A guerra era um tabu. Mobilizados à pressa, com rudimentar formação e preparação militar, e ignorância total quanto ao que nos esperava, restava-nos ter fé e, sobretudo, a coragem necessária para enfrentar os diversos perigos de uma guerra de guerrilha.
Na viagem de Lisboa a Luanda (14 a 23 de dezembro de 1971), parte da minha companhia, eu incluído, foi colocada no porão superlotado do ‘Vera Cruz'. Para dormir era preciso rastejar. Havia um cheiro nauseabundo, mistura de urina e suor. Aquilo a que chamavam casas de banho pareciam fossas ao ar livre. A certa altura, as fezes boiavam na água choca que cobria o chão, balançando de um lado para o outro. O ambiente era arrepiante e nojento, agravando-se à medida que a viagem ia avançando. Para os responsáveis do regime, o mais importante era porem-nos lá. Era urgente enviar mais carne para canhão.
O percurso longo e muito cansativo, de Luanda a Gago Coutinho, na província do Moxico, fez-se em várias etapas e transportes. Foram quase 12 horas de camioneta até Nova Lisboa. Para a cidade do Luso levaram-nos em camiões, como carga. Do Luso para Gago Coutinho, cerca de 500 quilómetros ao longo da picada, fomos em Berliets. Sempre em alerta máximo e em posição de combate.
Ali estava, borrado de medo, a mais de 1500 quilómetros de Luanda, numa coluna militar, a caminho da vila de Gago Coutinho, numa zona a que chamavam de intervenção. A qualquer momento podia surgir, sem se saber de onde, um ataque, uma emboscada, ou o rebentamento de uma mina. Com 21 anos, tinha de aprender à minha custa a suportar, física e psicologicamente, uma situação completamente adversa. A palavra de ordem era ‘desenrasca-te'.
CAIXÕES JUNTO AO QUARTO
A minha companhia ficou em Gago Coutinho, apoiada por um pelotão de morteiros, e as outras foram distribuídas pelos destacamentos de Cessa, Mussuma, Chiume e Ninda. Todas muito próximas da fronteira com a Zâmbia. No tempo das chuvas, o acesso tornava-se muito difícil, por vezes impossível. As reservas esgotavam-se depressa e a ementa passava a ser, quase sempre, salsichas com arroz ao almoço e estilhaços de frango com arroz ao jantar. Os petiscos eram a tábua de salvação, mas nem sempre era possível obter carne. A caça não abundava, e lembro-me de ver praticamente só abutres.
O ‘Mete Lenha', dono da única loja da vila, também era vítima da distância e do clima. Muitas vezes não tinha carne nem batatas. Com a ajuda dos militares da Força Aérea, de quando em vez tínhamos dia de festa, e, naturalmente, grandes bebedeiras, para afogar as saudades.
Quase diariamente aterravam helicópteros com feridos, muitas vezes com mortos. Junto ao meu quarto, com paredes de madeira e telhado de zinco, eram depositados caixões à espera de seguirem para a metrópole. Não se aguentava o cheiro.
A ansiedade de sair daquela zona agravava-se. Cada dia que passava, à espera da notícia do local para onde o batalhão teria de rodar, era uma tortura. Da Metrópole chegavam notícias de casos dramáticos para os soldados, como a morte de um pai ou de uma mãe, ou da esposa grávida do próprio irmão. Também houve tentativas de suicídio, casos de embriaguez até ao estado de coma, e loucura provocada pelo stress, pelo que dois companheiros foram retirados. Ali ficámos 18 longos meses, antes de irmos para a Gabela, onde ficámos dez meses, até ao dia do regresso a Portugal.
JOÃO TORRES LIMA
Comissão
Angola (1971-1974)
Força
Batalhão de Cavalaria 3862
Atualidade
Aos 64 anos, é casado, tem dois filhos e uma neta. Vai lançar um livro sobre um padre operário