Stress de guerra das mulheres do Ultramar

Desconhecem o Ultramar mas partilham o stress dos maridos, ex-combatentes.

14 de julho de 2014 às 15:00
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Ele de noite levantava-se da cama, dizia que ouvia pessoas aqui em casa e que estavam a abrir a nossa porta, ou a fechar. Partia tudo. Agarrava na televisão, metia-a dentro da cristaleira. A porta da sala tem um buraco que teve de ser tapado. Quando lhe davam estas crises, destruía tudo, achava que ainda estava no meio da guerra." Amélia Machado não foi ao Ultramar mas guarda feridas que o marido de lá trouxe. Feridas que não fecharam à chegada à pátria: pelo contrário, foram abrindo à medida que o corpo do ex-combatente envelhecia e a cabeça recordava o que por lá viu e viveu. Amélia – mulher, companheira, mãe, pilar da casa e da família – amparou-lhe algumas feridas mas sofreu outras tantas.

Portugal enviou os seus filhos para a Guerra Colonial durante treze anos. Em Angola, Moçambique e na Guiné morreram quase nove mil combatentes. Dos que regressaram, estima-se que cinquenta e cinco mil voltaram com sintomas de stress de guerra, uma patologia que só anos mais tarde começou a ser tratada pelo nome. Sabe-se hoje também que as companheiras destes homens chamados a combater no início da sua vida adulta sofrem, também elas, de stress pós-traumático. "Até tinha medo de ir com ele à rua, porque se ele via um negro na paragem do autocarro achava que era o inimigo. Tinha medo de ele matasse alguém, que fizesse alguma. Até que comecei a ver que eu também não estava bem, só chorava, ninguém me podia dizer nada", lembra Amélia, viúva há três anos. "Só soube o que ele tinha vinte anos depois de termos casado, antes disso tinha sido internado cinco vezes no Hospital Júlio de Matos. Foi quando descobrimos a Apoiar – associação de apoio aos ex-combatentes vítimas de stress de guerra". De quinze em quinze dias, Amélia junta-se a outras mulheres como ela num grupo de entreajuda: todas elas são vítimas de uma guerra onde não estiveram, para falar sobre aquilo que passaram (ou ainda passam) com os maridos que viveram o Ultramar.

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TODOS OS PAPÉIS

"São mulheres que apresentam muitos sintomas somáticos como depressão e ansiedade; são mulheres tristes, com perturbação de sono, com baixo nível de satisfação marital e elevados níveis de stress", explica Carla Santos, psicóloga da Apoiar. "Porque elas nesta relação marital assumem quase todos os papéis, quase todas as responsabilidades dentro desta família. Estes ex-combatentes não estão capazes de assumir muitos papéis dentro desta família e por isso são elas que assumem a responsabilidade da educação dos filhos, da gestão financeira da casa, as rotinas do quotidiano, e ainda cuidam deste marido. Daí estarem sob uma grande pressão."

Lucília Costa compara a sua vida a um tsunami. Que a espaços varre tudo o que encontra e deixa atrás de si um rasto de destruição. Qual árvore centenária, esta mulher foi-se conseguindo manter de pé contra a doença que consumia o marido e a ela por arrasto. Quando foi para a Guiné, Manuel ainda não namorava Lucília, mas enviava aerogramas que eram naquele tempo promessas de um casamento que viria a consumar-se pouco depois do regresso. "Mas veio virado do avesso da guerra, outra pessoa mental e fisicamente. Deixou de ser uma pessoa com um relacionamento normal: a meio de uma conversa levantava-se, mudava a conversa, era como se houvesse uma reviravolta que nem ele entendia, o olhar dele não estava ali." Esse foi o primeiro sinal, mas logo outros se seguiram. "Não podia ouvir um barulho sequer, era um problema. Ainda hoje não consegue dormir uma noite sossegado, dá saltos na cama, está sempre alerta, diz que sonha com o abismo, pesadelos que o consomem." É como se voltasse a estar na guerra, de arma apontada ao vazio, rodeado de arame farpado, a ver os camaradas definharem e morrer numa terra que não era a sua e com medo de não voltar também.

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Lucília puxava-o para a realidade a cada noite difícil e foi tentando a custo evitar que o filho sofresse também. "O miúdo para ele era tudo, mas quando lhe dava aquelas coisas pegava nele, no triciclo, ia tudo à frente, era um furacão." Também obrigava a criança a ver filmes de guerra do início ao fim, uma espécie de iniciação ao sofrimento. "Ele era um rapaz criado na capital, desportista, nunca tinha pegado numa arma quando foi chamado para a Guiné. Foi da capital para ser posto dentro de uma gaiola. Acho que os filmes eram uma forma de preparar o filho para um cenário de combate caso algum dia enfrentasse uma guerra", acredita esta mulher, que se manteve firme como uma rocha ao lado do homem com quem casou. Mas Lucília desesperava a cada dia. "Andei 25 anos à procura da mudança do meu marido: Fui a videntes, fui a psiquiatras, mas a resposta surgiu muito tarde num programa de televisão." Onde pela primeira vez ouviu a palavra que fez eco no seu sofrimento: stress de guerra. Anabela Horta também demorou a ouvi-la, mas há muito sofria com as inconstâncias do companheiro de vida. "Nunca sabemos como é que eles se levantam e como é que eles se deitam. Então se eles dormem e têm pesadelos, ao outro dia ninguém lhes fale, porque ficam logo transtornados por completo", conta esta guerreira dentro de casa. "Tinha muito medo, mas mostrei--me sempre muito forte, porque eu não sabia o que ia sair dele. Tão depressa podia estar aos pontapés às coisas como ir bater no filho."

FÚRIA INCONTIDA

Anabela encara o casamento como uma missão, perdoa as falhas do marido, também ela vítima de uma guerra antiga para onde não foi recrutada. "Acho que ele reconhece o meu apoio, mas os ex-combatentes não sabem mostrar o amor que têm pelas pessoas. Nem sequer sabem dizer essa palavra. Só a começou a dizer aos netos, que vieram ajudar a acalmá-lo." Nos primeiros anos de casamento, a casa onde moram, em Almada, parecia muitas vezes um cenário de conflito armado. "Partia tudo, a loiça, os móveis... partia tudo o que lhe aparecia à frente. Também eu tive de procurar médicos para me tratar. Para conseguir lidar com o meu marido tomo antidepressivos. As pessoas diziam-me: ‘Por que é que o estás a aturar? Eu, se fosse a ti, deixava-o. Pensei nisso muitas vezes, mas não tinha coragem por causa dos filhos."

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As palavras de Anabela encaixam numa batalha que Etelvira Amaro conhece de cor, desde que disse ‘sim, aceito para toda a vida’ a um ex-combatente da Guiné, de quem se enamorou por carta enquanto ele combatia em África ao lado do irmão. "Muitas vezes, a gente está desesperada e sai de casa, sem destino, e pára num sítio e pensa mil vezes na vida. Pensa inclusive em desaparecer, tirar a vida pura e simplesmente." Mas Etelvira, tal como Anabela, Amélia e Lucília, sempre regressou ao lar. "Se eu falto em casa, ele não sabe onde é que há de estar. Se eu falto, falta lá tudo, faz de conta que está tudo às escuras, não há lá ninguém." São elas o rosto ainda escondido de uma guerra de onde poucos saíram sem feridas. Feridas que não saram com o tempo.

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