page view

A dor das crianças não mente

Pedro Namora resolveu abrir o coração. E contar a sua verdade sobre o chamado processo Casa Pia. Pré-publicação de um livro que promete dar muito que falar.

27 de março de 2005 às 00:00

CARTA À MINHA MÃE

Às vezes dou por mim a pensar nas recordações esparsas da minha infância. E vejo-te, vejo-nos, numa cela fria em Tires. Tu, eu e um gafanhoto. Havia sempre gafanhotos que apanhavas nos campos circundantes durante a jornada de trabalho. E havia um infantário. Eu ali mãe, junto de outros meninos, acenando-te fugaz, sem perceber a razão por que me tiraram o gafanhoto quando te deixei na cela. Avistando-te ao longe com outras mães. Centenas de mãos enviando-nos beijinhos. Preso eu, a ver-te em fila indiana a caminho das tarefas diárias. Presa tu, a veres-me partir para a praia na camioneta da prisão. Ou a brincar num edifício onde nunca podias entrar fora dos momentos escassos que nos concediam.

Retorno ao colo do tio Abílio, no piso térreo da casa da Azinhaga dos Besouros, e brinco com o baralho de cartas que as mãos dele, fortes e rudes, seguravam com carinho. Num canto, o pote grande onde guardava as azeitonas que tratava e a foice com que algumas vezes, anos mais tarde, fui aos caniços para alimentar coelhos. Recordo como o tio se aventurou na transformação da azinhaga, depois da Revolução de Abril. Como se dizia que os soldados estavam ao lado do Povo, foi ao Quartel da Pontinha requisitar máquinas e liderou os homens que em menos de dois anos fizeram mais pelo bairro do que a ditadura havia feito durante meio século. O saneamento básico, a água canalizada e a electricidade surgiram rapidamente e em todo o lado eu via o seu labor incansável e uma dedicação sem limites. Tanta solidariedade de casa para casa, em cada vizinho um amigo, a força da partilha do ideal transformador a alimentar os afectos e a ternura. Esse teu irmão foi sempre, mais do que pai, um herói que aprendi a respeitar e tantas vezes imitei desde menino. Quando ao final do dia chegava a casa, repetíamos o ritual que me fascinava: abeirava-se de mim para que lhe pedisse, “Bênção tio”, beijava-me, e eu, sem saber porquê, sentia uma felicidade profunda. Adorava escutar – e felizmente guardo muitos na memória – os relatos do quotidiano que à noite, durante o jantar, nos transmitia. Nunca vi ninguém mais corajoso, honrado e destemido.

Frequentemente, revejo-te irada, a mana pequenina num carrinho de bebé. Discussões imensas, gritos, tu a lançares um copo contra alguém que não reconheço (o marido da ama onde estávamos?), depois a saída. Os gritos, mãe. Por tudo e por nada gritavas. E podias reagir violentamente. Durante muitos anos tive medo da imprevisibilidade do teu carácter, dos beijos seguidos de bofetadas violentas se te julgasses ofendida. Um dia ofereceste-me um comboio lindo que rodava numa pista. Pedi-te tanto aquela prenda. Como sempre sucedia perante as minhas insistências intermináveis, decidiste comprar-ma à custa sei lá de que sacrifícios. Quando chegámos a casa, depressa me cansei, porém, de ver o comboio dar sempre a mesma volta. Para me livrar da monótona viagem remeti-o, fechado, para o lugar mais longínquo debaixo da cama e adormeci. Esse desinteresse foi-me fatal. Obrigaste-me, acordado à força, a montá-lo de novo, a dizer que o adorava, a venerá-lo.

