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34 anos à espera do filho

Maurício Silva já tinha perdido a esperança de reencontrar a mãe. Há 34 anos que não sabiam um do outro. Ela ficou no Hualondo, aldeia angolana do Bié. Ele veio para Portugal no último dia da ponte aérea, em 1975. Tantos anos depois, mãe e filho abraçaram-se

21 de dezembro de 2008 às 00:00

Mal soube da carta que chegara dias antes à Missão Católica do Cunhinga ela pôs-se a caminho. O Sol ainda não raiara quando Leontina Nagaié deixou a sua aldeia, Hualondo, na província angolana do Bié, disposta a percorrer a distância – mais de trinta quilómetros – até à missão. Nada sabendo de letras, lê-las ou escrevê-las, queria tão-só ver a carta e apertar nas mãos a prova de que o filho mais velho estava vivo. Tinha esperado 34 anos por notícias dele. Não podia esperar mais. De manhã deram por falta dela na aldeia. Os homens organizaram-se para procurá-la. Encontraram-na a caminho. Sozinha.

Quem espera tanto tempo encontra pouco conforto em palavras alheias que anunciam o fim do sofrimento. Por isso, Leontina precisava de ver e tocar a carta que, disseram-lhe, tinha sido enviada pelo filho. Não chegou a tê-la nas mãos mas, a 8 de Novembro, ao início da tarde, os seus braços magros envolveram Maurício Silva. Era um rapazinho de 15 anos quando se deixou abraçar assim pela última vez; agora é um homem de 49 que trabalha na secretaria de redacção do Correio da Manhã.

Ela vestia um traje colorido e estava em pé diante de uma casa com telhado de colmo quando ele entrou no Hualondo, acompanhado pelo irmão, que fora buscá-lo ao aeroporto do Huambo, e do primo, que se lhes juntou na cidade do Cuíto, ex-Silva Porto. Mesmo que não lhe reconhecesse as feições adultas, o coração de Leontina sabia quem era o homem entre Tito Floriano e Pedro Jamba. Logo deitou a correr e atirou-se à terra que o filho não pisava desde 1974. Ouviram-se gritos e um estranho pranto, que misturava sofrimento e júbilo, ecoou para além dos campos onde cresce o feijão e o café. Depois vieram as palavras – em umbundo quase todas e, em português, 'meu filho'. E só então Leontina abraçou Maurício.

Maurício Silva nasceu no dia 7 de Junho de 1959. Do pai, sabe apenas que era português, comerciante no Vouga, agora Cunhinga, e o primeiro nome – Manuel. Leontina tinha 17 anos quando o deu ao mundo. Tê-lo-á embrulhado e levado a Manuel, que o repudiou. Maurício viveu os primeiros anos com a mãe em Capunda, perto de Cunhinga, e, após o casamento dela, com o padrasto e os meios-irmãos na aldeia vizinha do Hualondo. O petiz, que passava o tempo entre as duas aldeias, acabou por ficar na da avó, Capunda.

'Eu tinha seis anos. No Hualondo era obrigado a ir com a minha mãe para a lavra. Em Capunda, onde a minha avó, que tinha posses, era muito respeitada, eu ia à escola, brincava com os meus primos e acompanhava os bois.' O miúdo entendeu beneficiar com a mudança – pelo menos até a avó o deixar na Missão do Vouga para que estudasse e se fizesse um homenzinho. 'Não gostei daquilo. Passei lá dois anos, mas andava sempre em fuga.' Habituado a fugir para Capunda e a que o fossem lá buscar para que voltasse à missão, decidiu um dia baralhar os padres e rumar à casa da mãe, no Hualondo. Mudou a rota da fuga e, sem saber, o destino.

No Hualondo reencontrou um grupo de amigos, miúdos de 14 anos como ele, que trabalhava na fazenda Konjo, onde vivia Maria José Martins, portuguesa e jornalista no ‘Diário de Luanda’. Mestiço e franzino, Maurício não era talhado para o labor agrícola. ‘Dala’– apelido carinhoso de Maria José – perguntou-lhe se queria ir para Luanda e prosseguir os estudos. Ele disse que sim. E Leontina autorizou.

Maurício chegou a Luanda em Março de 1973. Fazia serviço doméstico na casa que ‘Dala’ e as irmãs mantinham na rua Luiz de Camões, perto do largo da Mutamba. Frequentou o ano lectivo de 1973/74 mas não chegou a acabar a 4.ª classe. Em Maio de 1974 foi visitar a mãe ao Hualondo. Passou uma semana com ela. Estava longe de imaginar que só voltaria a ver aquele rosto – 'mais velho e sofrido' – muitos anos depois. Nessa altura Leontina acabara de dar à luz uma rapariga, baptizada Namalinha. Maurício viu a irmã com uma semana de vida e nunca mais.

Leontina teve dez filhos. Seis estão vivos. Namalinha morreu. Eduardo, o segundo, também, vítima de acidente. Francisco, o quarto, morreu na última ofensiva do Cuíto. Insaciável, a guerra levou-lhe ainda o sétimo, que Maurício não conheceu e só agora soube chamar-se Abel. Tito e Filipe são os outros filhos varões de Leontina. Foram recrutados pelo partido do Governo, MPLA, e, durante dez anos, lutaram, não por vontade própria, contra o irmão Francisco, levado pela UNITA.

