra de ouro. Seja nos materiais, nos livros ou nos extras.

"Cortámos em muita coisa. Temos mais controlo na roupa, compramos menos quantidade e tentamos reutilizar ao máximo o que já tínhamos de outros anos. Quando os filhos crescem temos mesmo de comprar, mas procuramos preços mais em conta. Não quer dizer que não tenhamos as coisas, acabamos sempre por conseguir, mas compramos marcas mais baratas, quase sempre em época de saldos, e usamos até ao máximo. Se calhar, há uns anos não olhava tanto ao preço e desde que gostasse comprava, agora há mais contenção."

MUDANÇA NO PRIVADO

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É também com cautela que Rodrigo Queiroz de Mello, director executivo da AEEP (Associação de Estabelecimentos de Ensino Privado), vê o futuro.

"No ano anterior a redução no sector não foi tão profunda como se esperava e sofremos uma quebra de 3,6%, mas não temos números para o próximo ano, que poderá ser mais difícil."

"O que notamos", frisa, "não é tanto o fecho de estabelecimentos mas a dificuldade, por parte das famílias, em manter os filhos no privado. Os estabelecimentos de ensino também se estão a adaptar – aceitam pagamentos faseados e criam programas internos de apoio de modo a ter mais alunos a pagar menos". Ainda assim, "muitas famílias procuram alternativas mais baratas e onde há cortes significativos", diz, "é nas actividades extracurriculares, transporte e alimentação".

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É apenas nesses ‘extras’ que Paula Ferreira, bancária, 35 anos, e o marido, técnico de informática, têm encargos com a educação da filha Mariana. Com seis anos, ingressa este ano lectivo para o 1º ano do 1º ciclo na Escola Básica de Telheiras, e o seu futuro condicionou a rotina familiar. "Na hora de escolher casa, optámos por este bairro, onde há boas escolas públicas. Cresci e estudei aqui e licenciei--me em Gestão", frisa Paula. A filha, Mariana, vai almoçar na escola [onde a refeição diária custa cerca de 1,35 euros e o lanche 75 cêntimos], faz o percurso a pé e ainda tem acesso ao ensino de música.

Os gastos, retirados aos dois mil euros mensais do orçamento familiar, são em livros e materiais: "Gastei 50 euros em manuais e 35 na mochila. Acho exagerado, não tinha a noção, mas sei que é um investimento. Agora, em Setembro, vem a compra dos materiais e isso vai somar mais algum dinheiro."

Para acautelar o futuro, o casal faz poupanças com o que os gastos mensais deixam de fora. "A Mariana anda na ginástica e na natação, mas ficam por aí as actividades extracurriculares", frisa. "Sabemos que o investimento na educação obriga a algum esforço".

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NOTAS

TROCA

Em Agosto abriram 50 bancos de recolha de livros escolares, constituídos por voluntários.

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LIVROS

Cada ano lectivo movimenta dez milhões de livros, dos quais apenas 15% são reutilizados.

PREÇO

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O preço de manuais escolares subiu 2,3%, diz Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL).

MANUAIS

Até ao 4.º ano, os manuais custam 60 euros. No 5.º ano, 170 euros e no 7.º ano sobem para 326 euros.

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CUSTOS

Nos 10.º, 11.º e 12.º anos, conforme a área de ensino, os manuais custam cerca de 300 euros.

MESADA

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Segundo a Cetelem, a mesada dos estudantes varia entre 10 e 23 euros, menos 7 euros do que em 2011.

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