"Se tivesse máquina ganhava o Pulitzer"

Olhei para trás e vi a berliet e os soldados pelo ar. Fomos socorrê-los.

27 de setembro de 2015 às 09:30
25-09-2015_11_14_28 10715817.jpg Foto: D.R.
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O Batalhão 1891 recebeu ordem para desembarcar na Beira, devido ao bloqueio inglês, por causa da Rodésia, mas o problema resolveu-se enquanto íamos de Luanda para Moçambique e fomos para a Zambézia, na região do Ile. Ficámos dez meses, até fevereiro de 1967.

A 4 de agosto de 1967, no Nessumba, acordei com um tiro, seguido de uma grande explosão. Houve tiros para cá e para lá, até que de manhã demos com um homem da Frelimo morto a metros da nossa palhota. Trazia oito granadas, e podia ter-nos matado a todos. Só há dois ou três anos é que soube a verdade. O meu amigo Manuel dos Santos contou que lhe apeteceu uma ‘necessidade fisiológica manual’. Juventude... Ouviu barulho e disparou, com tanta sorte que o matou. Era de noite e foi só um tiro, não uma rajada. Ainda hoje celebro o dia como um aniversário.

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Depois fomos para a zona do Niassa, para Nova Coimbra, conhecida por Estado de Minas Gerais. À chegada houve uma emboscada a uma Unimog da companhia que íamos substituir. Tiveram dois mortos e alguns feridos. Ainda não havia o quartel de Lunho. Dali a Olivença eram 200 quilómetros sem tropa.

Num belo dia, ia eu à frente do pelotão, comandado pelo meu amigo Monteiro, e pelo alferes Machado, quando ouvi vozes. Agachei-me, com um soldado atrás de mim, fomos devagarinho e quando chegámos às palhotas desatámos aos tiros. Entrei primeiro e vi um bebé de dois anos dilacerado e a mãe com a perna desfeita. Ficámos paralisados e ninguém sabia o que fazer, até que o Monteiro e o Machado levaram o bebé para o mato e ouvimos um tiro. Foi um ato de coragem. À mãe fizemos um curativo, e não sei se morreu. Este dia deixou-me marcas para toda a vida, mas não sei se foram os meus tiros ou não.

A SANTA DE MIANDICA

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Miandica era um terror. Estivemos lá 70 dias, de setembro a dezembro de 1967, a viver debaixo do chão. A comida vinha de avião e água só para beber. O meu amigo alferes Monteiro mandava rádios a dizer como estávamos, mas ninguém respondia. Até que ele resolveu pedir uma santa. Dias depois apareceu a santa, que apelidámos de Nossa Senhora de Miandica, o correio, e o tabaco. Foi uma festa.

Os furriéis da companhia tiveram muito azar. Morreram dois e dois foram retirados. Só gozei 20 dias de férias após 20 meses, e foi preciso dar um murro na mesa. Estava doente, mas uma coluna rebentou com uma mina e o capitão mandou-nos ir buscar a Berliet. Choveu toda a noite e ouvíamos barulhos. De manhã lá pusemos a Berliet em cima de outra. Ia com o meu amigo Vasco na primeira, e atrás estava a Berliet acidentada em cima de outra. Numa curva em cotovelo, se tivesse  máquina fotográfica ganhava o prémio Pulitzer. Olhei para trás e vi a Berliet e os soldados pelo ar. Dei com o Zequinha cheio de sangue, mas nada de grave: "Ó meu furrielzinho, veja como eu estou!"

Chegámos ao quartel às três ou quatro da tarde e só vimos ‘dourados’. Uma das caras não me sai da memória. Fizemos o relatório ao capitão e ele disse-me que não tinha mais ninguém para bater a picada para aqueles senhores irem na manhã seguinte para o Lunho. O Costa Gomes nem perguntou se estávamos bem. Só disse ‘olé’ e virou as costas. Foi uma indignação tal que dura até hoje.

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Já morreu e continuo a odiá-lo.

Chegámos ao quartel às três ou quatro da tarde e só vimos ‘dourados’. Uma das caras não me sai da memória. Fizemos o relatório ao capitão e ele disse-me que não tinha mais ninguém para bater a picada para aqueles senhores irem na manhã seguinte para o Lunho. O Costa Gomes nem perguntou se estávamos bem. Só disse ‘olé’ e virou as costas. Foi uma indignação tal que dura até hoje. Já morreu e continuo a odiá-lo. 

DEPOIMENTO DE AMADEU NEVES DA SILVA

Comissão: Moçambique, de 1966 a 1968

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Força: Companhia de Caçadores 1558

Atualidade: Aposentado, aos 71 anos, é casado, tem três filhas e três netos, e vem uma neta a caminho

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