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A vida na cadeia do grande amigo de Obikwelu

A prisão é uma faca da vida que não cortou laços entre o ex-atleta do Sporting Sylvester Omodiale e o eleito atleta Europeu do ano de 2006, Obikwelu. A história foi contada na edição de 4 de Março da Domingo. Agora fomos à cadeia falar com Sylvester.

22 de abril de 2007 às 00:00

Entrincheirada na mão, a ‘Bíblia’ roga pela vigília de Deus. Meio palmo de músculo aperta-lhe a t-shirt preta – apenas cortada por um crucifixo que desce pelo pescoço. Entra na sala de reuniões do Estabelecimento Prisional de Lisboa e o cheiro a tabaco perde-se numa fragrância frutada… seria a amêndoas, coco? A tez negra sorri mesmo quando fala do que o levou à prisão. Condenado a quatro anos e seis meses de cadeia, Sylvester Omodiale, antigo corredor dos 400 metros barreiras no Sporting e ‘primo’ de afecto de Francis Obikwelu, foi travado: engoliu 68 bolotas de cocaína – 790,495 gramas da branca –, voou de Bissau, na Guiné, e à chegada a Lisboa a PJ prendeu-o. Os seus dedos de recluso perseguem à letra o Salmo 23, ‘O Bom Pastor’. E lê (em inglês) a passagem das batalhas: ‘O Senhor é meu pastor: nada me falta…’ Subleva os olhos e explica: “Mesmo quando uma coisa é muito má para mim, eu entro no caminho certo.”

A vergonha sufoca-lhe as palavras ao telefone. Não revela o crime à irmã. Nem mesmo conta a Obikwelu que lhe paga a defesa através da advogada Maria Paula Andrade. “Só ele me pode ajudar; é um irmão verdadeiro, não lhe posso chamar amigo agora.” Em Maio de 2001, o atleta cai dos píncaros da sua carreira no Sporting. Procurou a energia, o vigor de um líquido negro depositado num frasco sem rótulo. Acusou doping e saltou fora das pistas portuguesas. Partiu então para o Canadá. Queria treinar, mas acabou por se apaixonar. Regressou a Portugal com dívidas que o levaram a traficar droga. Sylvester assume-se como vítima; o tribunal provou que ‘o arguido tinha conhecimento de que transportava consigo cocaína’, para ganhar dinheiro.

Foi preso a 5 de Setembro de 2006, na manhã do seu vigésimo nono aniversário. “Ah, sempre que levanto a roupa e vejo a cicatriz no meu estômago, lembro-me da minha prenda…” – lamenta. Da Portela, Sylvester foi transportado para o hospital. Operaram-no duas vezes em três semanas. Até hoje, resiste no seu abdómen o rasgo negro costurado que lhe dói às refeições e, de manhã, quando urina. Lentamente, sob a vontade mista de fazer desporto e de resistir às dores do esforço físico, treina no ginásio da prisão a convite de outros reclusos que reconheceram nele o suor de quem vestiu as listas verdes do Sporting, lado a lado com Obikwelu.

Contudo, mesmo que o corpo recupere, só resta uma consolação a Sylvester: “Fico contente pelo Francis ser um dos melhores atletas do Mundo. Só fico triste porque eu também era para ser um dos melhores.” Talvez nunca consiga regressar às pistas. É o que mais o aterroriza. No entanto, só o passado explica esta mágoa, este sentimento de perda. Os nigerianos (Obikwelu, entretanto, naturalizou-se português) conheceram-se meses antes de visitarem o nosso país, em 1994, durante o Campeonato de Juniores de Atletismo. “Quando cheguei cá disse ao Francis e ao Wilson Ogbeide [o terceiro amigo]: ‘Quero ficar’.” Apenas Sylvester tinha dinheiro e, pouco antes do treinador juntar os atletas para regressarem à Nigéria, esconderam-se numa pensão do Rossio. Dias depois, refugiaram-se no Algarve, onde trabalharam nas obras. Tinham entre 16 e 17 anos.