Revisitam-me, assiduamente, algumas das amas onde nos deixavas. Uma delas a entornar a frigideira onde jazia o peixe frito. O óleo a ferver cravou-lhe balões disformes por todo o braço. Esgares de dor, gritos dela, gritos meus e tu sem estares, mãe. E a outra, no Beato, que me mandou comprar vinho apesar dos meus 5 anos. Caí na escada, os vidros rasgaram-me o braço direito, o sangue jorrava e eu, sozinho, subi ao segundo andar a pedir auxílio, amedrontado, sobretudo, pelo pavor da reprimenda por ter partido a garrafa. É estranho como recordo tão nitidamente o primeiro dia em que me visitaste depois do acidente. Sei que devia ser muito pequeno porque estava a brincar dentro de uma caixa de fruta em madeira quando me viste. Choraste tanto, mãe. Olhavas o meu braço ao pescoço e era como se eu tivesse morrido. “O meu menino” – repetias – “o meu menino”. Fiquei aturdido, sem poder dizer-te que me tinham maltratado nos bombeiros. Sem poder dizer-te que não compreendera os berros daqueles vilões fardados, “Um homem não chora, um homem não chora!”, enquanto me suturavam sem anestesia. Sem poder falar-te das manápulas que me comprimiram a cabeça contra a maca da enfermaria para que não visse nada. Sem poder pedir-te que me levasses dali, mãe. Porque me bastariam as tuas mãos quentes afagando-me o rosto, os teus braços ternos comprimindo-me contra o peito.

Apressada, a memória parte à desfilada. Agora é noite. Acabámos de sair da pastelaria. Numa mão a viola pequenina que me ofereceste, o interior recheado de amêndoas e as cordas de plástico em que tantas músicas dedilhei. Na outra, a tua mão calejada guiando-me os passos. Vamos os dois na rua, mãe e filho a caminho de casa, quando a voz surge. “Você aí!”, gritam-te. Depois, arrastam-nos para o Quartel do Carmo. Falam em papéis que terias colocado nas caixas de correio. Eu sei que tu não entraste em lado nenhum, mãe. Mas eles não me ouvem. Batem-te. Batem-te muito. E ficam furiosos porque tu não gritas. Ficam cada vez mais violentos. E tu sem gritares. Depois de horas de agressões diversas, de perguntas que não entendi, disseram-te que podias sair, mas o lenço a que tinhas limpo tanto sangue ficava.

Recomeçou então tudo de novo. Que o lenço era teu e não permitirias que to roubassem. “Roubar?” Foi o pretexto para mais agressões e tu sem cederes. Faziam gala em bater-te à minha frente. Em ofender-te. Não me recordo de teres solto um único grito. Apesar de sangrares com abundância mantinhas-te digna. E não cedeste um milímetro. Fui eu que te derrotei, mãe. Tinhas suportado todas as agressões sem vacilar, mas foi-te impossível resistir ao meu apelo desesperado para que deixasses o lenço. “Deixa mãezinha, deixa.” E tu, a chorar de impotência e raiva, deixaste. Ainda hoje me dói, quando passo pelo Largo do Carmo e recordo aquela noite medonha e a tua imensa coragem.

Sem se deter o pensamento leva-me ao Internato Infantil de São João do Estoril, para onde me desterraram, em Setembro de 1970, separando-me da mana Isabel, que ficou sozinha na Casa Maternal da Misericórdia, em Lisboa. Posso ouvir distintamente o murmurar das ondas com que adormecia e ver o azul do mar que tanto contemplei. Mas retenho sobretudo a profunda maldade daquelas freiras. As camaratas no piso superior circundavam a igreja no piso térreo. Mesmo a rezar espiavam-nos por umas clarabóias circulares colocadas estrategicamente no chão dos nossos aposentos. Se brincássemos, mal terminasse a missa, éramos severamente espancados. E quando íamos à praia de manhã as normas eram claras: menino que se molhasse, de tarde não regressava. Ficava no terraço de castigo, com a obrigação de observar os outros divertindo-se na areia. Nunca mais esquecerei, foi demasiado o mal que nos fizeram, a distinção estigmatizante entre a generalidade dos alunos e os “mijões”. Eu estava na camarata dos que nunca urinavam na cama. Só que havia o medo de ir durante a noite à casa de banho, porque as freiras garantiam que os ladrões subiam por uma corda e levavam os meninos que se levantassem. Certa noite sonhei que estava na praia e fazia chichi de encontro ao paredão. O sonho foi tão real que urinei um bocadinho e acordei amedrontado. Vencido o terror, fui à casa de banho molhar a ponta da toalha e esfreguei o lençol para que elas não vissem. Mas a inspecção matinal era rigorosa. E o castigo conhecido: reclusão na casa das ratas. Na noite seguinte encerraram-me naquela masmorra imunda e fecharam-me por fora. Sem luz. A casa das ratas era o local mais aterrador que existia no colégio, mãe. As ratazanas passeavam-se entre o montão de tralha que as freiras acumulavam. Cego pela escuridão, consegui encostar-me a um baloiço desactivado, o frio e o medo alimentando os meus gritos, desesperado com os barulhos que surgiam de todos os lados e elas sem me tirarem dali. A noite toda, mãe! Achas que alguém acredita em tamanha atrocidade?

