'SE FOSSE DA CHAMUSCA, ELTON JOHN NÃO TINHA ÊXITO'

É monárquico e “não trôpego”. Crítico de um país que vai mal desde os anos 40 e “nunca se endireitou”. Cantor precavido, arquiva música para quando não tiver voz. Ainda vai tê-la em Março, nos coliseus de Lisboa e Porto

18 de janeiro de 2004 às 13:32
Partilhar

Em 1976 cantou o tema ‘Ontem, Hoje e Amanhã’, em versão inglesa, no Festival da Canção de Tóquio. Estava a competir com Gilbert O’Sullivan, a brasileira Simone e Elton John. Eram 48 os participantes e José Cid passou à fase final com outros 12. Teve uma audiência estimada em 900 milhões, naquele que era considerado o Festival da Eurovisão do Oriente. No fim ouviu o apresentador dizer: “and for a outstanding composition: Portugal” (e por uma espantosa composição: Portugal) – tinha derrotado Elton, o cantor que dedicaria anos mais tarde uma canção à amiga íntima: Diana de Inglaterra.

Elton John é hoje mundialmente conhecido. Nunca lhe passou pela cabeça que, se tivesse nascido no Reino Unido e cantado em inglês, a sua carreira musical teria sido diferente?

Pub

Ponho as coisas ao contrário. Se o Elton John tivesse nascido na Chamusca, ia-lhe ser muito complicado fazer a carreira que eu fiz em Portugal. Eu sento-me ao piano e faço canções sem ter qualquer necessidade de poeta ou produtor. Sou protagonista da minha obra.

Portanto, se o Elton John tivesse nascido na Chamusca…

Teria sido muito complicado. Ou se os Rolling Stones tivessem nascido em Almada não teriam feito a carreira em Portugal dos Xutos e Pontapés ou dos UHF. Depois, era incapaz de calçar sapatinhos a condizer com a carteira. Ainda que em Tóquio tivesse barba, óculos redondos azuis, um grande chapéu de cabedal preto, um lenço indiano cheio de colares, um cinto largo de cabedal e umas calças e botas pretas de cabedal até acima. E, por cima de tudo, um capote alentejano. O Elton olhava para mim como se eu fosse um extraterrestre. E eu não estava vestido como a rainha de Inglaterra.

Pub

Vamos regressar à Chamusca. O José Cid nasceu lá…

Os meus pais eram proprietários agrícolas do Ribatejo e fizeram uma fábrica de concentrados de tomate e outros derivados. Lembro-me muito dos meus amigos e dos oleiros. Quando vinha da escola primária, passava por um oleiro e ficava hipnotizado. Um dia levei um grande castigo porque cheguei a casa com duas horas de atraso.

Tem duas irmãs mais velhas. Foi mimado?

Pub

Os meus pais sempre quiseram ter um filho. Posso dizer que fui mimado pela minha irmã mais velha, até mais do que pela minha mãe. O meu pai era uma pessoa muito distante. A Maria São João, que compreendeu sempre a minha carreira, hoje é enóloga na região da Bairrada; a minha outra irmã, Margarida, vive entre Lisboa e a Chamusca e era casada com um neto do poeta Eugénio de Castro.

Chama-se José Cid Tavares. O Cid é da Chamusca?

Sim. E a Ferreira Tavares é de Mongofores, na Anadia. Há um ramo familiar proveniente de Ciudad Rodrigo e alguns dos nossos parentes, dizem que somos descendentes do El Cid. Mas isso é mentira; ele teve duas filhas e foram freiras. A não ser que tenha havido uma invasão do convento. Para bem delas.

Pub

Cresceu na Chamusca até que idade?

Até aos 10 anos. Depois fomos para Mongofores, uma aldeia perto da Curia. Andei em colégios onde encontrei sempre gente que cantava e tocava – como por exemplo no colégio dos Jesuítas, em Santo Tirso, onde ganhei um primeiro prémio de canto coral. Em Coimbra, noutro colégio onde estive, tive a felicidade de me cruzar com jovens como o António Portela e o Rui Ressurreição, que são a base da minha aprendizagem musical.

