Raspando em busca de fortuna

A raspadinha é o jogo que mais cresce. Sobretudo entre as mulheres.

19 de janeiro de 2015 às 17:39
raspadinha Foto: Sérgio Lemos
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Edite Silva raspa com afinco o bilhete de cartão. Foi

um acaso que a levou ao Rossio nesta manhã de inverno, mas deu-lhe a oportunidade de tentar a sorte numa raspadinha. "Jogo uma ou duas vezes por semana, às vezes também meto um Euromilhões, é o que calha", conta a costureira lisboeta, de 62 anos.

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Gastou dois euros e desta vez a coisa deu certo: "Está a ver, ganhei cinco euros. Já é uma ajuda para o almoço", explica sorridente. Mas, na hora de levantar o prémio, Edite muda de ideias. Pede uma nova raspadinha, desta vez no valor de cinco euros. É uma das variações do jogo ‘Pé-de-Meia’, aposta que neste caso oferece como prémio máximo um rendimento mensal de 2 mil euros durante 12 anos.

Não é desta que Edite muda de vida. Acaba por perder os cinco euros de ‘lucro’ e deixa a loja Campião, casa com filiais em vários pontos do País, com um ‘prejuízo’ de dois euros. "Se o prémio for pequeno, compro outra raspadinha. O mais que ganhei neste jogo foi 50 euros, nessa caso guardei o dinheiro", explica Edite.

Rui Santos, de 55 anos e empregado da Campião há 18, assiste a estas apostas de impulso a toda a hora. "A raspadinha é o jogo que mais tem crescido. É curioso percebermos que as pessoas não veem a raspadinha como um jogo; para quem compra muito é como se fosse um investimento." 

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SEMPRE A CRESCER

Os números do Departamento de Jogos da Santa Casa de Misericórdia revelam a evolução da popularidade da raspadinha, o único jogo que contraria a tendência de queda dos jogos sociais. Em 2011, os portugueses gastaram 1059 milhões de euros com o Euromilhões, mas os dados do ano passado (até ao final do mês de novembro) mostram que esse valor se ficou nos 846 milhões.

Quanto à raspadinha, o dinheiro gasto pelos apostadores passou de 207 milhões de euros em 2011 para 625 milhões em 2014. Se recuarmos a 2008, o ano em que começou a crise económica

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que ainda atravessamos, o cenário de crescimento agiganta-se. Nessa altura as receitas geradas pela raspadinha não chegavam aos 50 milhões de euros.

Os prémios pagos pela Santa Casa mostram também um crescimento acentuado. Se, em 2010, a raspadinha deu aos apostadores quase 68 milhões de euros, em 2014 (dados até novembro) foram distribuídos por este jogo 393 milhões de euros. O salto começou em 2011, ano em que foram introduzidas as raspadinhas ‘Pé-de-Meia’, que oferecem como prémio máximo um rendimento mensal avultado – de 500 a 3 mil euros, durante vários anos.

Segundo o site do Departamento de Jogos, existem neste momento 21 variações da raspadinha. As regras mudaram muito desde 1995, o ano da introdução deste jogo, em que ganhava quem encontrasse três símbolos iguais escondidos debaixo da área a raspar.

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Agora há várias combinações diferentes, uma variedade que , pelos vistos, tem trazido bons resultados – em 2014, a raspadinha foi o único jogo social em que se verificou um crescimento do montante dos prémios atribuídos. O Euromilhões ainda é o jogo mais lucrativo – representa 50% dos 1,7 mil milhões de euros de receitas totais da Santa Casa, mas a raspadinha é o que mais cresce.

Um excelente negócio para o Estado, que desde 2013 cobra um imposto de selo de 20% sobre todos os prémios acima de cinco mil euros. Em 2014, a fazenda pública deitou a mão a 44 milhões de euros por via deste imposto.

A raspadinha é um jogo de características muito especiais. O facto de o apostador saber na hora se o bilhete que comprou tem ou não prémio mudou o perfil de quem aposta. "A raspadinha tem quase 20 anos, mas foi quando se introduziu o ‘Pé-de-Meia’ que o crescimento explodiu. É curioso verificar que são mulheres, sobretudo de meia-idade, quem mais joga. Os homens preferem o Euromilhões ou as lotarias", explica Miguel Pinho, da Casa da Sorte do Rossio, em Lisboa.

