Um político com queda para a comédia

Aluno brilhante, professor reputado, político desafortunado. Amigos contam peripécias da vida de Marcelo Rebelo de Sousa.

25 de outubro de 2015 às 15:00
23-10-2015_12_01_51 10808041.jpg Foto: José Coelho
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A cena repete-se todos os anos, pelo Natal. Na escola O Lar da Criança, no bairro lisboeta da Estrela, Marcelo Rebelo de Sousa, um dos 13 alunos que estrearam a casa, em 1950, não falha a festa anual. "Entrou no ano em que a minha mãe abriu a escola e ficou desde que tinha um ano e meio até aos dez. O professor Marcelo e o Eduardo Barroso [médico e sobrinho de Mário Soares] eram os mais pequeninos", conta Rita Ávila de Melo, atual diretora.

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Marcelo revelou cedo a disposição para liderar: "A escola estava dividida numa espécie de clubes, que se chamavam casas, que tinham nome de santos. Eram grupos de rapazes e raparigas, havia o presidente, o tesoureiro e o secretário. Marcelo foi presidente de uma das casas, aos oito anos, e o tesoureiro era  Eduardo Barroso".

A diretora da escola adivinhava-lhe  o futuro: "A minha mãe dizia  que um dia ele iria ser Presidente da República. Era um aluno muitíssimo inteligente, solidário, com uma noção de justiça enorme, muito curioso e com o dom da palavra. Já nessa altura adorava fazer discursos", conta a filha, Rita Ávila de Melo, que sublinha outra característica do candidato presidencial: "Sempre foi muito namoradeiro, os recreios eram separados e escapava-se para a parte das meninas. Era apanhado e ficava de castigo".

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NASCIDO NA ELITE

Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa nasceu a 11 de dezembro de 1948, filho da assistente social Maria das Neves e do estudante de Medicina Baltazar Rebelo de Sousa – que viria a ser secretário de Estado e ministro em governos de Salazar e Marcello Caetano. Este último foi quem conduziu a mãe ao hospital no dia do parto e a ele se deve o nome de Marcelo, embora se tenha recusado a ser padrinho por se achar demasiado velho. Desde jovem que Marcelo privou com as figuras do regime salazarista.

O mais velho de três irmãos, foi sempre um aluno brilhante. Mas nem por isso era um típico ‘marrão’. A atriz Ana Zanatti foi colega dele no liceu Pedro Nunes: "Lembro-me que era um ótimo aluno, o melhor do liceu, aliás. E todos o reconheciam por isso. Já nessa altura tinha uma personalidade extrovertida e era muito popular. Tivemos um breve namoro, coisa de miúdos adolescentes".

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Marcelo Rebelo de Sousa entrou na Faculdade de Direito de Lisboa para fazer história. Acabou o curso com média de 19, a mesma que o colega de curso Jorge Braga de Macedo. As mais altas notas de sempre da faculdade.

André Gonçalves Pereira foi um dos seus professores e seria depois um grande amigo. "Em 46 anos de Faculdade de Direito, o Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos dois únicos 19 que eu dei. Ainda me recordo bem dele como aluno, depois como assistente, depois como professor meu colega. É um superdotado, e aquelas excentricidades que tem não são perigosas e estão muito atenuadas. Foi um estudante fantástico e é um homem muito interessan-te. Como dormia muito pouco tinha muito tempo para ler e estudar".

Sobre Marcelo circulam várias lendas. Que dorme quatro horas por noite, que é capaz de ditar dois textos ao mesmo tempo, que tem uma memória prodigiosa. Um dos desafios do jornalista Vítor Matos, que escreveu a biografia de Marcelo, foi comprovar a veracidade dos mitos. "Chego à conclusão de que é quase tudo verdade. Ouvi vários relatos, um deles o de quem o viu a escrever um texto com uma mão, enquanto escutava uma chamada com o auscultador do telefone preso ao pescoço e tomava notas com a outra mão".

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JORNALISTA E POLÍTICO

Nascido no seio do regime, Marcelo  Nuno cedo mostrou independência e rebeldia. Quando Marcello Caetano sucede a Salazar, Rebelo de Sousa alinha com a oposição. Esteve na fundação do ‘Expresso’, criado por Francisco Pinto Balsemão em 1973 e é na redação que vive os tempos da revolução de 1974. O jornalista Vicente Jorge Silva trabalhou com ele nessa altura: "Ficaram-me na memória os tempos divertidos que passámos no ‘Expresso’, ao longo de 15 anos". Lembra a tensão que se vivia entre Marcelo e Balsemão: "A relação agrava-se a partir do momento em que o Balsemão vai para o governo e o Marcelo fica a dirigir o jornal. O Marcelo escreve coisas não muito agradáveis para o governo e para o Balsemão em concreto como primeiro-ministro. Antes disso o Marcelo já tinha feito uma aposta com uma amiga de que conseguia escrever que o Balsemão era ‘Lelé da Cuca’". A frase apareceu mesmo no jornal, o que marcou o início do esfriamento das relações entre Balsemão e Marcelo. O que não impede Balsemão de o convidar para ministro da Presidência, cargo onde pouco durou, demitindo-se três dias antes de umas eleições autárquicas. "O Marcelo tem esse lado infantil. Tem um lado um bocadinho indomável. Não é uma personagem que se possa controlar. Não se pode achar que com ele são favas contadas", diz Vicente Jorge Silva.