Suponho que os seus pais não achariam graça à sua queda para a música.

Pub

Nenhuma. Em 1954 era vocalista de uma banda de rock em Coimbra, os Babies, a primeira do pop rock português. Só pude cantar porque menti aos meus pais, dizendo-lhes que todo o dinheiro que ganhávamos era para dar apoio aos desvalidos.

E afinal não era nada disso…

Era para jantaradas na baixa de Coimbra e para ir visitar as raparigas no Terreiro da Erva.

Pub

É nessa altura que toca com o Daniel Proença de Carvalho?

Foi mais tarde, quando sai dos Babies e integrei o grupo de jazz do Orfeão, também em Coimbra; o Proença de Carvalho era o contrabaixista.

Como é que era esse grupo?

Pub

Era mais novo que eles e vocalista; cantávamos cenas ‘jazzisticas’ americanas e, também, bossa nova.

Em Coimbra a tocar jazz, eram popularíssimos…

Éramos. Os melhores lá da terra. E vinham grupos à queima das fitas e ficavam boquiabertos. Tocávamos um tema do Modern Jazz Quartet que surpreendia os estrangeiros.

Pub

E davam autógrafos?

Não, isso não. Nessa altura, as meninas ainda não pediam isso. Apenas batiam muitas palmas e gostavam muito de nós. Essa moda só aparece na altura do Quarteto 1111, influenciados pelos americanos e ingleses.

Quando é que se apercebeu que advocacia não era a sua vocação?

Pub

Na área jurídica o silêncio é uma vitória. Ora, eu não sou muito silencioso.

Como a família encarou a falta de vocação?

Depois de chumbar quatro vezes no primeiro ano, vim para Lisboa fazer aquilo de que gostava; ser professor de ginástica. Só não terminei o curso porque o Quarteto 1111 já tinha arrancado e depois meteu-se o serviço militar.

Pub

Onde é que fez o serviço militar?

Na OTA, fui professor de ginástica entre 1968 e 1972. Dava aulas de manhã e à tarde ia ensaiar para a garagem. Aos fins-de-semana, actuava com os 1111.

Quando é que surge o salto para a notoriedade?

Pub

Foi no ‘Em Órbita’, onde o Cândido Mota, que fazia a locução, passou ‘A Lenda de El Rei D. Sebastião’. E foi um ‘boom’. A Emi-Valentim de Car-valho quis gravá-lo. Começámos depois a trabalhar na ‘Balada para Dona Inês’ e em ‘O Meu Irmão’. No final dos anos 60 gravámos o primeiro álbum, que era conceptual, abordando os problemas da emigração e do colonialismo.

E foi aí que teve problemas com a censura.

O álbum saiu em Janeiro de 1970. Uma semana depois foi engavetado. Nesse álbum está a primeira versão das ‘Trovas do Vento que Passa’. Tinha estado com o Adriano Correia de Oliveira na recruta em Mafra e em Santarém e, nessa altura, já o Adriano as cantava. Pedi-lhe para fazer uma versão com o Quarteto 1111 e o Adriano acedeu, embora depois tenha havido problemas porque o poema é do Dr. Manuel Alegre e a música, o Adriano dizia que era dele e não era, era do António Portugal. Houve polémica. Depois disso, comecei a gravar a solo.

Pub

Além do disco, tiveram outros problemas com a censura?

Quem teve grandes problemas, por exemplo o Zeca Afonso ou o Adriano, foram os homens de esquerda, de oposição ao regime. Nós não éramos sequer republicanos. Tínhamos um sentir diferente da oposição. Estávamos como um peixe fora de água porque tínhamos ideais monárquicos. Salazar sabia que o grande perigo para o regime era o comunismo. Não só não estávamos de acordo com o colonialismo, nem com a forma como este país era gerido; mas isso ainda não estou.