Entre tantos medos, tínhamos um pavor imenso da freira que nos extirpava os dentes à mão. E da que nos arrancava com as unhas a crosta das feridas que fazíamos, nos joelhos e cotovelos, ao cair-mos. Uma vez por semana obrigavam-nos a formar em fila indiana para lhes mostrarmos as cuecas. Os que as tivessem sujas eram sovados. Tanta humilhação. Por maldade torturavam-nos física e psicologicamente, com um requinte aprendido na frustração com que por certo encaravam as vidas que levavam. Os únicos momentos de liberdade eram as tardes em que me resgatavas daquele inferno, alheia às recomendações intermináveis para que não demorasses a devolver-me.

Apesar de tudo, quando uma carrinha me foi buscar ao Estoril e vi as freiras prepararem as parcas coisas que tinha, fiquei especado olhando fixamente o portão por onde surgias sempre que me visitavas. “Não me vão levar sem a mãe chegar. Não me vão levar sem a mãe chegar.” Mas o tempo foi passando e de ti nada. De forma que ouvi berrarem qualquer coisa, empurraram-me para dentro da viatura desengonçada e senti que me conduziam para o fim do mundo. Para um local onde tu jamais me poderias encontrar. Quando a carrinha arrancou disse adeus ao paredão. O mesmo paredão junto ao qual tantas vezes encontrei pauzinhos de gelado premiados e onde costumavas encostar-te quando me colocavas ao colo e brincavas com o meu cabelo. O paredão onde tantas vezes pedi às joaninhas que voassem até Lisboa e te dissessem o quanto gostava de ti.

FILME DE TERROR

Como habitualmente sucedia, naquele domingo fomos ver o Belenenses. O clube enviava regularmente para a Casa Pia bilhetes para que pudéssemos assistir aos jogos. Não sei com que equipa jogou o “Belém”. Nem qual foi o resultado. Mas jamais me esquecerei do que sucedeu depois do jogo. Terminado o desafio fomos em grupo à casa de banho. Estava no urinol quando ouvi, vinda da zona das retretes, a voz do Bibi: “Quem está aí?” Depois de me identificar, pediu-me que lhe arranjasse papel higiénico. Tirei um rolo da sanita do lado e quando lho quis entregar, abriu a porta e disse-me para avançar. Estava em pé, as calças e cuecas completamente descidas. Dei apenas um passo em frente e estendi-lhe a mão para que pudesse segurar no rolo. Repentinamente senti a sua mão no meu braço, tentando agarrar-me. Não sei como consegui escapar, mas dei por mim a correr desesperado e só parei no colégio. Senti muito medo. Medo pelo que tinha evitado mas, sobretudo, pelo que me poderia suceder quando ele me reencontrasse. Fugido do estádio, estava encurralado, sem poder procurar refúgio junto de alguém que me protegesse. Naquele tempo, com excepção dos “batatas” (alunos mais velhos que assumiam o papel de protectores), não se podia recorrer a ninguém. Aos preceptores nem pensar. Vi aplicar muitas tareias aos que de forma imprudente tiveram a audácia de reclamar apoio junto dos educadores contra qualquer iniquidade. E os batatas só funcionavam quando o agressor era mais fraco e mais novo. Ora o Bibi era visto pelos nossos olhos infantis como um gigante invencível. Além do mais, aquilo não era assunto de que se falasse com amigos. Durante muito tempo andei aterrado com a probabilidade de ele me encontrar sozinho num dos muitos locais esconsos e degradados que existiam na instituição. Quando ia colher folhas às amoreiras que ficavam junto ao campo de futebol de onze, um dos locais mais abandonados e degradados, fazia-o sempre a medo. Se ele me surpreendesse ali, por mais que gritasse ninguém me ouviria. Meses depois, no Pátio das Malvas, perguntou-me se precisava de slips. Aquela palavra tinha para nós uma significação mágica e tão valiosa quanto a das calças de ganga, dos blusões ou ténis de marca que sempre ambicionámos. Claro que precisava, mas mal me disse que devia experimentá-los na casinha que usava como arrecadação, recusei, recordado do que me tentara fazer tempos antes.