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António Capucho, ex-autarca de Cascais, é um amigo próximo. Viveu com Marcelo os anos quentes da pós-revolução. Lembra um episódio: "Logo a seguir ao 25 de Abril, fomos para o Algarve passar uma semana de férias juntos com as nossas mulheres. Elas foram mais cedo com o meu carro, nós seguimos no Fiat 600 que era da mulher dele e voltámos os quatro nesse carro. Eu levava na mala dossiês de alguma relevância do PSD, de que eu era secretário adjunto, na altura em que Sá Carneiro era o secretário-geral. Fomos intercetados por uma barragem. Eram militares com metralhadoras G3, muito mal fardados, e populares com caçadeiras. Paravam os carros à procura de armas. O Marcelo saiu e foi  falar com eles, uma grande conversa, a que não assisti. Quando voltou explicou-nos que lhes tinha dito que nós estávamos do lado de Abril e a favor da revolução e eles nem sequer abriram a mala do carro, onde eu tinha documentação confidencial".

Germano Sousa, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, lembra um vizinho especial. "A sua confessada e conhecida hipocondria deu vários episódios. Numa viagem que fez ao estrangeiro, ligou-me muito preocupado a dizer que estava num país nórdico. Dizia: ‘estou com hepatite aguda, olho-me ao espelho e tenho os olhos amarelos, a minha urina é escura, tenho de voltar para Portugal. Tentei demovê-lo, mas ele veio mesmo embora. Quando o fui receber bastou-me olhar para ele para ver que não tinha nada. A um hipocondríaco dá jeito ter um amigo e vizinho médico".

Em 1989, Marcelo candidatou-se pelo PSD à Câmara de Lisboa. Concorria contra Jorge Sampaio. O jornalista Joaquim Letria participou na luta. "Conheci Marcelo no ‘Expresso’ e depois fiz parte da equipa que fez a campanha para a Câmara de Lisboa. Foi uma campanha muito interessante, cheia de ideias arrojadas. O mergulho no Tejo, por exemplo, não foi um gesto gratuito, ele queria chamar a atenção para a poluição do rio. É imprevisível, mas tinha ideias inovadoras, como a de conduzir um táxi ".

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UMA SOPA CÉLEBRE

Sempre entre a política e o jornalismo – esteve na fundação do jornal ‘O Semanário’ e era fonte privilegiada de várias redações – viveu em 1993 um episódio de que nunca se livrou. Paulo Portas, então diretor de ‘O Independente’, contou em entrevista a Herman José porque cortou relações com Marcelo. "Ele é filho de Deus e do diabo, Deus deu-lhe a inteligência, o diabo a maldade", disse na TV. Conta como Marcelo lhe revelou ao pormenor um jantar de juristas em Belém com o Presidente Mário Soares, contando até que se serviu uma vichyssoise, uma receita francesa de sopa fria. Mas Portas diz que encontrou no dia seguinte um dos supostos participantes nesse jantar, que desmentiu tudo o que Marcelo contara, incluindo a tal sopa. Marcelo nunca comentou o caso, Portas teve de engolir a inimizade quando o CDS/PP se coligou ao PSD, liderado por Marcelo entre 1996 e 1999, para tentar derrubar o governo de António Guterres. A coligação correu tão mal que Marcelo se demitiu, anunciando a quebra de confiança com Portas em direto na TV.

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Marques Mendes foi um dos principais apoiantes de Marcelo Rebelo de Sousa na liderança dos sociais-democratas. "Muitos chamam-lhe um taticista mas eu tenho opinião contrária. Durante esse período houve duas situações que o demonstram: os referendos do aborto e da regionalização. Em 1996, no início da sua liderança, Marcelo anunciou que não se podia fazer a regionalização sem consultar o povo. Mas era preciso um acordo com o PS. Foram muitas as negociações, muitos os meios envolvidos e toda a gente achava aquilo impossível. Vi os principais apoiantes do professor Marcelo a aconselharem-no a deixar cair a causa, para não desgastar a imagem. Mas manteve-se sempre irredutível e não desistiu". O referendo fez-se. Marcelo defendeu o ‘não’ à regionalização e ganhou.

A batalha seguinte foi a do primeiro referendo ao aborto. "Era um tema fraturante, que tinha de ser aprovado pelo Parlamento e o PS não queria o referendo. Já toda a gente achava que o assunto estava perdido quando ele obrigou o PS a ceder e a convocar o referendo [realizado em 1998, com a vitória do ‘não’]. Ele não abandona as suas causas, mesmo quando todos acham que estão perdidas".

O jornalista Vítor Matos publicou em 2014 uma extensa biografia de Marcelo Rebelo de Sousa. Foi o culminar de um trabalho de cinco anos. "Quando comecei, falei com ele. Expliquei-lhe que era um trabalho jornalístico, que seria feito quer ele quisesse participar ou não, e avisei-o de que ele não leria o texto antes de ser publicado. Marcelo aceitou essas condições e concedeu-me dezenas de entrevistas". Um trabalho exaustivo, até pelos horários. "Encontrávamo-nos em casa dele, em Cascais, e falávamos desde as nove da noite até às três ou quatro da manhã. Mal eu chegava começava a falar e tinha o discurso estruturado. Muitas vezes, ao voltar a casa de madrugada, surgiam-me dúvidas e enviava-lhe emails a pedir esclarecimentos. Invariavelmente, tinha as respostas no meu email quando acordava".

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Quando Marcelo liderava o PSD, o Presidente Jorge Sampaio tinha um copo de água na mesa de cabeceira, para aclarar a voz quando Marcelo lhe ligava de madrugada. Uma dica para os atuais líderes partidários...

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