E ainda não está de acordo com a existência da própria República…

Pub

Não estou de acordo com a forma como o país está a ser orientado. Quando falo em Monarquia, não falo de duques e baronatos mas duma Monarquia do povo. Todas essas centenas de anos de história que deitámos para trás num regicídio incrível de um rei fantástico, que se chamava D. Carlos. Depois, todo o sistema não presta. O Salazar arrancou bem durante dez anos e depois foi ainda pior que os outros. Foi um homem sem coragem. Nenhum dos partidos do pós-25 de Abril é nacionalista, defendem só interesses partidários. Da forma como estão a governar, não podem fazer o país feliz. E depois temos aqui ao lado a vizinha Espanha, nacionalistas que gostam mesmo daquilo que têm de mau, enquanto nós não gostamos nem do que temos de melhor. Os sonhos da minha geração não foram cumpridos.

Continua a ser monárquico?

Não sou anti-republicano. Não só anti-nada; a não ser anti-fascista e anti-comunista estalinista, um regime sectário e assassino. Tanto censuro o Estaline que matou milhões na Sibéria como o Hitler. Nunca vi foi nenhum filme feito na Sibéria… Não sou anti-nada, a não ser ao atrás referido. Também não sou anti-republicano. Agora, neste momento, não há ditaduras monárquicas e há republicanas.

Pub

O que é que pensa do dr. Jorge Sampaio?

É um homem de cultura, interessante. Mas tem pouco poder e, por isso, não faz nada. Nem sequer pode dizer: o rei vai nu. Ou neste caso, a República vai nua. Conheço, pessoalmente, D. Duarte. É um homem muito interessante, culto e instruído, só que tem muito pouca coragem política. Já lhe disse que era tão fácil, ele ser neste momento a alternativa política.

Há uma história sobre a sua canção ‘O Dia em que o Rei Fez Anos’ e a do Paulo de Carvalho ‘E Depois do Adeus’, que foi a senha da revolução de Abril.

Pub

‘O Dia em que o Rei Faz Anos’ é a história do Dia 25 de Abril. Era uma profecia relativa porque era inevitável que o regime de Marcelo Caetano caísse. É muito mais a descrição do que se passou do que ‘E Depois do Adeus’.

Numa entrevista disse que não percebia porque não tinham escolhido a sua música em vez da do Paulo de Carvalho.

Na altura não percebia, hoje percebo. Eu não estava propriamente envolvido no 25 de Abril, embora desejasse uma mudança. O autor do ‘E Depois do Adeus’ estava.

Pub

Estava então com os Green Windows.

Eram o Quarteto 1111 mas mais comercial e com algumas das namoradas e das mulheres, numa altura em que já não éramos jovens. Tínhamos casado, tínhamos crianças, precisávamos de pagar a renda da casa.

Nessa altura já era pai.

Pub

Era.

Tinha 22 anos.

Pois foi. Por isso, a minha filha já tem hoje quase 40. Mas foi muito interessante. Era uma criança muito engraçada. Precoce e inteligente.

Pub

Qual era a sua relação com ela?

Ela escrevia poemas. Tinha muita facilidade em escrever e ainda tem, provavelmente. E, de repente, revelou a sua veia artística cantando também em vozes com a banda Tribo e escrevendo algumas coisas. Mas depois houve uma paragem. Ela foi para Estados Unidos. Houve um afastamento bastante grande entre nós, que ainda permanece.

Há um grande choque de gerações.

Pub

Mas ela é parecida consigo?

Digamos que eu sou mais saudável, mais desportivo. E mais não digo.

É a única filha que tem?

Pub

É.

E nunca mais quis ter filhos?

Não aconteceu. Acho que se pode transferir a afectividade e depois tem de haver um paraíso e as pessoas podem encontrar-se lá.

Pub

Viveu sempre rodeado de mulheres?

Sim e não. Eu gosto muito de estar sozinho e muito de estar acompanhado mas quando quero. Tenho um excelente relacionamento com a minha mulher actual que vive no Porto. Eu vivo na Anadia, a 80 quilómetros; vemo-nos aos fins-de-

-semana ou durante a semana. Não nos enganamos, não é nada disso, eu quero é estar sozinho. Não estar dependente de horários de uma casa. E a solidão não existe.

