Todos queriam votar nas eleições de 1975
Mais de 90% de afluência às urnas, jornalistas de 45 países, três dias até se apurarem os resultados definitivos.
Gigantescas, lentas e ordeiras filas para todos os cidadãos exercerem o seu direito de voto, pela primeira vez na nossa História, eram imagens que se multiplicavam por todo o País no dia 25 de abril de 1975 (um ano exato após a Revolução dos Cravos) – e a adesão popular nesta ida às urnas, numa sexta-feira que era feriado, atingiu uns espantosos 91,66 por cento. Dois anos antes, ainda na ditadura, a manchete do primeiro número do ‘Expresso’, publicado a 6 de janeiro de 1973, denunciara: "63 por cento dos portugueses nunca votaram".
Agora, parecia que quase um povo inteiro queria eleger a Assembleia Constituinte (que iria elaborar uma nova Constituição), demonstrando enorme "orgulho cívico" e dando "uma prova de maturidade" política, como testemunhariam os 870 jornalistas provenientes de 45 países.
Nesse tempo, em que a televisão era a preto e branco, só existia a RTP e a emissão encerrava antes da meia-noite com o Hino Nacional – reabrindo, no dia seguinte, à hora de almoço, a que se seguia nova pausa até ao serão –, as projeções modernas eram pura Ficção Científica.
Durante semanas, foi preparada uma maratona televisiva de 30 horas, estando previsto que os primeiros resultados com algum significado seriam conhecidos por volta das seis da manhã de sábado – e, entre os boletins informativos, a programação incluía filmes e "programas musicais".
Sem sondagens divulgadas, ignorava-se a força real de cada partido. Mário Soares recordaria uma conversa com o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, conotado com o PCP, em que o governante previa: "O MDP/CDE vai ser o maior partido, depois o PCP e o PS talvez fique em terceiro lugar". Não percebera o que o historiador Kenneth Maxwell definiria, no livro ‘A Construção da Democracia em Portugal’, como "uma grande parte da população, profundamente tradicionalista e conservadora, [que se encontrava] sem
porta-voz".
Surpresas PPD e MDP
Após a primeira "volta a Portugal" de Mário Soares, que viajava no seu Renault 19 vermelho, conduzido pela filha, o PS confirmava o que se esperava e era o indiscutível vencedor das eleições. Mas não era tão previsível que o PPD – só seria PSD a partir de outubro e cujo líder, Sá Carneiro, veio de Londres, onde se dizia que estava em tratamento, só para votar na 3ª secção de Nevogilde (Porto), partindo no mesmo dia – fosse o segundo, ainda por cima com o dobro dos votos do PCP.
E o MDP/CDE (sigla das listas oposicionistas no regime anterior, que se transformara em partido e era considerado um ‘satélite’ do PCP), com tantos ministros como os principais partidos, ficava atrás do CDS – que nunca integrou qualquer dos seis Governos
Provisórios.
Apesar de a radicalização da sociedade só vir a crescer vertiginosamente nos meses seguintes, o contexto já não era pacífico: desde o I Congresso do CDS, realizado em janeiro, no Porto, cercado por elementos da extrema-esquerda, até incidentes provocados por elementos da extrema-direita, já no fim da campanha eleitoral, numa sessão de esclarecimento do PCP na Trofa.
Maoista no Parlamento
Apesar de ter menor percentagem nacional que a FSP (originária de uma cisão com o PS e que, mais tarde, se juntava ao PCP e ao MDP na aliança FEPU) e o MES (reunia desde dirigentes da Crise Académica de 1962 até alguns sindicalistas, advogando o "poder popular"), a concentração de votos na capital permitiu à UDP garantir um lugar na Assembleia Constituinte.
Por ironia da História, quem se deveria sentar no hemiciclo a representar a UDP era o médico João Pulido Valente, mas, além da fortuna de família, o histórico fundador da tendência pró-chinesa em Portugal (com Francisco Martins Rodrigues e Rui d’Espiney) tinha ido visitar à prisão o capitalista Jorge de Brito, seu amigo de infância, pelo que foi logo substituído por Américo Duarte, operário metalúrgico na Lisnave e ativista sindical.
MRPP fora do boletim
E havia ausências por vontade própria: a Base-FUT considerava que as eleições serviam "aos burgueses e nunca aos trabalhadores", a LUAR esclarecia que "não tem nada a ver com o atual processo eleitoral", os anarco-sindicalistas do jornal ‘A Batalha’ não concorriam "a quaisquer competições eleitorais".
Como escrevia José Saramago, no dia 28 de abril de 1975, na sua coluna de opinião (não assinada) ‘Apontamentos’, na primeira página do ‘Diário de Notícias’ (de que era, então, o diretor-adjunto): "As eleições tiveram, pelo menos, a vantagem de clarificar a bruma ideológica que pairava (e de algum modo continua a pairar) sobre o nosso país." A partir desta altura – e até ao 25 de Novembro desse ano, em que os militares moderados dominaram os seus camaradas de armas comunistas e esquerdistas –, iriam confrontar-se a legitimidade conferida pelo voto e a capacidade de exercer o poder a partir da rua.
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