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O psicólogo Pedro Hubert, especialista no tratamento da adição ao jogo, explica que esta tendência está identificada. "Não existem estudos definitivos que nos possam dar certezas, mas há muito que os especialistas nesta área identificam as mulheres na faixa etária entre os 50 a 65 anos como tendo maior propensão para estes jogos de resultado imediato.

Não se conhecem com exatidão as razões, mas eu julgo que tem a ver com o facto de esta ser uma idade de mudanças profundas na vida das mulheres. Os filhos saem de casa, acontecem separações e divórcios, a mulher procura muitas vezes uma solução rápida para problemas que são novos nas suas vidas."

O especialista fala do risco que este tipo de jogo traz. "A raspadinha está disponível em todo o lado, é um jogo barato, jogado por muita gente. Quanto mais gente joga, mais probabilidade existe de atrair pessoas que tenham uma predisposição para o jogo compulsivo", alerta Pedro Hubert, que diz, no entanto, não existirem ainda em Portugal estudos sobre este fenómeno específico.

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Miguel Pinho vende jogos sociais na Casa da Sorte, em Lisboa, há 17 anos e sublinha a popularidade que a raspadinha conseguiu nos últimos anos. "Temos esgotado o nosso stock quase todas as semanas. As pessoas procuram todos os jogos mais caros e mesmo os bilhetes de 10 euros [o ‘Mega Pé-de-Meia’, que dá um prémio máximo de 3 mil euros por mês durante 14 anos] têm esgotado. Há clientes que chegam a comprar diariamente maços de raspadinhas, que podem atingir valores bem acima dos 100 euros."

O funcionário da Casa da Sorte faz uma ligação direta entre a crise económica e o crescimento da raspadinha: "Há muita gente com pressa de resolver as suas vidas. Há a ideia, que realmente é verídica, de que as hipóteses de ganhar um prémio elevado são maiores na raspadinha do que no Euromilhões ou nos outros jogos."

FEBRE GERAL NO PAÍS

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O fenómeno da raspadinha varre o País de norte a sul. No Porto, a casa Deus dá a Sorte é uma das mais conhecidas da Baixa. Na praça da Liberdade (Aliados), a casa vende jogos e lotarias há quase 100 anos. Simões Lopes, de 60 anos, é  o proprietário.

"A raspadinha é um jogo viciante. As pessoas parece que quanto mais perdem mais depressa querem recuperar. Como há muitos prémios, mesmo que de baixo valor, isso estimula a jogar mais", conta. Também nesta casa os plafonds combinados com a Santa Casa têm esgotado. São 10 mil euros de raspadinhas vendidas a cada semana. Por vezes, a sorte sorri.

"O maior prémio que demos foi no Natal de 2013, em que saiu uma raspadinha de 50 mil euros." Simões Lopes, de 60 anos, confirma a tendência do perfil de jogadores: "Há mais mulheres a jogar."

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Em Coimbra, o café Santa Cruz, junto à igreja com o mesmo nome, é um símbolo da cidade. Há muito que ali se vendem jogos sociais, mas foi só há seis meses queos proprietários decidiram vender raspadinhas. "Foi a Santa Casa que insistiu e, de facto, os resultados têm sido muito acima do que esperámos", conta Nuno Miranda, de 36 anos, um dos sócios-gerentes do café, situado na zona nobre da cidade.

"As pessoas compram bilhetes de todos os preços, em relação à raspadinha, o que tivermos vai tudo", conta. A maior recompensa que o Santa Cruz deu na raspadinha foi um segundo prémio da raspadinha ‘Super Pé-de-Meia’. Um cliente ganhou um rendimento mensal de 1500 euros nos próximos seis anos.

"O prémio sair no momento é um grande atrativo. E quando sai, compra-se outra. Mais de 90% dos premiados gastam o que receberam num novo bilhete", conta Nuno Miranda.

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Em Faro, a casa O seu Café já ultrapassou as metas acordadas com a Santa Casa. "O objetivo era chegarmos aos 6 mil euros de vendas por semana e isso foi atingido há muito. Para o ano, a meta será mais ambiciosa", explica Luís Filipe Graça, concessionário do café, que explica que o mediador fica com cerca de 10% da receita da raspadinha. O maior prémio que saiu na casa foi um ‘Pé-de-Meia’ de 1500 mensais por 12 anos. Também ele aponta a lógica imediata do jogo como a razão do seu sucesso: "É quase como ir a um casino, sabe-se logo se há prémio."

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