O Bibi estava sempre presente. Nas festas, nos passeios, no futebol. Falar a alguém, ainda por cima narrando algo indefinido como o que me tinha sucedido, poderia significar, além do descrédito, uma tareia brutal, ministrada não apenas por ele mas por todos quantos considerassem ter o direito de o vingar. Andei pois fugido do Bibi, evitando que me encontrasse sozinho na imensidão do colégio. Quando se está completamente só a dependência afectiva é tremenda. Por qualquer coisa de bem que nos façam fica-se eternamente agradecido. O Bibi soube explorar de forma magistral essa dependência. Como um predador experiente, conhecedor das vítimas, aproximava-se dos mais desprotegidos de forma pensada, oferecia os préstimos – uma partida de futebol, uma ida ao cinema, entrega de dinheiro ou bens materiais – e, no momento indicado, desferia o ataque.

Muitas vezes pensei no que teria feito para despertar o seu interesse. Senti-me culpado. Culpado e isolado, com um problema que julguei só meu durante muito tempo. Mais tarde começou a circular a advertência de que era preciso ter cuidado com o Bibi. Mas era um aviso genérico. Enquanto estive no colégio nunca soube o nome de nenhum casapiano abusado sexualmente por ele. Não me recordo sequer de em qualquer circunstância ter escutado alguma conversa entre os alunos sobre o assunto. Para isso contribuíram factores diversos, nomeadamente, o anátema que pesava sobre quem sofria o abuso. Naquele tempo, as crianças não eram vistas como vítimas, mas consideradas maricas. Também por isso muitos silenciaram as sevícias que sofreram.

Apesar de ser funcionário, o Bibi tinha sido aluno e era tido como um de nós. Quando estávamos acompanhados, era sempre solícito, atencioso e assumia-se como defensor dos mais frágeis. Fazia tudo para estar rodeado de crianças e recordo-me bem de que nos acompanhava nas excursões e passeios aos mais diversos locais, nomeadamente aos treinos e jogos que os alunos disputavam em representação do Casa Pia Atlético Clube, onde a sua voz tonitruante gritava incentivos sem cessar. Depois das tentativas que referi nunca mais fui assediado por ele. A minha infância e adolescência foi marcada sobretudo pelo abandono na instituição e pelos episódios relacionados com a doença que viria a vitimar a minha mãe.

O DIÁRIO DE RAQUEL

Raquel Cruz foi engendrando o seu diário no 24horas, que bem poderia ter apelidado de, “Crónica de um ataque continuado às vítimas e aos que ousem colocar-se a seu lado”. No dia 16 de Maio, incapaz de conter a cólera que a anima, protestou contra o dinheiro que se gasta a proteger as testemunhas. “Se fossem crianças inocentes e indefesas que tivessem sido mal-tratadas e por isso testemunhas de um crime tão horrendo como este, teriam todo o direito a ser protegidas. Mas a verdade é que quando são as testemunhas que acusam o meu marido tudo muda de figura. Essas crianças não são inocentes porque mentem, nem ingénuas porque têm já uma experiência de vida maior que a de muitos adultos.”

