“Quando o Alouette aterrou, dezenas choravam o amigo”
"Na zona militar norte, o camarada António foi mortalmente atingido. No leste, perdemos mais dois amigos em combate."
"No dia 14 de janeiro de 1971 embarquei no paquete ‘Príncipe Perfeito’ e cheguei a Luanda no dia 22 de janeiro, tendo ficado sedeado no ATmA - Agrupamento de Transmissões de Angola, onde de imediato comecei a trabalhar na rede do teatro de operações da ZMN-zona militar norte -, que incluía os postos de comando das cidades de Carmona, São Salvador e Cabinda.
Porque todas as equipas de transmissões das companhias formadas na então província de Angola tinham que ter dois cabos radiotelegrafistas e porque supostamente havia escassez de meios humanos, em julho de 1971 eu e outro camarada fomos transferidos para a Companhia de Caçadores 1102, formada no RI20 de Luanda, mais tarde colocada, por quatro meses, na zona de baixa intensidade do Zenza do Itombe. Em outubro de 1971 fomos transferidos para a povoação do Bembe, localizada na zona militar norte.
Aqui, numa das constantes operações, com confrontos pontuais, realizadas pelos nossos grupos de combate com a duração de três dias e duas noites dormidas no capim, o nosso saudoso camarada António Amadeu da Fonseca Frade foi mortalmente atingido por uma rajada de Kalashnikov. Este grupo, do qual o António fazia parte, já andava perdido na floresta no dia da emboscada e assim permaneceu nos quarto e quinto dias sem rações de combate e sem comunicações, uma vez que tinha esgotado as baterias do emissor/recetor RACAL TR 28.
Ao quinto dia, o resgate do corpo do António foi feito por um grupo helitransportado, do qual eu fiz parte, num local com pouca proteção, uma vez que a maior parte dos camaradas já tinham sido evacuados pelos meios aéreos.
Quando o heli aterrou no local do resgate senti medo pela primeira vez, pelo facto de estarmos ali no meio do nada, da selva e dependendo unicamente da máquina que nos transportou. As aves cantavam de forma muito sincronizada, mas as aves não cantam assim, sabíamos que os guerrilheiros imitavam o canto das aves para comunicarem entre si.
Sentíamos que os guerrilheiros estavam por perto, mas não nos flagelaram, talvez por saberem que estávamos a resgatar o corpo do nosso camarada, porque também sabiam respeitar os mortos, os deles e também os nossos… Continuo a recordar o momento em que o Alouette aterrou no quartel e me confrontei com dezenas de jovens militares, negros e brancos, a chorar pela perda do tão querido amigo e camarada. Larguei a pistola-metralhadora Uzi, as granadas, o cinturão e o equipamento de transmissões, sentei-me e… também chorei.
Privações e fantasmas
No mês de agosto de 1972 fomos deslocados para a área do Rio Munhango, a cerca de setenta quilómetros da povoação de Cangumbe na ZML-zona militar leste, onde atuava a UNITA comandada por Jonas Savimbi. Ficámos acantonados em tendas de lona durante todo o tempo em que a Companhia ali permaneceu. Foi um período de muitas privações: fome, frio, medos e de ansiedade pelo passar do tempo que me levasse ao termo da comissão. Aqui perdemos mais dois camaradas em combate, os saudosos Frederico Augusto Esteves e o Horácio de Oliveira Maia.
Em abril de 1973 embarquei de regresso à Metrópole a bordo do Boeing 707 da Força Aérea Portuguesa e deixei para trás uma guerra vivida cujos fantasmas insistem, passados tantos anos, em não me deixar esquecer e viver a paz.
E foi assim que a Pátria deixou de precisar de mim. Foi assim que se despediu de mim, sem um adeus, sem uma palavra de gratidão, nada! E lá fui eu, ainda fardado, de mãos nos bolsos, passei a porta de armas e, acompanhado pela família, caminhei por uma calçada que hoje ainda existe tal como era localizada no Prior Velho e lá fomos nós à procura do autocarro porque o dinheiro era pouco para viajar de táxi."
Nome: Manuel pereira
Comissão: Angola (1971-1973)
Força: Companhia de Caçadores 1102 e agrupamento de transmissões de Angola
Info: Casado, dois filhos e dois netos
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