Foi Tito quem contou a Maurício acerca do cativeiro da mãe. Ela não fala disso. Tito disse ao irmão mais velho que a mãe estava grávida quando militares da UNITA a raptaram. Passaram dois anos sem qualquer notícia dela. Leontina conseguiu fugir do cárcere e alcançar o Hualondo – mais morta do que viva e com uma criança moribunda nos braços. Os aldeões nunca imaginaram que o bebé sobrevivesse. Não lhe deram um dia de vida. Enganaram--se. Jacinta é uma mulher feita. Tem 28 anos e é ela própria mãe.

O silêncio de Leontina acerca do cativeiro é a forma mais eloquente de expressão – ela sabe que as palavras são insuficientes e, em relação à sua aldeia natal, Capunda, disse apenas duas ao filho mais velho: 'Não vás.' Para que ele não visse o quimbo, onde passou parte da infância e da adolescência, arrasado, nem sentisse a presença revoltada dos primos que lá perderam a vida quando estavam a celebrar um casamento. Um ataque dizimou os convivas.

Ninguém sabe que vida, ou morte, teria tido Maurício se, impossibilitado de regressar ao Hualondo dada à ausência de transportes, não houvesse acompanhado ‘Dala’ no último voo da ponte aérea entre Luanda e Lisboa, a 30 de Outubro de 75. Ou se, já em Lisboa, com 16 anos e saudades da família, tivesse usado o bilhete de regresso.

Se não o fez foi porque José Vacondeus, à frente do jornal ‘O País’, onde o rapaz arranjou emprego como paquete, o convenceu a esperar para ver o que ia acontecer em Angola após a Independência. O que aconteceu foi uma guerra fratricida alimentada pela União Soviética e pelos Estados Unidos e, na fase final, pelos comerciantes de armas.

Durante a guerra em Angola e ajudado por ‘Dala’ – que considera outra mãe porque também lhe deve a vida –, Maurício tentou muitas vezes entrar em contacto com a família no Hualondo e em Capunda. Em vão. Não havia maneira de localizá-los: os homens tinham sido mobilizados e as mulheres raptadas ou estavam em fuga. Quando, no dia 8 do mês passado, chegou ao Hualondo olhou intrigado, ora para o irmão Tito, ora para o primo Pedro. 'É aqui?!'

O que tinha visto no caminho – filas de tanques destruídos à beira da estrada e funcionários da ONU ocupados em tarefas de desminagem – não o preparara para encontrar a aldeia naquele estado. 'Não foi isto que eu deixei!', insurgiu-se, apontando as casas de tijolo de barro com telhado de palha e a pobreza daquela gente que recebe, em kwanzas, o equivalente a três euros por um dia de trabalho no campo. Sim, era o Hualondo e, a prová-lo, ali estava a árvore, tão crescida, que, em miúdo, ele plantara para fazer sombra ao café.

Leontina conhece poucas palavras em português. O filho Tito traduziu a maior parte do que ela dizia em umbundo para que Maurício a compreendesse. Depois de se estreitarem nos braços e de se olharem nos olhos para terem a certeza de que ambos haviam sobrevivido, Leontina, como qualquer mãe, preocupou-se em alimentar bem o filho. Maurício sofre de diabetes e a mãe estava inquieta, sem saber o que servir-lhe. Ele respondeu que podia comer 'um bocadinho de tudo' e que gostava de pirão. Oferecer alimento, principalmente quando se tem pouco, é demonstrar afecto. Desde que Maurício chegou, todos os dias se matou um animal no Hualondo, para que ele tivesse carne no prato. E era dele o lugar à mesa na casa do irmão Tito Floriano, onde pernoitou, enquanto os demais comiam sentados no chão.

O filho pródigo esteve duas semanas no Hualondo, aldeia com duas igrejas, uma protestante e outra católica. Foi recebido em festa pelos protestantes, entre os quais o seu irmão Tito, e no domingo seguinte pelos católicos, como o seu irmão Filipe. É certo e sabido que 'um homem tem de chorar' não só quando reencontra a mãe após 34 anos como quando é acolhido com tanto calor por aqueles que nada têm. Mas sempre que o homem chorou vieram as crianças do Hualondo – os sobrinhos e os amigos deles – desafiá-lo para brincadeiras sem brinquedos. E à noite lá estavam elas, compondo cachos, sentadas no chão diante da única televisão da aldeia, que funciona à força de gerador na casa de Tito Floriano.

O dia da partida amanheceu claro. Lá, onde Maurício a tinha reencontrado, sob o colmo, ficou, deixando as lágrimas correr sem peias, Leontina Nagaié, uma mulher de 66 anos que ainda ganha o que come cavando a terra e que ao filho confessou sentir apenas, às vezes, dores no peito. 'Ela esteve sempre à minha espera', repete Maurício Silva, que já regressou à sua casa, na Amora, concelho do Seixal, onde vive com a mulher Emília e dois filhos, um rapaz e uma rapariga, de 19 e 23 anos. Só na viagem gastou mais de 2000 euros, parte em dívida ao banco. Tão cedo não poderá ir de novo a Angola. O que mais deseja é que Leontina venha a Portugal conhecer os netos, identificar a origem das dores no peito e tratá-las. Não será fácil. Leontina não tem documentos. Mas ela esperou pelo filho e, agora, o filho está à espera dela.

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