Lê-se e é difícil acreditar. Para Raquel Cruz o ideal seria abandonar as vítimas que ela decretasse não poderem reunir essa condição. E já agora, criando e atribuindo uma espécie de “livre-trânsito” para que só as pudessem entrevistar jornalistas previamente seleccionados - de preferência por Van Krieken - que seguramente colocariam as crianças a desdizer tudo quanto a aturada, responsável, séria e digna investigação das entidades oficiais apurasse. Como sucedeu noutros países. Tanta atrocidade contra vítimas destroçadas. Uma dessas crianças esteve na minha presença e na do mestre Américo. Apesar de ter vindo na companhia do pai – a quem havíamos solicitado que a não levasse – durante cerca de hora e meia não levantou a cabeça do tampo da mesa onde estávamos. Dor e vergonha! Um sofrimento atroz que demorará muito tempo a ser ultrapassado. E a esposa de um arguido, que viria a ser acusado e pronunciado por crimes gravíssimos, a mesma senhora que alguém ousou comparar à heroína de Gedeão, permite--se injuriar as vítimas, esquecendo que a “experiência”, se a têm no sentido pejorativo que invoca, lhes foi imposta como um anátema por escroques sem pinga de dignidade, que além do mais são mentirosos compulsivos. Não sei se é o caso do locutor de televisão e, apesar de ter havido um tempo em que desejei que o não fosse, agora é-me indiferente. Porque o Carlos Cruz que admirava esboroou-se na iniquidade que empregou para se defender. E só me interessa, como cidadão e pai de três filhos, que a Justiça atenue, na medida do possível, a dor pungente das vítimas.

A 20 de Maio de 2003, Jorge Ritto, que há muito vinha sendo referenciado como abusador sexual de menores, foi detido. Depois de seis horas de interrogatório, no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, o juiz Rui Teixeira considerou-o indiciado por 11 crimes de abuso sexual de crianças e determinou a sua prisão preventiva. No dia seguinte, recebi uma chamada da Isabel Horta, da SIC. Solicitou que me deslocasse de imediato para as instalações do canal. Ainda esbocei uma tentativa de saber o que se passava mas, dizendo-me que nada mais podia revelar, a Isabel reiterou o pedido de que rapidamente partisse para Carnaxide. Foi aí que soube que o magistrado Rui Teixeira se tinha dirigido a São Bento para solicitar à Assembleia da República o levantamento da imunidade parlamentar do deputado do PS e seu porta-voz, Paulo Pedroso. Este chegou ao TIC para prestar depoimento, por volta das 18h30, acompanhado de Alexandre Rosa, chefe do gabinete do grupo parlamentar e do seu advogado Celso Cruzeiro. Perante Rui Teixeira, Pedroso negou ter cometido qualquer crime de abuso sexual de menores e defendeu existir “um ataque ao Partido Socialista, enquanto instituição e que importava o quanto antes clarificar a situação, esclarecendo-a cabalmente”. Declarou que sabia estar o seu nome envolvido no processo há dois meses e que no dia 9 de Maio, José Manuel Simões de Almeida, juiz de carreira e seu antigo secretário de Estado, lhe tinha comunicado que o desembargador Trigo Mesquita garantira, nos corredores do Tribunal da Relação, que “a coisa está negra para o Paulo Pedroso e o Ferrinho também não escapa” ou “não se safa”. Após 13 horas de interrogatório, o magistrado Rui Teixeira decretou a prisão preventiva de Paulo Pedroso.

Nunca antes tinha escutado qualquer referência a Paulo Pedroso. E não hesitei em afirmá-lo em todos os comentários que me solicitaram. Inconcebível foi assistir à reacção de responsáveis do Partido Socialista. Repentinamente descobriam que afinal não é democrática a sociedade em que vivemos e logo trataram de apregoar a teoria da cabala ou urdidura. Não tardei a apontar-lhes a contradição: ainda no início do escândalo tinham exigido “Justiça doa a quem doer” e agora não hesitavam em rasgar tudo o que haviam dito para salvaguardarem, a qualquer custo, a carreira política de um correligionário e a imagem do Partido perante a opinião pública.