Só em 1996, os três nigerianos vão treinar para o Belenenses. E em 1998 seguiram para o Sporting. Francis estava concentrado na carreira, ao passo que Sylvester se dava ao prazer de namorar. “Eu, para brincar, dizia-lhe: ‘Tu és preto, eu sou chocolate.’” Praticamente não saiam à rua: treinavam, iam para casa e, ao domingo, à Igreja [dominicana] do Corpo Santo, em Lisboa. Foi nessa Igreja que Sylvester conheceu uma das poucas pessoas que o visitam na prisão: Aline Vieira leva-lhe revistas e o jornal do Sporting – que toda a comunidade junta –, além das cartas que lhe escrevem.

Na tarde em que Sylvester recebeu a Domingo, antes de recolher à cela, revelou que vai escrever a sua autobiografia – de uma vida que se precipitou até à depressão, hoje medicada. “Quando cheguei à prisão eu era só osso. No tribunal fiquei muito mal porque vi duas pessoas a chorar por mim – só quando alguém morre é que uma pessoa chora… Vi como estas pessoas têm amor por mim…” –, relata com a voz descomposta. Depois, arruma a ‘Bíblia’ e comenta: “Deus sabe que estou preso. Podem passar-se muitas coisas más comigo, mas, como ele está aqui, eu estou vivo.” Sai da sala de reuniões, entra num corredor estancado por grades e guardas e, antes de entrar nos labirintos da prisão, volta-se e sorri: “Agora eu vou para casa!”

PRIMEIRO A TRISTEZA DEPOIS OS AMIGOS

O ex-corredor dos 400 metros barreiras no Sporting, Sylvester Omodiale, só cerra o ar radiante quando recorda a tristeza dos amigos, no dia em que foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão por tráfico de droga. “Vi duas pessoas a chorar por mim – só quando alguém morre é que uma pessoa chora… Vi como estas pessoas têm amor por mim…”

Quando recolheu ao Estabelecimento Prisional de Lisboa, conta que levou meses para recuperar a condição física, própria de um atleta. Hoje, treina no ginásio da prisão com outros reclusos, que insiste em revelar os nomes por causa da amizade que lhes tem: Valeri, João, António, Jackson e Angelo; e mais quatro ingleses. Resta-lhe ainda o consolo de ser, segundo diz, uma das pessoas que mais correspondência recebe na prisão.

TRAFICOU PARA PAGAR DÍVIDAS E CRÉDITOS

“Eu trabalhava numa obra em Loures, tinha dívidas porque quando fui para o Canadá paguei com o American Express [Visa].” No final de Agosto de 2006, Sylvester aceitou a proposta de um homem que lhe ofereceu um bilhete para Bissau a pretexto de trazer tapeçarias e roupas. “Quando cheguei lá, ao aeroporto, vi uma pessoa com uma placa com o meu nome e fomos para um hotel.” Ficou radiante por estar na Guiné onde, conta, passou os cinco dias a treinar, dormir e comer. “De manhã, no dia em que ia voltar, apareceu a mesma pessoa com outras duas. Perguntei-lhe pelas malas. Ele disse: ‘Não há roupa, o que tenho vou dar-te agora’. Quando me dá um saco preto com uma coisa branca [cocaína], perguntei: ‘O que é isto?’ Defende que foi ameaçado para engolir as bolotas de coca. Regressou e na Portela a PJ travou-o. No dia do seu aniversário.

OBIKWELU E OMODIALE SEMPRE UNIDOS

Os caminhos cruzados de dois ‘primos’ – como carinhosamente se tratam – foi capa da Domingo a 4 de Março: Francis Obikwelu seguiu o da vitória; Sylvester Omodiale o da prisão. Em 2006, o luso-nigeriano, que orgulha Portugal, foi eleito Atleta Europeu. Nesse ano, Sylvester acabou detido no Aeroporto da Portela com 790,495 gramas de cocaína no estômago. Viajava da Guiné. Francis, que nunca abandonou Sylvester, decidiu pagar-lhe a defesa. Os dois amigos tinham-se tornado inseparáveis desde que, em 1994, aproveitaram uma prova internacional de atletismo em Portugal para não voltar à Nigéria.

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