Pub

Gosta de solidão, porém tem fama de namoradeiro.

Quando calhava. Agora não. Eu casei três vezes mas nos intervalos, é verdade, era muito namoradeiro.

Portanto, gostava de casar…

Pub

Não sei se era propriamente de casar…

A sua casa na Anadia é antiga e enorme.

E é uma casa que me caiu em cima. Estou a fazer uma casa pequenina, funcional e barata. De 16x10m com vista sobre o Ribatejo. Uma casa onde não me perca.

Pub

E perde-se na sua casa da Anadia?

É enorme, tem uma capela interior, vários salões, muitos quartos e é grande demais para mim.

Afinal, sempre tem problemas de solidão.

Pub

Nenhum. A casa está cheia de fantasmas com quem eu posso falar.

A casa é assombrada?!...

Um bocadinho, por pessoas que pertenceram ao passado, que recordo e com quem gosto de falar. A minha avó, por exemplo.

Pub

Quem era a sua avó?

A minha avó Piedade, mãe do meu pai, uma pessoa muito culta. O pai dela foi o primeiro Governador Civil de Aveiro que esteve nas lutas Republicanas ao lado do avô do dr. Manuel Alegre. Chamava-se Albano Coutinho e marcou muito a filha que me marcou também muito. A minha avó chegou a conhecer a Natália Correia e tinha com ela grandes conversas, sobre tudo.

O que é que ela lhe legou.

Pub

Bater-me por causas, ser solidário, saudável e curtir a minha loucura. Ainda faço competição desportiva, neste fim-de-semana consegui um terceiro lugar em 50 cavaleiros; para a minha idade … A minha avó ensinou-se a nunca cortar as asas. Ela estava muito à frente da minha mãe.

Falou de loucura. Manteve a loucura dos 20 anos?

O grande problema é que as pessoas hoje levam muito mais a mal a loucura. Mas não faço de propósito, sou assim.

Pub

Já escreveu quantas músicas?

Eu sei lá. Uma média de 12 músicas por álbum, sendo que a minha carreira discográfica começou em 1967. Gravo todos os anos, um álbum.

Donde é que vem essa criatividade toda?

Pub

Em termos de criatividade, agora estou muito parado.

Não tenho escrito nada. Escrevi bastante bem até há um ano e meio e agora parei. Mas não há problema nenhum. Tenho arquivos poéticos; de repente, se sentir que preciso de fazer um álbum, posso utilizá-los. Tenho a Natália Correia, o Manuel Alegre, a Rosa Lobato Faria e muita outra poesia que me deram. Outros poetas geniais que descobri são o Teixeira de Pascoaes e o Miguel Torga.

Isso é mesmo uma espécie de precaução, não vá a poesia falhar…

Pub

Não vá não, já está a falhar! Se a minha falha, tenho a poesia dos outros.

Não. Estou seco de criatividade mas não me vou preocupar. É como um homem que chega aos 60 anos e diz: não tenho mais erecções normais. Não vale a pena tomar Viagra.

Mas espera que daqui a um mês, um ano, a criatividade retorne?

Pub

Espero que volte já amanhã.

A sua carreira é um bocado camaleónica. Dá a impressão que sempre fez aquilo que lhe deu na cabeça.

Exactamente.

Pub

Mas isso paga-se...

…com o silêncio. Estou a gravar fados mas não sairão com grande mediatismo. E já tenho metade de um álbum antigo de originais. Só para ter. Como tenho o meu estúdio, vou gravando porque de repente perco a voz…Assim, posso editar durante a primeira década de 2000. Mesmo que não tenha voz, os álbuns poderão continuar a sair.

A possibilidade de perder a voz atormenta-o?

Pub

É normal, tenho 62 anos. Posso perder a voz. Mas se tiver as canções gravadas, duro mais.

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

Partilhar