No dia 25 de Maio almoçámos, um grupo de 25 ex-alunos da Casa Pia de Lisboa, num restaurante de Linda-a-Velha. A afluência foi menor do que esperávamos e a explicação foi rapidamente conhecida: sabedores de que a comunicação social estaria presente muitos gansos preferiram não comparecer. Apesar de tudo foi importante porque pudemos trocar impressões sobre o evoluir do processo. A generalidade das intervenções realçou a necessidade de ser feita justiça, condenando-se os pedófilos que durante décadas abusaram sexualmente de crianças da Casa Pia de Lisboa. A Ana Paula Valente fez uma intervenção em que caracterizou o processo de denúncia dos abusos como “o nosso 25 de Abril”. Na intervenção que fiz realcei o estado deplorável em que se encontram muitos ex-alunos em consequência do abandono a que foram sujeitos. E apelei a que reforçássemos o apoio aos actuais alunos, nomeadamente aos que corajosamente decidiram narrar os horrores por que passaram. Emocionados, vários gansos falaram do dever de denunciarmos os crimes e da necessidade de preservarmos a Instituição a que justa e carinhosamente chamamos mãe. Porque dela necessitam os milhares de seres humanos vítimas de uma sociedade que gera miséria a cada dia.

As televisões, nomeadamente a SIC e a TVI, fizeram directos a partir do local e pediram-nos, a mim e ao Granja, reacções às declarações de Ferro Rodrigues e de outros responsáveis do Partido Socialista. Verberei duramente as declarações que proferiram, designadamente no dia da detenção de Paulo Pedroso, por atentarem contra o Estado de Direito Democrático, contra o princípio da separação de poderes – que tanto apregoaram enquanto a Justiça lhes não bateu à porta – e contra a honra e dignidade das vítimas. Referi ainda que Ferro Rodrigues teve a tutela da Casa Pia de Lisboa, o que lhe impunha um especial dever de contenção e respeito pelas crianças abusadas.

À noite fui ao Jornal Nacional da TVI, para ser entrevistado sobre o assunto. Já em estúdio, quatro ou cinco minutos antes das 20h00, notei que na redacção se tinha iniciado um movimento desusado. As pessoas corriam de um lado para o outro e depreendi que algo imprevisto sucedera. O jornalista Júlio Magalhães deu-me conta da novidade: Herman José estaria a ser interrogado no DIAP. Minutos depois, nova informação. Afinal o humorista tinha sido apenas notificado para depor como testemunha abonatória de Carlos Cruz. Simpático, Júlio Magalhães perguntou se no decorrer da entrevista podia questionar-me sobre o assunto. Anuí e, quando interpelado, limitei-me a referir a verdade. Nunca tinha escutado qualquer referência a Herman José. E aduzi, por ser verdade e a tal me impelir a minha consciência, que um ex-aluno da Casa Pia de Lisboa, ao referir casas onde tinha sido abusado sexualmente, realçou que a de Azeitão não era a casa do Herman. O jornalista quis saber se eu ainda mantinha a decisão de participar no “Herman SIC” dessa noite. Respondi-lhe afirmativamente e disse mesmo que o fazia com muita honra porque nutria pelo humorista muita admiração.

Durante a tarde desse longo dia, apesar da imensidão de coisas que tinha para fazer e da escassez de tempo, fui a Cascais comprar o livro de José Casanova, O Caminho das Aves. Ainda na livraria escrevi a dedicatória sem pensar cinco segundos: “Obrigado Herman José por ter contribuído para minorar, pelo seu trabalho, o sofrimento por que tantos passámos durante a nossa infância.” Porquê este livro? Por ser belíssimo, infelizmente talvez dos mais censurados depois da Revolução de Abril. E porque fala sobretudo de amizade. Ora eu estava revoltado com as declarações que sistematicamente o Herman tinha feito sobre a detenção de Carlos Cruz e pensei que talvez o romance do Zé lhe pudesse ser útil. A entender o que é lícito fazer-se pelos amigos, mas também a descobrir o que anima a generalidade dos exalunos da Casa Pia que decidiram lutar contra a barbárie. Para nós o livro foi muito importante. Como escrevi num artigo para o Correio da Manhã: “Não sei falar de literatura. Mas posso dizer, sobretudo por ser verdade, que o exemplo de Francisco, personagem central desse magnífico romance, me tem ajudado imenso desde que, em Novembro, aceitei partilhar publicamente o que me sucedeu há 27 anos. Sei bem que a luta que travamos actualmente pela dignificação da nossa casa--mãe é diferente da que enfrentaram os jovens que lutaram contra o fascismo. Mas duvido que pudéssemos resistir hoje sem os mesmos amigos que ao longo das páginas do livro vão tecendo um tão comovente hino à amizade.”

Quando cheguei ao estúdio da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, já me aguardavam imensos jornalistas. A RTP solicitou-me uma entrevista, em directo, às 21h00 e acedi. Contudo, antes da hora aprazada, a produção do “Herman SIC” fez-me entrar com o argumento de que estava atrasada a preparação do programa. Percebi depois que pretenderam poupar-me à pressão mediática decorrente do anúncio público de que Herman José tinha sido notificado para comparecer no DIAP. Fui conduzido ao piso superior. Pelo caminho vi os principais colaboradores do Herman profundamente consternados. Mas impressionou-me a dignidade que transparecia dos seus rostos tristes e o esforço que faziam para aparentarem que tudo corria bem. Herman José esperava-me no seu camarim. Emocionado, os olhos marejados de lágrimas, recebeu-me com um imenso, “Obrigado Pedro, foi tão simpático!”, alusivo às declarações que eu tinha proferido no Jornal da Noite da TVI. Não consegui dizer nada. Limitei-me a dar-lhe o livro que tinha comprado horas antes. Herman pareceu-me surpreendido pela oferta. Depois de ler a dedicatória, elogiou a capa e convidou-me a entrar, juntamente com o Adelino Granja. Ficámos por ali a conversar num tom e ambiente que me parecera impossível horas antes. Aliás, o Adelino tinha-me dito durante o almoço desse dia que temia a reacção do Herman durante o programa. E por isso acordámos que se fosse necessário, caso ele fosse incorrecto connosco ou aproveitasse a nossa presença para defender algum dos arguidos, abandonaríamos o estúdio como forma de protesto. Felizmente tudo correu bem e pudemos divulgar a festa de solidariedade com as vítimas de crimes sexuais que dias depois decorreu na Feira Popular de Lisboa, promovida pela Plataforma Não ao Abuso Sexual de Crianças, constituída pela Associação de Mulheres contra a Violência, pela Opus Gay e pela Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento. A 30 de Maio, uma sexta-feira, o humorista foi constituído arguido.

Pedro Namora é um dos poucos casapianos que deu a cara, assim que foi conhecido o escândalo da pedofilia. Ao contrário de outros antigos alunos, nunca mudou de posição. Desde Novembro de 2002 que todas as intervenções públicas que protagonizou visaram sempre a defesa cerrada da credibilidade das vítimas. Nasceu em Lisboa, no dia 19 de Julho de 1964. Entrou na Casa Pia com sete anos, tendo frequentado os colégios Nuno Álvares e Pina Manique. Neste último conheceu Carlos Silvino. A memória do primeiro encontro, nas casas de banho do Estádio do Restelo, perseguiu-o enquanto esteve na instituição. Em Setembro 1981 deixa a Casa Pia e deixa de pensar na tentativa de abuso de Silvino. Até que, em Novembro de 2002, o jovem ‘Joel’ denuncia publicamente que tinha sido molestado pelo ex-motorista, situação que o obriga a pensar na aflição por que tinha passado aos 11 anos. A pensar e a agir. Começa por contar o que ‘Bibi’ lhe tinha feito, exige uma rigorosa investigação e prontifica-se a ajudar. As autoridades ouviram-no. Ao fim de pouco tempo soube-se que havia mais de 120 vítimas de abusos sexuais na Casa Pia e que o Ministério Público acusava 10 pessoas. Sete estão a ser julgados no Tribunal Militar. E Namora continua a ser procurado por antigos casapianos que lhe contam os horrores por que passaram, ao mesmo tempo que lhe pedem para não dizer nada a ninguém...

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

o que achou desta notícia?

concordam consigo

Logo CM

Newsletter - Exclusivos

As suas notícias acompanhadas ao detalhe.

Mais Lidas

Ouça a Correio da Manhã Rádio nas frequências - Lisboa 90.4 // Porto 94.8